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21 de janeiro de 2025

O Jardim dos Sete Amores

 

No coração de uma vila esquecida pelo tempo, havia um jardim mágico. Diziam que quem atravessasse o portão enferrujado encontraria flores que simbolizavam as diferentes formas de amar, cada uma com um perfume único, capaz de transformar até o coração mais inquieto. Foi com esta promessa que Lara, uma jovem à procura de respostas para as turbulências do seu coração, decidiu aventurar-se naquele lugar enigmático.

Ao empurrar o pesado portão, foi recebida por um aroma suave e uma brisa que parecia carregada de murmúrios antigos. O caminho de pedras irregulares conduzia a uma flor de pétalas azuis tão delicadas que pareciam feitas de veludo. Uma voz sussurrante ergueu-se do nada:
— Eu sou o amor-próprio. Não sou egoísmo, mas o respeito que deves a ti mesma. Sou a força para dizer “não” e a sabedoria de saber que mereces mais.

Lara ajoelhou-se, tocando a flor. O perfume doce preencheu os seus pulmões, trazendo-lhe memórias de momentos em que ignorou a sua intuição para agradar aos outros. Pela primeira vez em muito tempo, respirou fundo e sentiu um peso desaparecer.

Mais adiante, um denso arbusto de rosas-vermelhas ergueu-se imponente, o seu aroma intenso e quente a envolver. Uma nova voz, apaixonada e quase feroz, manifestou-se:
— Eu sou o amor romântico. Sou o fogo que aquece e ilumina, mas também posso queimar.

Lara hesitou antes de tocar numa pétala aveludada, recordando momentos em que o seu coração parecia explodir de alegria, mas também as noites em que chorou até adormecer.
— Por que feres tanto? — murmurou.
— Porque sou humana — respondeu à flor. — Nem sempre sou justa, mas sou sempre verdadeira.

Seguindo o caminho, Lara encontrou um campo de malmequeres-amarelos que dançavam ao sabor do vento.
— Nós somos o amor entre amigos, o laço invisível que une almas sem cobranças.

Ajoelhando-se entre as flores, Lara sentiu os olhos encherem-se de lágrimas. Lembrou-se de Kica, a amiga de infância com quem nunca perdera o contacto, e de todas as risadas e partilhas que viveram.
— Somos o abraço que consola, a gargalhada que cura, a saudade que aquece. Cultiva-nos e nunca estarás sozinha.

Mais adiante, sob a sombra de uma árvore frondosa, cresciam flores brancas que pareciam brilhar como pequenas estrelas.
— Eu sou o amor incondicional — disse a árvore com uma voz profunda e serena. — Sou o amor que os pais sentem pelos filhos, o que te faz continuar a amar alguém mesmo quando tudo se dificulta.

Lara pousou a mão na casca rugosa da árvore e sentiu o calor de todas as vezes que encontrou refúgio nos braços da sua mãe. Um sorriso tímido surgiu no seu rosto, misturado com uma lágrima de gratidão.

Ao virar uma esquina, uma trepadeira lilás enroscava-se graciosamente numa cerca enferrujada.
— Eu sou o amor altruísta, aquele que dá sem esperar retorno. Sou o amor que sacia a fome do faminto, consola o triste e luta por um mundo melhor.

Lara recordou os momentos em que ajudou desconhecidos, pequenos gestos que iluminaram dias cinzentos. A flor parecia exalar uma energia que aquecia a alma, uma lembrança de que o verdadeiro amor não conhece fronteiras.

No canto mais sombrio do jardim, uma flor negra e solitária chamou a sua atenção. Era de uma beleza misteriosa, quase assustadora.
— Eu sou o amor perdido, o reflexo das despedidas e das saudades. Não sou mau, sou o contraste necessário para valorizares os outros amores.

Ao tocar a flor, Lara sentiu uma pontada de tristeza, mas também de aceitação. Lembrou-se de partidas, de despedidas dolorosas, mas percebeu que o amor perdido nunca é esquecido, transforma-se em memórias que moldam quem somos.

Por fim, chegou ao centro do jardim, onde uma flor dourada irradiava luz suave, como se guardasse o próprio sol no coração das suas pétalas.
— Eu sou o amor universal — disse a flor, com uma voz que parecia ecoar em todo o jardim. — Sou a essência da vida, o elo que conecta tudo o que existe. Sem mim, nada floresce.

Lara tocou a flor dourada e sentiu o seu coração expandir, como se todo o universo fosse-lhe revelado. Era um amor maior, que transcendia todas as formas que encontrara até ali, unindo-as num ciclo eterno de dar e receber.

Quando deixou o jardim, Lara não era mais a mesma. Cada flor que encontrara representava um pedaço da sua alma, um reflexo das complexidades do amor. Compreendeu que amar não é uma experiência única, mas um mosaico infinito, onde cada peça tem o seu lugar.

Ao regressar à sua vida, Lara sentiu-se renovada. O mundo parecia maior e mais luminoso. Estava pronta para amar — e ser amada — em todas as formas possíveis, sabendo que cada amor, na sua diversidade, fazia parte do mesmo jardim que florescia no seu coração.

20 de janeiro de 2025

Verdades

Beba água onde o cavalo bebe. 
Um cavalo nunca beberá água ruim.
Estenda sua cama onde o gato dorme tranquilo.
Coma a fruta que foi tocada por uma minhoca.
Sem medo colhe os cogumelos onde os insetos se pousam.
Plante uma árvore onde a toupeira escava.
Construa uma casa onde as cobras tomam sol.
Cave um poço onde os pássaros se escondem do calor.
Vá dormir e levante-se ao mesmo tempo que as aves, você colherá os grãos de ouro da vida.
Coma mais verde, você terá pernas fortes e um coração resistente, como a alma da floresta.
Olhe para o céu mais vezes e fale menos, para que o silêncio possa entrar no seu coração, seu espírito fique calmo e sua vida se encha de paz.

19 de janeiro de 2025

Fama


Lúcia sempre sonhara com a fama. Desde criança, encantava-se com os aplausos e os holofotes. Aos vinte e cinco anos, o sonho tornou-se real, uma estrela de cinema adorada por milhões. Mas a fama trouxe mais do que imaginara.

Certa noite, ao regressar do set de filmagens, encontrou uma carta na sua mansão, selada com cera preta. Não havia remetente, apenas uma mensagem perturbadora: "Tudo o que brilha tem uma sombra. Estás preparada para a tua?"

Lúcia tentou ignorar o aviso. Mas algo mudou. Sempre que passava pelo enorme espelho da sala, notava uma figura que não correspondia aos seus movimentos. Ao posar para as fotografias, um vulto indistinto aparecia ao fundo. Nos dias seguintes, os sonhos tornaram-se pesadelos, um murmúrio constante ecoava no escuro, como uma plateia invisível aplaudindo freneticamente.

Com o tempo, Lúcia começou a sentir-se observada, mesmo quando estava sozinha. O vulto no espelho ganhou contornos, um rosto pálido, com olhos vazios e um sorriso largo, que parecia sussurrar algo inaudível. Lúcia gritava, mas ninguém ouvia.

