Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

A mostrar mensagens com a etiqueta Escrita em Acção

Obrigada a mim

  O sol nascia no quarto creme. A luz filtrava-se pelas persianas, desenhando sombras no chão. O ar cheirava a desinfetante e silêncio. O lençol, áspero contra a pele marcada, colava-se à carne como se quisesse lembrar onde doía. E eu, presa entre tubos e cicatrizes frescas, olhava o tecto como quem olha um céu escuro. O silêncio era denso. Só quebrado pelo bip das máquinas, esse compasso metálico da sobrevivência. Ali, o tempo não era tempo. Era espera. Era dor com nome e hora marcada. Não me lembro da última vez que respirei sem dor. O meu corpo era um campo de batalha. A pele, trincheira. Os músculos, soldados exaustos. E as cicatrizes… As cicatrizes eram fronteiras. Terreno conquistado. Cada linha na carne contava o avanço de uma ofensiva vencida a custo. Uma emboscada superada. Um regresso possível.  Lutei. Sozinha. Mas não como nos filmes. Sem música. Sem frases de efeito. Lutei em silêncio. Com o maxilar cerrado. Com a raiva sussurrada para dentro. C...

O Dia do Rei - Alcácer do Sal, outono de 1158

O vento quente que soprava do sul trazia o cheiro a especiarias e mar, mas no campo português, o ar sabia apenas a ferro e suor. O acampamento estendia-se como um animal agachado, feito de tendas, lanças e cavalos impacientes. Um crepúsculo tingia o céu de púrpura e ouro, refletindo-se nos elmos e nas cotas de malha dos homens que afiavam espadas e rezavam em voz baixa. Afonso Henriques observava-os em silêncio. Desde a alvorada que sentia aquela inquietação no peito, não de medo, porque o receio era um luxo de homens fracos, mas algo mais profundo, um pressentimento de que aquela noite ficaria gravada na pedra da história. Virou-se para Pedro Pais da Maia, que surgira à entrada da tenda, o rosto endurecido pelo cansaço e pela expectativa. — O que dizem os batedores? Pedro hesitou um instante, depois deu um passo à frente. — Os mouros esperam um cerco longo. Têm mantimentos para meses e reforçaram os portões com ferro. Há patrulhas a cada duas horas e os caldeirões de azeite ...

Dinamica Dezembro

Auguste Rodin foi um escultor francês do século XIX que revolucionou a escultura moderna. Para além das reconhecidas modulações das superfícies, de inspiração impressionista, também desenvolveu a escultura parcelar, ou seja, que não era a figura humana na totalidade ou o tradicional busto. "A mão de Deus"é um desses fantásticos objetos pétreos. Também na literatura o discurso pode ser modelado a partir de uma parcela corporal, como as mãos, a mão solitária, quase sem sujeito. DESAFIO: - TEMA: a mão; - TAREFA: escrever uma breve ficção apenas narrando uma mão; - O sujeito da mão não pode ser descrito física ou psiquicamente; - Uma mão tem 5 dedos, 5x9=45, 45+9=56; 56+5+6= 67; Usar 67 palavras exatas; - O narrador é na primeira pessoa (eu), pode ser a mão ou o sujeito da mão, e fala com um destinatário que trata na segunda pessoa (tu); - DESAFIO: não pode usar nenhuma letra T; Eu deslizo por superfícies enrugadas, os dedos dobrados e linhas marcadas de jornadas. Na minha presen...

Ronrons e mimos!

