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Irmã da Alma, Anjo da Vida

 
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O Prazo entre as Estantes

O tempo não se apaga: repousa. Entre corredores silenciosos, erguem-se estantes como colunas de um templo invisível, guardando séculos de vozes sussurradas em papel. Cada livro é uma raiz de folhas, mas também uma janela, aberta para horizontes que o olhar ainda não alcançou. Aqui, a palavra não é apenas lida: é sentida no cheiro das páginas antigas, perfume da memória que atravessa gerações. Os passos ecoam suaves no soalho, como se cada visitante fosse também parte da história. É o lugar onde o estudante encontra respostas, o idoso reencontra lembranças e o curioso descobre mundos que nunca pisou. Não há pressa dentro destas portas. As horas curvam-se como arcos de pedra, lembrando-nos que o saber floresce na paciência. A biblioteca é refúgio contra o ruído do mundo, espaço de continuidade, onde o humano se reconhece como fragmento de um tempo vasto e herdeiro de um saber que não lhe pertence só a ele. Em Braga, quem por ela passa, leva consigo não apenas palavras, mas o murmúrio...

O Conto do Treze

Era noite de lua minguante, e o silêncio cobria a aldeia como véu pesado. As casas dormiam, mas tu, guiada pelo teu número secreto, caminhavas até a velha ponte de pedra. Passo a passo, contava-os em silêncio. O décimo terceiro era o selo. Não doze, não quatorze. Sempre o treze. Quando o último eco ressoou sobre a ponte, o mundo suspendeu-se. O rio deixou de correr, o vento parou, até os grilos calaram. A noite prendeu a respiração. Foi então que a presença se anunciou, não com passos, mas com a ausência. O ar gelou e um cheiro de ferro húmido, como sangue ou metal esquecido na chuva, subiu da pedra. Antes de a veres, já a sentias, a certeza de algo à tua espera desde sempre. Sentada no parapeito, surgiu a figura: olhos fundos, corpo desenhado mais de sombra do que de carne. — Chegaste, finalmente — disse, com voz que arranhava.. — Não tens medo do número que todos rejeitam? Ergueste o queixo. — Não. O treze é meu. O que eles chamam azar, eu chamo de caminho. A figura sorriu e nesse so...

Chegada

 O último comboio chegou ao cais deserto como um suspiro metálico, arfando vapor pelas gretas enferrujadas. As lâmpadas, embaciadas de pó, vacilavam, e cada clarão parecia denunciar algo que se movia nas sombras. Marta esperava, a mala pequena pendida da mão. Apertava a pega até os dedos lhe doerem. O peso parecia excessivo para tão pouca roupa; por vezes, jurava senti-la oscilar, como se tivesse vida própria. O bilhete no bolso trazia uma única palavra impressa: Chegada . O apito ecoou. Um frio húmido subiu-lhe pelas pernas. As portas da carruagem abriram-se num estertor de ferro. Dentro, bancos gastos, riscados por unhas invisíveis. Silêncio. Cheiro a terra molhada. Sentou-se. As janelas mostravam campos alagados onde presenças imóveis acompanhavam o comboio com olhos que não existiam. Casas sem portas, torres tortas contra um céu sem estrelas. Em cada paragem, o monstro de ferro libertava vapor e sombras subiam a bordo — contornos de fumo, imóveis, todos voltados para ela. ...

Sentir o sonho

 Publicação: Revista Ofélia  A casa dormia de olhos fechados. O soalho guardava o frio dos passos. As paredes, húmidas de murmúrios, respiravam o sal das histórias caladas. Lá fora, o mundo estendia-se imóvel, um campo aberto à espera do tempo. As espigas curvavam-se sem vento, como se escutassem um segredo antigo. Uma silhueta avançava devagar, feita de neblina e retorno. Não era sombra nem carne, mas o eco de algo por nascer. Nos braços, trazia o corpo do sonho, ainda quente, ainda a tremer, como um pássaro indeciso entre o voo e a petrificação. O chão reconhecia-lhe o peso, a memória de passos por vir. Mas o sonho começava a fixar-se e no contorno, ardia a dúvida. Seria milagre ou perda? Se se tornasse real, perder-se-ia a chama. A casa estremeceu no soalho. Veio um cheiro a laranja e terra molhada. As janelas abriram-se devagar, como pulmões a reaprender o ar. No rosto da silhueta, um traço de luz o breve milagre entre o antes e o depois....

Harmonizar o caos

 

Monólogo: Escutem

  Vivemos um tempo em que as pessoas deixaram de conversar. Gritam. Gritam porque acreditam que ouvir é fraqueza, que silenciar é submissão, que a pressa de se impor é mais importante do que compreender. E quando gritam, a minha raiva cresce. Cresce até se tornar quase física, um peso que empurra o peito, enriquece os músculos, prende a respiração. Cresce tanto que deixo de conseguir argumentar, deixo de conseguir explicar.  Ver mais...  

Fogo

A fogueira dança selvagem, rugindo entre os troncos secos, labaredas lambendo o céu escuro. Florestas, outrora verdes, tornam-se cinzas e desertas, silêncios quebrados por estalos ardentes. Animais correm com olhos assustados, buscando refúgio entre pedras quentes. Casas antigas de telhados incendiados, memórias consumidas pelo calor voraz. Fumaça espessa envolve montanhas, carregando cheiro acre e lembranças de verões antigos. Ventos traidores espalham fagulhas, pincelando destruição em cada encosta e vale. Homens e mulheres correm: baldes, mangueiras, coragem em mãos trémulas. No horizonte, o sol luta para aparecer, apagado pelo manto alaranjado. Cada brasa leva fragmentos de contos, sonhos, histórias ancestrais. A natureza refaz-se lentamente, promissora, regenerando-se após a chama.  (Dinâmica: 111 palavras, começa com A e acaba com a, sem verbo ter e ser)

Notas de Carmim

No bairro antigo, de ruas estreitas e fachadas descascadas, Sérgio era apenas o Pintor da Rua das Pombas. Não para vender, mas para manter-se inteiro, sem as telas, sentia-se apenas um vulto à deriva, alguém que caminhava sem deixar pegadas. Todas as manhãs, antes que o sol atravessasse as cortinas de renda do estúdio, ele acordava com um som que parecia vir de outro século, não o canto dos galos nem o motor dos barcos, mas o uivo distante de uma velha sirene . Não era só um ruído, era grave e lento, que marcava a pulsação de um tempo paralelo, como se chamasse não para o trabalho, mas para o que restava da vida. Ouvia-a como quem recebe um recado discreto: “Ainda há algo a criar, antes que o dia te roube.” O bairro parecia ouvir com ele. As janelas fechadas estremeciam ligeiramente, as calçadas prendiam o ar e até os gatos ficavam imóveis, como se também esperassem. Havia dias em que o som se perdia no vento e nesses dias as cores do mundo pareciam-lhe mais pálidas, como se algu...