Uma noite, enquanto descia para a cozinha, ouviu passos atrás de si. Ao virar-se, viu a sombra, agora completamente sólida. Era ela mesma, mas mais alta, mais esguia, com uma expressão distorcida de prazer.
— Quem és tu? — perguntou Lúcia, tremendo.
— Eu sou aquilo que criaste — respondeu à sombra, com uma voz seca. — A fome por aplausos. A máscara que usaste. Eu sou o preço da tua fama.

Lúcia tentou fugir, mas a sombra perseguiu-a. Cada canto da casa estava ocupado por imagens suas: cartazes, prémios, capas de revistas. A sombra crescia com cada memória de glória.

Quando a manhã chegou, Lúcia desaparecera. No espelho, uma única frase escrita a sangue: "A fama tem um custo. Eu sou o teu."

As luzes apagaram-se, e o mundo esqueceu o nome de Lúcia. Afinal, uma nova estrela surgia, pronta para pagar o mesmo preço.

A BELA E O MONSTRO – O Musical!

Após o grande êxito de “A Bela Adormecida”, que foi visto por milhares de jovens espectadores e adultos, considerado “o melhor espetáculo para a Infância e Juventude”, Filipe La Féria escreveu e musicou uma nova adaptação de A BELA E O MONSTRO, inspirada no célebre filme do poeta surrealista Jean Cocteau, a partir do conto homónimo de Jeanne-Marie Leprince de Beaumont escrito em França em 1740.

A BELA E O MONSTRO, na versão original de Filipe La Féria, é um grande espetáculo para toda a família onde a beleza está nos olhos de quem vê e o Amor verdadeiro se esconde não na aparência mas na bondade e do coração humano.

Com um elenco de atores, cantores, bailarinos, músicos, cenários e figurinos deslumbrantes que irão transformar o palco do Teatro Politeama num mundo de mistério, encanto e fantasia que transportará crianças e adultos para as asas mágicas da poesia e do sonho.

“É à noite que é belo acreditar na luz” – in “A Bela e o Monstro”

18 de janeiro de 2025

Mulher Falcão

 

Na Itália do século XII, Philippe Gaston, "O Rato" (Matthew Broderick), é um ladrão condenado a execução que escapa das masmorras de Áquila, através dos esgotos, e foge para o campo. O Bispo de Áquila (John Wood) envia o seu Capitão da Guarda Marquet (Ken Hutchison) para caçar Phillipe; ele e seus soldados encontram Philippe, mas são frustrados por um misterioso cavaleiro negro que revela ser seu ex-capitão, Etienne de Navarre (Rutger Hauer), viajando com um falcão belo e dedicado. Marquet avisa ao Bispo sobre o retorno de Navarre, que entre outras coisas solicita a convocação de Cezar (Alfred Molina), o caçador de lobos.

Navarre diz a Philippe por que o salvou: ele precisa de um conhecimento que é único de Philippe, para levá-lo para dentro de Áquila e matar o Bispo. Enquanto viajam, Philippe se torna ciente de eventos misteriosos e assustadores que os rodeiam, incluindo o aparecimento a noite de um lobo negro e de uma mulher notavelmente linda (Michelle Pfeiffer), a qual não teme o lobo.

Navarre e o falcão são feridos em outro encontro com os homens do Bispo; Navarre envia o falcão com Philippe ao velho monge Imperius (Leo McKern), para curá-la. No castelo em ruínas, Philippe finalmente percebe a verdade, a qual é confirmada por Imperius: o falcão é uma mulher chamada Isabeau d'Anjou (Michelle Pfeiffer), que veio viver em Aquila depois que seu pai morreu em Antioquia (veja A Primeira Cruzada). Todos os que a viam apaixonavam-se por ela, inclusive o poderoso e corrupto Bispo. Mas Isabeau já amava o capitão da Guarda dele, Etienne Navarre, com quem ela secretamente se encontrava sem ninguém saber.

Acidentalmente traídos por seu confessor, Imperius, eles fugiram. Em seu ciúme doentio, o Bispo fez um pacto demoníaco para garantir que eles estariam "Sempre juntos, eternamente separados": durante o dia Isabeau transforma-se num falcão, de noite Navarre se transforma em um lobo negro. Nenhum deles tem qualquer memória da sua meia-vida em forma de animal, somente no anoitecer e no amanhecer de cada dia eles podem ver um ao outro em forma humana por um momento fugaz, mas nunca podem tocar-se.

Em desespero Navarre planeja matar o Bispo, ou morrer na tentativa, tornando a maldição irrevogável. Mas Imperius descobriu uma maneira de quebrar a maldição: ele e Philippe têm que convencer os amantes a tentar. Se eles conseguirem vencer as aventuras que lhes ocorrerão (incluindo um encontro com Cezar), no prazo de três dias, um eclipse solar em Aquila vai criar "um dia sem noite e uma noite sem dia": quando os amantes estiverem juntos em forma humana diante do Bispo, a maldição será quebrada.

14 de janeiro de 2025

Basmatti Blues

Uma brilhante cientista é transferida de seu cargo em um laboratório da empresa em que trabalha e é enviada para a Índia para vender o arroz geneticamente modificado que ela criou. Ela descobre, porém, que a sua invenção está causando altos danos para aquela sociedade.

8 de janeiro de 2025

Desassossego do alfaiate

Actividade do desassossego 
Até 300 palavras
Palavra no fim e no início: Não 
Frase no meio: "Tem gente que cose para fora eu coso para dentro". Clarice Inspector

Não era possível encontrar sossego naquela sala de costura. Ernesto, o alfaiate mais célebre da vila, vivia num turbilhão de ideias e de stresses. Entre as agulhas, botões e linhas, havia um emaranhado de pensamentos que ele não conseguia desembaraçar. 
Naquela tarde, quando dona Olga entrou com o seu vestido de cetim, Ernesto já estava à beira de um ataque de nervos. 
"Preciso disso para o casamento da minha sobrinha! Mas, por favor, nada extravagante. Só um pequeno ajuste aqui e ali." O que parecia simples para qualquer costureiro comum era para Ernesto um dilema filosófico. 
Ele olhou para o vestido como quem encarava um enigma. "Tem gente que cose para fora, eu coso para dentro", murmurou, enquanto a tesoura tremia na sua mão. Olga franziu a testa. 
"Como assim para dentro, Ernesto?!" 
"É o desassossego, dona Olga! Cada ponto que dou, é como costurar a minha própria ansiedade. Sabe o que é isso? Colocar cada pedacinho da alma numa bainha? É um trabalho perigoso!" 
Olga, sem paciência, revirou os olhos. 
"Só quero um vestido que me sirva!" 
Entre as linhas que se embaraçavam e um Ernesto cada vez mais perdido nas suas reflexões, o vestido começou a ganhar vida, mas não como esperado. A barra estava torta, os ombros assimétricos e um zíper improvisado apoiava como obra de arte moderna. 
"Pronto!", exclamou Ernesto, suado, porém orgulhoso. 
Olga, atónita, vestiu-se.
"Isso é uma piada, Ernesto?! Parece que vesti o desassossego em pessoa!" 
Ele, com ares de um artista incompreendido, rebateu: "Minha senhora, é uma obra de vanguarda!" 
Olga saiu bufando, com o vestido na mão e Ernesto, aliviado, finalmente encontrou um instante de paz. Mas ao olhar para a pilha de encomendas, suspirou: "Não."