Vou escrevendo um conto e a medida que for dizendo Stop muda de letra do alfabeto: FHGI.   F- Foram momentos pensativos. Tiro meio-dia de férias, há que pensar na saúde dos que nos querem bem. Fui para casa da minha mãe, abri a janela, para entrar o sol, fraquinho, mas que ainda tinha força para aquecer. E o cheiro das flores... H- Há momentos em que tudo o que desejamos é aliviar o peso das dores alheias. Quando vemos alguém a sofrer, uma vontade urgente nos invade, arrancar-lhes os sorrisos, oferecer conforto e distrair das aflições, mesmo que por breves instantes. Tentamos contar anedotas, improvisar uma atmosfera leve e carregar o ambiente com um bom humor quase forçado, mas genuíno no afeto. Hoje, o consolo veio pela cozinha. Preparei uma canja simples, mas feita com cuidado, uma galinha desfiada sem ossos, nadando em caldo quente com massa de cotovelos, aquele tipo que parece abraçar o paladar. Para o prato principal, um bife grelhado, não perfeito, mas honesto, tão firme qua...

O Espelho Proibido

  No mundo de Kaelar, os espelhos eram mais do que objetos banidos, eram portais para o inexplicável. As lendas sussurravam sobre os reflexos que não refletiam, mas simulavam, os habitantes de um reino invertido, à espera de uma fraqueza, de um momento para se cruzarem. Ninguém ousava desafiar a proibição, exceto Teryn, um aprendiz de alquimista, o qual a curiosidade era tão afiada quanto perigosa. Num mercado clandestino, encontrou um pequeno espelho de moldura corroída pelo tempo. Entre as moedas trocadas e os olhares furtivos, sentiu o peso do objeto nas suas mãos, como se algo ali o observasse. Ignorou o arrepio. “Medo irracional,” pensou. No seu quarto, à luz trémula de uma vela, Teryn ergueu o espelho. A princípio, viu-se como sempre, uns olhos verdes atentos e pele pálida. Mas, algo rompeu a normalidade. O reflexo piscou. Ele, não. Teryn estremeceu. Largou o espelho, mas a imagem não desapareceu. Pelo contrário, sorriu. Um sorriso largo, desafinado e expondo os dentes afiado...

Pais das Maravilhas

Vou escrevendo um conto e a medida que for dizendo Stop muda de letra do alfabeto: ABCDE. A-Atirei o pau ao gato, mas ele não se mexeu. Apenas fixava no queijo em cima da mesa, com os olhos a brilhar de desejo. Passava a língua pelos lábios, com vontade de atacar o dito cujo sem perder tempo. Mas, hesitou. Olhou de relance para o lado e viu o presunto. Queijo ou presunto? Parecia ponderar como um ladrão indeciso, planeando o próximo roubo. Os seus olhos arregalados brilhavam de gula, e um fio de baba já lhe escorria pelo canto da boca. B-Borboleta cheia de cores voava inquieta, procurando onde fazer o seu casulo, preparando-se para, curiosamente, transformar-se... em lagarta. Talvez seja aquela lagarta do País das Maravilhas que fumava como um Lorde ou Lady.  A menina loira de olhos azuis e vestido branco e azul surgiu correndo, perseguindo um coelho branco de relógio na mão. Ela caiu num poço profundo e aterrou num estranho labirinto com muitas portas e uma sala gigantesca...

Amarrar o burro

Luz das letras 1.    A céu aberto: ao ar livre 2.    Abandonar o barco: desistir de uma situação difícil 3.    Abotoar o paletó: morrer 4.    Abrir mão de alguma coisa: renunciar alguma coisa 5.    Abrir o coração: desabafar, declarar-se sinceramente 6.    Abrir o jogo: denunciar ou revelar detalhes 7.    Abrir os olhos a alguém: alertar ou convencer alguém de alguma coisa 8.    Acabar em pizza: quando uma situação não resolvida acaba encerrada (especialmente em casos de corrupção, quando ninguém é punido) 9.    Acertar na lata: acertar com precisão, adivinhar de primeira 10. Acertar na mosca: acertar com precisão, adivinhar de primeira 11. Adoçar a boca: conseguir um favor de alguém com elogios 12. Agarrar com unhas e dentes: agir de forma extrema para não perder algo ou alguém 13. Agora é que são elas: momento em que começa a dificuldade 14. Água que...