5 de janeiro de 2025

Depois da Tempestade

 

Tudo parecia normal naquela manhã, até que o céu começou a escurecer de maneira antinatural. Era como se uma mão invisível apagasse a luz, deixando apenas sombras opressivas. O ar ficou pesado e então a tempestade veio, implacável. 
Uma chuva torrencial desabou com a violência de uma ira ancestral, acompanhada por trovões e relâmpagos tão intensos que faziam vibrar não só as janelas, mas as almas.
Em minutos, as ruas foram curvadas por rios furiosos. Os túneis tornaram-se armadilhas aquáticas, engolindo carros que flutuavam, impotentes. Os gritos misturavam-se ao som do vento, um coro de pânico e desespero. As pessoas lutavam contra a corrente, enquanto outras, encurraladas em telhados, erguiam as mãos num apelo desesperado. A força da água parecia viva, implacável.
Uma árvore centenária foi arrancada do solo como se fosse feita de papel. As telhas, as placas e os destroços eram arremessados pelo ar. 
Dentro de casa, Clara assistia ao caos pela janela, tinha os olhos cheios de medo. A água já começava a infiltrar-se pelo primeiro andar. Os seus filhos, encolhidos ao seu lado, choravam de pavor.
— Vai ficar tudo bem — mentiu Clara, enquanto apertava os pequenos contra si. O coração martelava no seu peito. Cada estalo da madeira, cada ruído do vento pareciam presságios de um fim iminente.
Decorreram-se horas até que a tempestade, finalmente, começou a ceder. A chuva tornou-se um sussurro e o vento perdeu a sua fúria. Um silêncio espectral envolveu a cidade, tão denso que parecia carregar o eco do sofrimento. Clara, com as pernas trémulas, abriu a porta. A lama cobria tudo e o ar cheirava a destruição.
A visão era desoladora, os carros empilhados como brinquedos, as árvores despedaçadas, as casas mutiladas. Mas algo brilhou entre as nuvens despedaçadas. O sol, tímido, surgiu, lançando uma luz cálida sobre um cenário de ruína. Clara fechou os olhos e respirou fundo, sentindo o calor no rosto.
— Vamos recomeçar — disse aos filhos, a voz firme apesar da dor. A tempestade deixara marcas profundas, mas dentro dela, a esperança permanecia inabalável. Entre os escombros, Clara sabia que o verdadeiro poder estava em resistir e reconstruir.

1 de janeiro de 2025

Comece o ano 2025 com Amor.

Feliz Ano Novo 2025.
Ano de transformação.

30 de dezembro de 2024

A viagem mórbida

O relógio da estação marcava exactamente vinte e três horas quando o último comboio partiu, rasgando a quietude da noite. A locomotiva deslizava pelos trilhos como um predador silencioso e o som compassado do motor era a única companhia da escuridão. Lara, envolta num casaco que pouco fazia contra o frio, ajustou-se no assento. O veludo, outrora rico e convidativo, estava agora desgastado e áspero ao toque, refletindo anos de abandono.
O vagão permanecia vazio. A ausência de outros passageiros criava um silêncio quase palpável, apenas interrompido pelo ritmo hipnótico dos trilhos. Lá fora, o mundo parecia ter sido engolido por uma noite eterna. A paisagem era um abismo escuro, sem qualquer sinal de vida ou luz. Nenhuma aldeia distante, nem estrelas ou lua para quebrar o vazio. Ela observou o cenário, sentindo um desconforto que crescia à medida que os quilómetros passavam.
“É como viajar por um sonho quebrado”, pensou, tentando afastar a sensação de estranheza.
O comboio avançava e o embalo dos movimentos começava a agir sobre ela. As pálpebras tornaram-se pesadas e o cansaço acumulado finalmente venceu. Por breves momentos, entregou-se a um sono inquieto, embalado pelo som monótono do metal contra o metal.
Foi então que um solavanco forte a arrancou abruptamente da inconsciência. O coração disparou e os olhos abriram-se, confusos. Algo estava errado, acontecia alguma coisa. A locomotiva desacelerava, um pouco fora do normal, considerando que nenhuma estação deveria surgir até ao destino. Espreitando pela janela, os seus olhos fixaram-se numa placa enferrujada que emergia do escuro como um fantasma. As letras desbotadas formavam uma mensagem simples, mas carregada de um presságio terrível: “FIM DA LINHA”.
Um arrepio percorreu-lhe o corpo e apertou o casaco contra si, tentando afastar os calafrios. Aquele nome, aquela paragem, não fazia parte da rota. O comboio parou por completo. Um silêncio mais profundo do que qualquer outro instalou-se. As luzes do vagão começaram a piscar sem cessar, lançando sombras em movimento contra as paredes e o chão, criando formas escuras que pareciam dançar na periferia da visão.
— Está tudo bem? — perguntou a si mesma, mas as palavras soaram ocas, como se não pertencessem àquele lugar.
A luz extinguiu-se de vez, mergulhando-a numa escuridão densa. Lara respirou fundo, tentando conter o pânico. Os seus sentidos pareciam amplificados pelo vazio ao seu redor e foi então que ouviu o primeiro som, os passos.
O eco suave e arrastado vinha do longo corredor, aproximando-se lentamente. O som ressoava no vagão como se estivesse dentro da sua própria cabeça. Ela engoliu em seco e tentou falar, mas a voz saiu trémula.
— Condutor? — chamou.
Os passos cessaram abruptamente. Por um momento, a tensão era insuportável. E então, veio a risada. Baixa, rouca, quase animalesca, parecia um murmúrio feito para ser ouvido unicamente por ela. Sentiu o pânico crescer, e num movimento instintivo, virou-se, mas encontrou apenas o corredor vazio.
Tentou ligar a lanterna do telemóvel. O ecrã permaneceu negro, indiferente aos seus esforços. O som voltou, desta vez algo mais pesado a ser arrastado. Veio de trás. Ela congelou, incapaz de se virar imediatamente. Quando finalmente reuniu coragem, avistou uma sombra no extremo do vagão.
A figura moveu-se. Alta, esguia, com uma postura antinatural, deslocava-se como uma marioneta desajeitada. O rosto, agora visível graças a um breve lampejo das luzes, era desumano. Pálido e macabro, com olhos que eram apenas dois enormes buracos negros, onde não existia qualquer traço de vida. Um sorriso sombrio distorcido alargava-se por uma boca que parecia maior do que deveria ser.
— Não deverias ter vindo — sussurrou a criatura, com a voz fria como gelo a cortar a atmosfera.
Recuou, os músculos recusando obedecer ao instinto de correr. Tropeçou nos assentos e caiu, sentindo o impacto nas costas. Tentou arrastar-se para longe, mas antes que pudesse escapar, as mãos geladas agarraram-na pelos ombros com uma força brutal. Não houve tempo para gritar. O rosto da entidade estava agora a centímetros do seu, e os olhos, ou a ausência deles, sugavam-na para uma escuridão que parecia infinita.
Quando abriu os olhos, já não continuava no comboio. A neblina envolvia tudo, impossibilitando distinguir onde estava. Ecos de risadas e murmúrios cruzavam o ar, e à medida que os seus olhos se ajustavam, começaram a surgir os rostos. Desfigurados, contorcidos pela dor e pelo medo, olhavam para ela com uma intensidade esmagadora.
— Não há saída — murmurou uma voz, baixa e inexorável.
Lara gritou, mas o som perdeu-se naquele vazio que parecia sem fim. Estava presa. Um limbo onde o tempo não existia e os horrores eram intermináveis.
O comboio, no entanto, reiniciava a sua marcha. De fora, qualquer transeunte poderia jurar que era apenas uma viagem comum. No interior, porém, o horror aguardava pacientemente pela próxima vítima.

28 de dezembro de 2024

Reflexões de um Ano Bissexto

Este ano pareceu passar mais rápido que os outros, como se os dias extras de um ano bissexto tivessem sido roubados pelo tempo. Foi um período especialmente desafiador. Completar os cinquenta anos trouxe não apenas a marca inevitável do tempo, mas também uma clareza inquietante sobre tudo o que está errado à minha volta, as dores inexplicáveis que carregamos e os conflitos que surgem do nada, pesando sobre nós como tempestades inesperadas.

Vejo as famílias desfeitas pela soberba e por julgamentos implacáveis, onde a cobardia se sobrepõe ao perdão, mesmo entre aqueles que deveriam saber mais pela experiência de vida. Percebi que muitos conflitos desnecessários persistem, alimentados pelo silêncio e pela ausência das palavras certas nos momentos cruciais. Ainda assim, acredito no poder transformador do perdão. Como diz o provérbio: "O perdão não muda o passado, mas enriquece o futuro."

Outro pensamento que me acompanhou foi: "A cobardia veste-se de desculpas e arrependimentos tardios." Quantas vezes nos deixamos dominar pelo medo, que nos paralisa e impede de estendermos a mão ou pedirmos desculpa? E a soberba, que transforma pequenos em gigantes ilusórios, apenas para ser desmascarada pela verdade, é bem capturada pelo provérbio: "A soberba faz do pequeno um gigante, até que a realidade o derruba."

Ao refletir, percebo que errar é inevitável, um traço inquestionável da condição humana. Falhar como cônjuge, pai/mãe ou filho(a) faz parte da vida. Não temos manual para enfrentar certas situações e cada um carrega a sua quota de falhas, desde as palavras ditas no calor do momento até aos silêncios que deveriam ter sido preenchidos por gestos ou abraços. 

Cada erro deixa marcas, algumas visíveis, outras enterradas no fundo da alma. Contudo, ao olhar para trás, vejo que essas falhas foram valiosas. Elas moldaram não apenas quem sou, mas também como me relaciono com aqueles que amo. O que realmente importa não é a perfeição, mas o valor que damos ao presente. É no agora que reside a possibilidade de reparar, de cultivar as conexões profundas e genuínas. O passado ensina-nos com a sua dureza, mas o presente oferece-nos a oportunidade de aplicar essas lições, amar com mais intenção e estar verdadeiramente presente, não apenas fisicamente, mas de coração aberto e atento.

Aprender nunca termina. As lições estão em tudo, no sorriso de um filho, no olhar silencioso de um cônjuge ou até mesmo na dor de um desentendimento. Cada emoção que sentimos, seja na alegria, na tristeza, na raiva ou na tranquilidade, carregamos algo a ensinar. É através dessas experiências que nos moldamos e aprendemos a enxergar o mundo com todas as suas imperfeições e belezas.

E assim, percebo que o caminho para ser melhor não é isento de falhas. Pelo contrário, é trilhado ao aceitarmos as nossas imperfeições, ao pedir desculpas quando necessário e ao recomeçar sempre que possível. No final, é o esforço contínuo de aprender, crescer e amar que define quem somos.

Este ano foi marcado por batalhas internas e tensões que testaram a minha capacidade de compreensão. Foram conflitos invisíveis, travados dentro de mim, onde as dúvidas, os medos e as incertezas assumiram formas inesperadas. No entanto, no meio desse turbilhão, encontrei algo surpreendente, as pequenas mudanças positivas que, embora discretas, trouxeram um alívio. Cada dificuldade parecia carregar consigo uma semente de crescimento, uma lição oculta que, aos poucos, começou a florescer.

Com a chegada do Natal, um misto de emoções tomou conta de mim. As saudades intensas e a tristeza ecoaram como uma melodia persistente, acompanhadas por um toque de negativismo, como se as sombras das batalhas passadas ainda pairassem. Mas, entre essas emoções, emergiu algo mais forte, a vontade de mudar e de viver com paz.

O Natal trouxe consigo um desejo quase urgente de criar memórias. Não apenas para preencher os álbuns ou as gavetas, mas os momentos vividos de forma tão plena que o seu impacto perdurasse no tempo. Talvez seja isso que o Natal simboliza, a capacidade de recomeçar, renovar a esperança e acreditar que, mesmo após um ano difícil, há sempre espaço para o amor, a partilha e novos começos.

Dizer que o ano de 2025 é o ano da família pode simbolizar renovação e reconciliação. A família é sempre essencial, e essa importância torna-se ainda mais evidente durante o Natal.

Apesar de sentir que amadureci, a minha criança interior permanece viva. É essa essência que mantém a esperança acesa, a certeza de que haverá um momento para dizer tudo o que ainda precisa ser dito.

Tal com a Analita diz, “A vida é um presente a desembrulhar, um dia de cada vez”.

Boas Entradas para 2025, que seja sempre melhor que o anterior.

26 de dezembro de 2024

Natal em Família

Quatorze à mesa, um laço de união,
Entre risos, memórias e recordação.
Crianças brincando, canções a soar,
No frio lá fora, calor a vibrar.

Pratos servidos com gosto e cuidado,
Sabores que unem, carinho ao lado.
Troca-se afeto, dá-se a essência,
Recebe-se paz, cultiva-se a presença.

No olhar de um filho, no abraço apertado,
A magia do Natal é amor partilhado.
Convívio sincero, sem pressa ou razão,
A alegria nos sorrisos é a maior emoção.

Enquanto a lareira o ambiente aquece,
O frio lá fora apenas esquece.
Aqui, a família é sempre o central,
E mais evidente se torna no Natal.

21 de dezembro de 2024

17 de dezembro de 2024

Espírito de Natal

Com alicate, ajeito a decoração,
No pinheiro brilham luzes de emoção.
Esponja de banho? Presente encantado,
Entre risadas, todos bem animados.

Um clip segura cartões de carinho,
Desejos sinceros no nosso caminho.
A pá recolhe os brilhantes do chão,
E o alho-francês perfuma o caldeirão.

Contos e cantorias rompem o silêncio,
A noite é festiva, amor tão intenso.
O espírito natalício aquece e floresce,
E a união da família jamais esmorece.