Enumeração

Parto amanhã rumo ao Santiago de Compostela, onde as melhores aventuras acontecem. LEVO:  Uma bússola pequena para encontrar caminhos secretos ( para orientação); Um mapa real para descobrir estradas escondidas (me diz onde estou e para onde vou); Duas botas impermeáveis para alguns terrenos imprevisíveis (uma em cada pé); Duas cordas resistentes para atravessar abismos inclinados (um para descer, outro para subir); Três livros antigos para desvendar enigmas ocultos (um que conta, outro que nega e outro confirma); Quatro lanternas luminosas para noites mais escuras (para cada ponto cardeal); Cinco frascos mágicos para curar ferimentos estranhos (mazelas com olhos, nariz, ouvidos, coração e pés); Seis amuletos protectores para espantar criaturas ferozes (para seis bichos); Sete lápis encantados para enviar mensagens necessárias (as cores do arco-íris).

Deseducando com as Mãos

   As mãos da mãe Júlia, marcadas pelo tempo e pelas responsabilidades, eram firmes, mas guardavam uma suavidade intrínseca, aquela que somente o amor incondicional consegue preservar. Elas seguravam um frágil barco de papel com uma precisão cuidadosa, consciente de que, apesar da sua leveza, carregava os sonhos preciosos. Cada movimento era impregnado de ternura, como se soubesse que aquele pequeno objeto era mais do que papel: era a chave para um mundo que ela mesma ajudava a criar. As mãos do filho João, pequenas, inquietas e cheias de uma energia vibrante, tocavam no barco com uma ansiedade de quem está a desvendar os mistérios do universo pela primeira vez. O toque infantil, desajeitado, mas cheio de vida, dava forma a novas aventuras a cada instante. Os seus dedos percorriam as dobras do papel como se explorassem um mapa desconhecido, em cada linha era um caminho a seguir, um destino a conquistar. Entre as mãos da mãe e do filho, o barco de papel transformava-se. D...

Romance numa adega

Do livro “escrita em dia”. O tema será: “adega escura, tira as luvas de pele das mãos e demora a adaptar a escuridão.” , utilizando um ou vários sentimentos: assustada, feliz, ansiosa, prepara armadilha, alegre, adormecida. Mini-conto de 300 palavras. Personagem pode ser homem ou mulher. Desci à adega em silêncio, onde o ar carregado de uvas e terra repousa nos ombros como um peso antigo. Tirei as luvas de pele, dedo a dedo, e o toque do frio ergueu um arrepio. Na escuridão profunda, onde o tempo não tem pressa, esperei que os olhos se acostumassem à meia-luz que tudo envolve, os contornos surgem devagar, um mundo entre as sombras e os silêncios. Cada passo, um eco abafado, as garrafas alinhadas, os barris vigilantes, um local de encontros e segredos. Em algum lugar, sinto uma presença, um sussurro que me prende, e algo adormecido se desperta. Estou ansiosa, as mãos sem luvas tremem, o coração acelera entre o pó e o silêncio, onde a respiração soa co...

Brincadeira infantil

Na Luz das Letras fizemos um mini-conto com uma brincadeira infantil, com 300 palavras. Era uma noite de inverno e a chuva batia levemente nas janelas da velha casa. Dentro, um grupo de crianças estavam reunidos na sala, cansadas dos jogos de tabuleiro. Foi então que Carlos sugeriu: “ Vamos jogar ao quarto escuro!” A excitação cresceu de imediato. O jogo favorito de todos, era simples, mas cheio de adrenalina. Apagaram as luzes e dirigiram-se para o quarto mais pequeno da casa, aquele com apenas uma cama e um armário. As paredes frias e o silêncio da noite tornavam tudo mais assustador. As regras eram claras, uma criança seria escolhida para ser o "caçador", enquanto as outras se escondiam no escuro. Com as luzes apagadas, não havia como ver alguma coisa, apenas se ouviam as respirações e o som dos pés a tentarem não fazer barulho. A Maria foi a primeira escolhida como caçadora. Ficou de costas, contando até trinta, enquanto as outras crianças se encolhiam em cantos...