16 de dezembro de 2024

Um sábado bem-passado

A manhã começou serena, com um passeio tranquilo ao lado da minha cadela Loira, junto ao riacho. Um café e uma conversa leve, cheia de palavras soltas que dançavam no ar, com o meu companheiro.

Perto do meio-dia, peguei no carro e segui devagar a caminho do sarau da minha sobrinha mais nova, acompanhada pela mais velha. O sábado em Miraflores estava movimentado, com muitos carros estacionados em cima do passeio. Fiz o mesmo.

Sentámo-nos nos bancos de cimento, que desta vez, estavam cobertos com resguardos, afastando o frio. O tempo passou num instante, entre as entradas de grupos, das crianças aos mais velhos, muitas palmas, vídeos e brincadeiras. Quando tudo terminou, as meninas foram almoçar e preparar para a tarde. E caminhei até ao carro. Ao ver os papéis presos nos vidros dos outros carros, percebi, que já tinha uma multa. Bah!

Fiz uma pausa numa bomba de gasolina, onde tinha uma área de serviço e aproveitei para comprar uma sandes, um sumo e um café. Depois, segui caminho para o Palácio Baldaya. Entrei por trás, por uma entrada que parecia meio-abandonada. Mas, ao aproximar-me do palácio, senti-me deslumbrada, que lugar lindo, um verdadeiro tesouro escondido em Benfica!

À entrada, uma parede estava adornada com uma pintura enorme e vibrante. No jardim, uma árvore iluminada por luzes de Natal, havia mesas e cadeiras dispostas ao ar livre em que, criavam uma atmosfera encantadora.

Lá dentro, uma exposição de ‘puzzles’ capturou-me imediatamente. Era ali que iria acontecer o lançamento do livro. Mas as imagens dos ‘puzzles’ eram fascinantes nos mapas, monumentos icónicos, Los Angeles à noite, Lisboa, Taj Mahal, África, Sagrada Família, Torre Eiffel. E, claro, as impressionantes torres de Pisa e o Coliseu, em 3D. Como fã de ‘puzzles’, fiquei completamente fascinada.

Encontrei as minhas colegas e a formadora da minha formação de escrita, algumas delas conhecia apenas pelos “quadradinhos” das videochamadas das dinâmicas.

Estava quase a começar o evento, o lançamento do livro 'Sublime Querer'. Duas das três autoras, a Paula e a Cláudia, são pessoas que admiro profundamente, pelas histórias que tem, pelo carácter e pelas dinâmicas que fazem. A apresentação foi breve, mas cativante, despertando a vontade de mergulhar nos contos. Vou seguir o conselho: ler um conto por dia e dedicar vinte e quatro horas para reflectir.

Os autógrafos, as trocas de palavras com as colegas e as fotos tiradas pelo fotógrafo tornaram tudo ainda mais especial.

Antes de anoitecer, segui rumo à casa da minha mãe. Troquei de roupa, maquilhei-me e vesti um lindo casaco azul com pêlos. Quando a minha mãe e os meus tios chegaram, ficaram boquiabertos: “Uau! Estás linda, pareces uma fada madrinha!”

À noite, parti para a festa de Natal da empresa. Entre as conversas animadas, um copo de sangria, música da nossa época e dançar até os pés doerem, a noite fluiu como um sopro, cheia de alegria, convívio e descontração.

Cheguei a casa às três da manhã. Exausta, mas com o coração cheio.

15 de dezembro de 2024

Divisões

No silêncio da casa vazia, Sofia observava as rachaduras nas paredes, as linhas que pareciam se multiplicar a cada dia. Antes, eram quase invisíveis, um detalhe menor na paisagem do lar, mas agora cortavam o reboco em trajetos sinuosos e profundos, como cicatrizes que a casa se recusava a esconder.
O técnico garantira: “é um assentamento normal.” Sofia tentara acreditar, mas algo naqueles traços irregulares a fazia sentir-se observada. À noite, os sons aumentavam. Pequenos estalos ecoavam pela madeira e pelas paredes, formando um compasso que a inquietava. Todas as madrugadas, às 3h13, o relógio da sala parava, como se o tempo obedecesse a um ritual sinistro. Os objetos surgiam deslocados. Os livros invertidos, os quadros tortos, um vaso quebrado que ela não se lembrava de ter tocado. E havia os sussurros. Baixos, indistintos, mas inegáveis, pareciam sair de dentro das paredes. Naquela noite, os estalos vieram mais fortes. Sofia, já acostumada, pensou em ignorá-los, mas o som tornou-se um estrondo avassalador que fez o chão tremer. Correu para a sala e parou, aterrorizada, ao ver as rachaduras se alargando diante dos seus olhos. Elas não só cortavam a parede como a rasgavam. Em segundos, um vazio negro pulsante tomou o lugar do reboco. Sofia tentou gritar, mas a sua voz falhou. Um frio gelado percorreu o ambiente e uma sombra emergiu do vazio, movendo-se como um líquido denso. Paralisada, ouviu a fantasma sussurrar, com uma voz que parecia vir de dentro da sua própria mente: “Estás dividida como esta casa. Escolhe.” Sofia sabia do que se tratava. A dor das decisões adiadas, das escolhas que jamais teve coragem de fazer, materializava-se ali. Mas quando tentou responder, percebeu que já era tarde. A sombra avançou, envolvendo-a num abraço opressivo. Enquanto o vazio a consumia, os estalos cessaram. As rachaduras começaram a desaparecer, fechando-se como feridas que finalmente cicatrizavam. A casa silenciou e o relógio voltou a marcar o tempo. Para quem passava por ali, era apenas mais uma casa antiga, mas Sofia nunca mais foi vista, exceto por um vulto no reflexo das janelas à noite.

12 de dezembro de 2024

HISTÓRIA DAS RABANADAS

Pão Velho, Povo Sábio 

O que é uma rabanada? Não, a sério, vamos lá desmontar isto como deve ser. 
A rabanada é um monumento gastronómico ao génio humano, ou, mais concretamente, ao génio português. 
Enquanto o restito do mundo olha para pão duro e pensa: "Lixo..." O português olha para o mesmo pedaço de pão e diz: "Huummm... que bela sobremesa."

Isto diz muito sobre o valente e imortal povo lusitano. 
Somos um povo que transforma dificuldades em iguarias, o que não é surpreendente se considerarmos que também transformamos bacalhau seco em mil e uma receitas, numa verdadeira religião dedicada à gastronomia, e chamamos “sopa” a uma mistura de água, couves e meia batata.
Ora, as rabanadas nasceram, como tudo o que é bom em Portugal, da necessidade acutilante em sobreviver e ser feliz com o que a vida nos dá. 

Antigamente, nas nossas maravilhosas aldeias, pão era coisa séria. Fazia-se em grandes quantidades, porque ir ao forno comunitário dava muito trabalho. 
E o que não se comia fresco ficava para o dia seguinte, ou para o outro, ou para quando tivesse idade para votar. Deitar fora!? Nunca!!!
Pão velho fora é quase um crime em terras lusitanas. Assim, um daqueles portugueses mais audazes, num daqueles rasgos de criatividade que só a fome aguça, pensou: “E se mergulhasse este pão seco em leite quente, levasse a fritar e ainda apanhasse com açúcar e canela?” 

E pronto, assim nasceram as rabanadas.
Uma receita que é simultaneamente uma declaração de amor ao pão e uma afronta à dieta. Por isso se comem só no Natal, habitualmente...
A receita tradicional, que ainda hoje se faz pelas nossas aldeias, não mudou muito. Porque, sejamos honestos, quem é que quer mexer numa obra-prima? 

Primeiro, pega-se no pão de forma ou, idealmente, no pão caseiro, daqueles que parecem ter sido feitos com o esforço de um lenhador e o carinho de uma avó. 
Depois, cortam-se fatias generosas. Nada de modernices nem fosquices, nada de fatias finas. Aqui, a generosidade é uma virtude. 
A seguir, ferve-se o leite com casca de limão e um pau de canela, porque até o leite em Portugal tem direito a um pouco de luxuosidade. 

O pão mergulha no leite, mas só o suficiente para ficar ensopado, não queremos rabanadas a dissolverem-se como sonhos desfeitos pelo exagero. 
Passa-se pelo ovo batido e, então, vai à frigideira, onde encontra o seu destino glorioso: óleo a ferver. 
Uma vez douradas, as rabanadas apanham com uma mistura de açúcar e canela que até sorriem, porque o português acredita que o açúcar melhora qualquer coisa, incluindo o colesterol.

E pronto. As rabanadas estão prontas e a cozinha agora cheira a Natal, a aldeia, a infância, às nossas avós. 
Sentamo-nos à mesa, de faca e garfo em punho, para fazer justiça a esta obra de arte culinária. 
E enquanto as saboreamos, lembramo-nos de que somos um povo que, com pão velho e umas migalhas de imaginação, conseguiu criar um símbolo que traduz a arte de ser feliz com o que a vida nos oferece. 
Um símbolo que diz: “Não importa o quão duro esteja o pão da vida. Com açúcar e canela, tudo se aguenta.”

Texto: Manuel Muralhas

11 de dezembro de 2024

Dinamica Dezembro

Auguste Rodin foi um escultor francês do século XIX que revolucionou a escultura moderna. Para além das reconhecidas modulações das superfícies, de inspiração impressionista, também desenvolveu a escultura parcelar, ou seja, que não era a figura humana na totalidade ou o tradicional busto. "A mão de Deus"é um desses fantásticos objetos pétreos.
Também na literatura o discurso pode ser modelado a partir de uma parcela corporal, como as mãos, a mão solitária, quase sem sujeito.
DESAFIO:
- TEMA: a mão;
- TAREFA: escrever uma breve ficção apenas narrando uma mão;
- O sujeito da mão não pode ser descrito física ou psiquicamente;
- Uma mão tem 5 dedos, 5x9=45, 45+9=56; 56+5+6= 67; Usar 67 palavras exatas;
- O narrador é na primeira pessoa (eu), pode ser a mão ou o sujeito da mão, e fala com um destinatário que trata na segunda pessoa (tu);
- DESAFIO: não pode usar nenhuma letra T;

Eu deslizo por superfícies enrugadas,
os dedos dobrados e linhas marcadas de jornadas.
Na minha presença, segues o compasso da minha dança silenciosa.
Inclino-me, recolho as migalhas ou sombras esquecidas.
Exploro as asperezas e as doçuras suaves.
Com energia, desenho as formas no ar.
A cada sinal guardo memórias, nas dobras, uma narração.
Apenas olhas, mas nunca alcanças.
Eu avanço, deixando pegadas que logo se desfazem.

8 de dezembro de 2024

Intimidade

Na penumbra do quarto, Clara sentiu as mãos de Marco deslizando sobre a sua pele. O calor do toque era real demais para um sonho, mas uma sensação de frio pesado instalava-se no seu peito. A cada carícia parecia trazer uma lembrança, mas também um peso que ela não sabia nomear. Lentamente, abriu os olhos. Marco não estava ali. O espelho em frente reflectia o quarto vazio, excepto uma sombra alongada atrás dela. Virou-se bruscamente, mas encontrou apenas o silêncio opressivo. Um cheiro de terra molhada invadiu o ar, denso e férreo, trazendo as memórias que Clara há muito tentava enterrar. Marco estava morto havia um ano. O acidente, tão repentino quanto brutal, ainda a atormentava. Mas agora, o toque persistia, quente, familiar e, ao mesmo tempo, aterrador. A porta rangeu, fechando-se devagar e uma brisa gelada fez os cabelos de Clara erguerem-se. Uma voz sussurrou o seu nome, grave e distorcida, como se ecoasse do fundo de um poço. Era o timbre de Marco, mas algo nele soava muito errado. Não era apenas o desejo, mas algo desesperado e faminto. Clara apertou o peito, tentando afastar a sensação de sufocamento. As lágrimas escorriam pelo seu rosto. "Estou aqui," sussurrou a voz quebrada, cheia de dor e esperança. De repente, as mãos voltaram, mais fortes, quase possessivas, envolvendo-a como uma prisão invisível. O espelho trincou, estalando em linhas que pareciam feridas e a sombra cresceu a sua volta. Clara tentou se mover, mas seus membros estavam pesados, como se a escuridão ao redor a absorvesse. No reflexo estilhaçado, vislumbrou um pouco assustador, uns olhos brilhando com uma luz fria e um sorriso que não pertencia a Marco. A última coisa que Clara ouviu foi a voz dele murmurando perto do seu ouvido, num tom amargo, "Nunca te deixarei." O quarto mergulhou numa escuridão total e a casa permaneceu num total silêncio. Ela percebeu que jamais estaria sozinha. Na manhã seguinte, apenas o perfume de terra molhada permanecia no ar, enquanto o quarto parecia mais vazio do que nunca.

7 de dezembro de 2024

Postais Mortíferos

A trama de Postais Mortíferos acompanha o Detetive Jacob Kanon em sua incansável busca pelos assassinos de sua filha. No início, a narrativa leva o público a acreditar que há apenas um assassino em série à solta.

No entanto, à medida que a investigação avança, descobrimos que não se trata de um único assassino, mas de um par de serial killers. Sylvia e Mac Randolph, que inicialmente se apresentam como um casal, são na verdade irmãos, com um passado sombrio e uma obsessão doentia por arte.

Sylvia e Mac, sob identidades falsas, viajam pela Europa, assassinando casais que conhecem ao longo do caminho. Inspirados por sua formação em história da arte, eles recriam obras de arte famosas utilizando os corpos de suas vítimas.

Essas recriações macabras são enviadas em forma de postais, deixando um rastro de horror por onde passam.

A trama se intensifica quando Jacob finalmente desvenda a verdadeira identidade dos assassinos: Simon Jr. e Marina Haysmith. eles são irmãos adotivos que cresceram em um ambiente abusivo e que, ao se reencontrarem, transformaram seu trauma em violência.

O pai adotivo, Simon Haysmith Sr., os criou em meio à manipulação e abuso, o que plantou as sementes de sua loucura.