MARCAS DO TEMPO

     Era véspera de Natal numa pequena vila cercada de montanhas cobertas de neve. As ruas estavam decoradas com luzes brilhantes e o som das crianças a brincar no meio dos flocos que enchia o ar de alegria. Para João, um velho relojoeiro que vivia sozinho numa casa velha à beira da vila, a festa natalícia não lhe trazia a mesma felicidade que para os outros. A sua loja já teve melhores dias. Com as novas tecnologias, eram poucos os que se preocupavam em consertar os seus relógios. Era viúvo há mais de uma década e passava os dias em silêncio, na companhia destes marcadores do tempo. Naquela noite, enquanto todas as casas se preparavam para a consoada, João estava sentado a consertar um velho relógio de bolso. Os ponteiros moviam-se lentamente, o som do tique-taque parecia mais alto do que o habitual e o mecanismo do relógio estava ligeiramente enferrujado. Do lado de fora, as crianças brincavam e os jovens cantavam as canções de...

Conto dramático sobre o mau tempo

  O céu estava cinzento há dias. O vento uivava incessantemente, batendo contra as portas e janelas como se quisesse entrar, enquanto o país inteiro parecia preso numa tempestade sem fim. As ruas, outrora movimentadas, estavam desertas, tomadas por poças e lençóis de água e detritos arrastados pela força implacável das chuvas. O som das sirenes ecoava de longe e as notícias transmitiam, em tom grave, o rastro de destruição que o mau tempo deixava. E diziam que o pior ainda estava por vir.  As pontes estavam limitadas, as escolas fechadas, os rios transbordavam e as estradas tornaram-se armadilhas traiçoeiras. As casas inundadas, as árvores caídas e o medo estampado nos rostos das pessoas. Muitos não conseguiam voltar para casa. As famílias separadas, sem saber o destino dos seus entes queridos. O vento parecia arrancar da terra o que fosse mais vulnerável, como se testasse a resistência de todos. Na aldeia de Pedrógão, a chuva transformou o pequeno rio numa corrente furiosa,...

Devaneio Inflamável!

A dinâmica "Luzes da Escrita " teve morte, sangue e algum suspense misturado. ⭐O exercício é: escrever um mini conto de terror, com até 150 palavras e com o tema «fazer pior»; 😜 estas noites já não são trabalho... são um prazer! Meu mini conto: Estava encostada à berma da bomba de gasolina, terminando uma conversa com uma amiga de longa data ao telemóvel. Ríamos de histórias antigas até que finalmente desliguei, pronta para seguir viagem. Encaminhei o carro para a bomba, distraída pelos pensamentos. Levantei a mangueira sem verificar se estava vazia e de repente, a gasolina jorrou sobre mim. O líquido frio empapou-me as roupas, os sapatos e parte do corpo. Por um instante, uma imagem aterrorizante passou pela minha mente: alguém acendendo um cigarro. Imaginei o cheiro da carne queimada, o esturricado do meu corpo em chamas, salpicando sangue, tudo por causa daquele pequeno descuido. Congelei-me, era como se tivesse transformado uma simples distração num desastre iminente. O ...

Mini conto sem verbos...

Desafio que alguém colocou no Facebook, que achei interessante!  Ex: Uma gaiola com cabeça, tronco e membros, morta, sem coração no poleiro. Portinhola aberta e um pássaro de volta da gaiola à vida.   Uma menina na rua, de roupa rasgada, sem comida e sem sapatos. Sem pai e sem mãe, sozinha neste mundo cruel. De olhos tristes e lágrimas silenciosas no rosto. Uma carrinha de apoio aos sem-abrigo e uma sopa quente nas mãos pequenas. Um pedaço de cartão e um colchão no chão, ali na esquina. Umas mantas quentes para a noite fria e escura. E um peluche como única companhia segura.