No clímax do filme, Jacob consegue atrair Sylvia e Mac para uma armadilha, utilizando a jornalista Dessie Lombard como isca. Após uma perseguição intensa, Sylvia e Mac capturam Dessie, planejando fazer dela sua última “obra de arte”.

No entanto, Jacob intervém a tempo, e durante o confronto, Simon Jr. é baleado ao tentar proteger sua irmã. Sylvia, desesperada, arrasta o irmão ferido para a neve, enquanto Jacob decide não persegui-los, acreditando que o ambiente inóspito se encarregará de seus destinos.

Embora Simon Jr. pareça ter sucumbido ao ferimento e ao frio, o filme deixa uma ponta solta ao mostrar que Marina sobreviveu. Em uma cena final perturbadora, ela faz uma ligação para seu pai, Simon Sr., revelando o que fez e mostrando que sua busca por vingança ainda não terminou.

Esse desfecho deixa a porta aberta para possíveis continuações ou simplesmente para que a audiência reflita sobre as consequências da violência e do abuso.

Postais Mortíferos é um thriller que prende a atenção do início ao fim, oferecendo um final que, apesar de trágico, traz um certo senso de justiça para o protagonista, Jacob Kanon.

No entanto, o fato de Marina ter sobrevivido sugere que os fantasmas do passado nunca desaparecem completamente e que a dor e o trauma podem gerar cicatrizes profundas e duradouras.

3 de dezembro de 2024

Ronrons e mimos!

Vou escrevendo um conto e a medida que for dizendo Stop muda de letra do
alfabeto: FHGI.

 F- Foram momentos pensativos. Tiro meio-dia de férias, há que pensar na saúde dos que nos querem bem. Fui para casa da minha mãe, abri a janela, para entrar o sol, fraquinho, mas que ainda tinha força para aquecer. E o cheiro das flores...
H- Há momentos em que tudo o que desejamos é aliviar o peso das dores alheias. Quando vemos alguém a sofrer, uma vontade urgente nos invade, arrancar-lhes os sorrisos, oferecer conforto e distrair das aflições, mesmo que por breves instantes. Tentamos contar anedotas, improvisar uma atmosfera leve e carregar o ambiente com um bom humor quase forçado, mas genuíno no afeto.
Hoje, o consolo veio pela cozinha. Preparei uma canja simples, mas feita com cuidado, uma galinha desfiada sem ossos, nadando em caldo quente com massa de cotovelos, aquele tipo que parece abraçar o paladar. Para o prato principal, um bife grelhado, não perfeito, mas honesto, tão firme quanto uma sola de sapato, acompanhado por umas batatas a murro, que liberaram o seu perfume terroso ao toque do azeite.
E, para adoçar o momento, veio o ápice: uma maçã reineta generosamente polvilhada com açúcar e canela, assada até a doçura derreter na boca.
Cada gesto, cada prato, foi pensado para ser a cereja no topo do bolo. Um pequeno ato de amor para a doentinha, uma tentativa de lembrar que, às vezes, o afeto pode ser servido em colheres, com os bocados e aromas.
G- Golo! Acertei precisamente nas receitas perfeitas para momentos como este. Esperei mais um pouco, observando com satisfação as cores a voltarem lentamente às bochechas da doente. Um pequeno sinal de recuperação que me aqueceu o meu coração. Com a sensação de dever cumprido, arranquei de volta para casa.
Mal cruzei a porta, nem tempo tive para respirar. Assim que me sentei, fui cercada por dois caramelos peludos, os guardiões do meu sossego. Um aconchegou-se ao meu colo, ronronando como se fosse um motorzinho de pura felicidade. O outro encostou-se à minha perna, abanando o rabo como quem diz: "Estivemos à tua espera todo o dia".
Sorri, mas a pergunta veio à mente, será que consigo trabalhar? Talvez escrever algo para as minhas adoradas dinâmicas de aventuras? Mas como posso eu, ignorar aqueles olhos? Eles não pediam, exigiam a minha atenção e mimos, cheios de saudades.
Entre ronrons e os olhares cúmplices, percebi que, naquele momento, escrever podia esperar. Afinal, cada gesto deles era como um capítulo de um conto silencioso, feito de carinho, de lealdade e uma cumplicidade que só o amor genuíno sabe escrever.
I- Iria adiar o trabalho, iria escrever os contos com algumas letras, iria ouvir as outras meninas a contar as suas histórias, as suas aventuras. E dar risadas até cair para o lado, o melhor destes encontros online.

1 de dezembro de 2024

O Espelho Proibido

 

No mundo de Kaelar, os espelhos eram mais do que objetos banidos, eram portais para o inexplicável. As lendas sussurravam sobre os reflexos que não refletiam, mas simulavam, os habitantes de um reino invertido, à espera de uma fraqueza, de um momento para se cruzarem. Ninguém ousava desafiar a proibição, exceto Teryn, um aprendiz de alquimista, o qual a curiosidade era tão afiada quanto perigosa.
Num mercado clandestino, encontrou um pequeno espelho de moldura corroída pelo tempo. Entre as moedas trocadas e os olhares furtivos, sentiu o peso do objeto nas suas mãos, como se algo ali o observasse. Ignorou o arrepio. “Medo irracional,” pensou.
No seu quarto, à luz trémula de uma vela, Teryn ergueu o espelho. A princípio, viu-se como sempre, uns olhos verdes atentos e pele pálida. Mas, algo rompeu a normalidade. O reflexo piscou. Ele, não.
Teryn estremeceu. Largou o espelho, mas a imagem não desapareceu. Pelo contrário, sorriu. Um sorriso largo, desafinado e expondo os dentes afiados.
— Finalmente — disse a figura, numa voz rouca que ressoava dentro da mente de Teryn.
Ele tentou desviar o olhar, mas os seus olhos estavam presos. Os seus braços imóveis, não obedeciam. O reflexo, agora autónomo, moveu-se além do limite do vidro, como se a moldura fosse uma janela aberta.
— Devias ter ouvido as histórias, Teryn — zombou a figura, aproximando-se.
Um frio avassalador tomou conta do aprendiz. Sentiu um puxão, como se algo o sugasse para dentro do espelho, para um vazio gelado e insuportável. Quando o pânico deu lugar à realidade, percebeu que não estava mais no quarto. Ele estava do outro lado.
Do vidro, viu o seu próprio corpo, agora habitado pela criatura.
— Agora é a minha vez no mundo real — disse ela, sorrindo, antes de apagar a vela.
Na escuridão opressiva do mundo invertido, Teryn ouviu sussurros infinitos, as vozes indistintas de outros também aprisionados. Algumas vozes choravam, outras suplicavam, mas as piores eram as que gargalhavam, distorcidas pelo desespero que se transformara em loucura.
E então, entendeu, que ninguém escapava do reflexo.

30 de novembro de 2024

Sinfonia Silenciosa


Nos ecos profundos que o silêncio acalma,

numa nota vibrante, clara e inteira,

um gesto e uma escolha, na nossa palma,

compõem na pauta a melodia verdadeira.

 

O som das decisões, suave ou feroz,

flutua no ar como sopro ou grito,

vibra em cada riso e ténue voz,

no compasso onde o destino é escrito.

 

Há quem toque em harmonia plena,

com acordes de bondade e luz pura,

Há quem perca na alma pequena,

as dissonâncias que a sombra murmura.

 

A decisão, um acorde profundo,

cada erro, um defeito a ecoar,

no final, revelamos ao mundo

as notas que ousamos deixar.

 

A vida, partitura sem maestro,

com vibrações que o peito compreende,

a moralidade, no seu ritmo e gesto,

entre o caos e o sentido se estende.

 

Um concerto aberto, íntimo e constante,

um compasso que vibra sem cessar,

é a sinfonia em tom hesitante,

nos laços que ousamos moldar.

 

Nos espaços entre notas e silêncios,

onde a alma se desnuda e confessa,

é ali que repousa, sem artifícios,

a pura essência que nos atravessa.

 

Autora: Lara Fernandes (Larita Caramela) Enviado (não foi publicada).

27 de novembro de 2024

Dezanove Anos

Hoje não é um dia de tristeza, embora tenha começado com um nó na garganta. São dezanove anos desde que o meu Pai partiu. De ausência que, pouco a pouco, se transformaram numa presença diferente. Não uma presença física, mas algo mais profundo. Ele representa um pouco, nos meus gestos, nos nossos risos, nas histórias que conto.

Coloquei flores no meu coração, como sempre faço. Ele dizia que os pequenos gestos tinham poder e agora entendo por quê. Era assim que ele era, uma força constante, até quando as coisas não iam bem.

Ainda encontro muitas pessoas que se lembram dele. “O teu pai… era um homem como poucos. Sempre dizia que a vida era para ser partilhada e fazia isso como ninguém. Principalmente com a família e com as pessoas que amava.”

Aquelas palavras aqueceram-me. Mesmo depois de tanto tempo, havia quem ainda o recordava com carinho. Senti reconhecimento, por ele e pelas memórias que não deixam que a sua essência se perca.

Mais tarde, reunimos em família para um jantar. Até a minha mana, com cara de sono, fez videoconferência connosco por cinco minutos. Não foi um evento triste, até rimos, relembramos as histórias engraçadas. Tenho pena que os mais novos, as netas, não o tenham conhecido. Mas ficam fascinadas com as narrativas, como se ele estivesse presente nelas.

Hoje, não chorei. Não esqueci do dia, nem as pessoas que fazem anos. As saudades continuam aqui, mas dói muito menos. É uma saudade boa, que me lembra o quanto ele foi amado e o quanto ainda é. Ele permanece tão presente entre nós. E muitas vezes, em silêncio e em pensamento, recorro-lhe para alguns receios da vida.

Antes de adormecer, escrevi no meu diário virtual:
Obrigado, Pai, por tudo o que foste e ainda és.
Obrigado a quem te lembra com carinho.
És eterno nas memórias e no amor que deixaste.

E assim terminei o dia, com menos dor e muito mais gratidão.

26 de novembro de 2024

Pais das Maravilhas

Vou escrevendo um conto e a medida que for dizendo Stop muda de letra do
alfabeto: ABCDE.

A-Atirei o pau ao gato, mas ele não se mexeu. Apenas fixava no queijo em cima da mesa, com os olhos a brilhar de desejo. Passava a língua pelos lábios, com vontade de atacar o dito cujo sem perder tempo. Mas, hesitou. Olhou de relance para o lado e viu o presunto. Queijo ou presunto? Parecia ponderar como um ladrão indeciso, planeando o próximo roubo. Os seus olhos arregalados brilhavam de gula, e um fio de baba já lhe escorria pelo canto da boca.

B-Borboleta cheia de cores voava inquieta, procurando onde fazer o seu casulo, preparando-se para, curiosamente, transformar-se... em lagarta. Talvez seja aquela lagarta do País das Maravilhas que fumava como um Lorde ou Lady. 

A menina loira de olhos azuis e vestido branco e azul surgiu correndo, perseguindo um coelho branco de relógio na mão. Ela caiu num poço profundo e aterrou num estranho labirinto com muitas portas e uma sala gigantesca. Lá, uma longa mesa aguardava, cercada de criaturas peculiares. 

C-Coelho branco de cartola e relógio liderava o banquete. Ao lado, uma zebra de chapéu de palhaço exibia o seu estilo extravagante. Um caracol gigante com casaco multicolorido pilotava um volante imaginário, enquanto o elefante Jumbo, com um laço impecável no pescoço, se ajeitava na cadeira. A abelha, com suas riscas amarelo-pretas, lambuzava-se de mel sem pudor. 

Por fim, um crocodilo com dentes afiados e um smoking brilhante completava a mesa. No centro da festa, um peru assado, com uma laranja na boca, que decorava a mesa. Estranho. Animais comendo outro animal? 

D-De repente, do meio das ervas altas, surgiu a lagarta a fumar um cigarro, seguida do gato, agora com um sorriso peculiar em forma de queijo redondo e bocados de presunto nos dentes brancos. O coelho  correu para casa em busca de mais cadeiras, garantindo que todos pudessem desfrutar daquele excêntrico jantar de gala. Com cadeiras extras, a mesa ficou ainda mais caótica. O gato, com o seu riso, acomodou-se ao lado do peru assado, observando tudo com aquele ar enigmático de quem sabe mais do que diz. A lagarta, sempre despreocupada, deu uma longa tragada no cigarro e declarou: 

— Que cena estranha... mas apetitosa. Vamos comer ou filosofar? 

Todos riram, exceto o peru, que permanecia em silêncio. A zebra ajustou o chapéu de palhaço, no alto da sua cabeça e orelhas e respondeu: 

— Aqui não se come. Aqui se imagina comer. 

A abelha, lambendo os dedos melados, levantou a mão: 

— Mas eu comi. 

O crocodilo, ajeitando o smoking, lançou um olhar severo: 

— Abelha, não estragues a lógica do jantar. 

E-Enquanto isso, a menina Alice, perdida e confusa, perguntou: 

— Mas o que faço aqui? Vocês são reais? A lagarta riu e soltou uma baforada de fumaça que tomou o ar. 

— Real é o que acreditas que é. Este jantar é tão real quanto o desejo do gato por queijo ou presunto. O gato ronronou, encantado com a referência. Pegou um pedaço imaginário de queijo e o devorou com satisfação teatral. No meio da confusão, o coelho branco consultou o seu relógio e exclamou: 

— Estamos atrasados! Precisamos brindar! 

Com as taças imaginárias erguidas, todos brindaram a algo que ninguém nomeou. A menina, ainda confusa, percebeu que o peru assado havia desaparecido, substituído por um prato vazio. O gato sorriu largamente, lambendo os bigodes. E assim, entre risadas, a filosofia e um jantar que não era bem um jantar, todos desapareceram um por um, deixando a mesa vazia. 

A menina esfregou os olhos e viu-se novamente no jardim, segurando uma folha colada à testa. Ao longe, o gato desaparecia entre as árvores, com um sorriso de queijo no seu rosto, como se tudo não tivesse passado de um sonho.