O raio do rápido rato roeu, raivoso, a rolha redonda da garrafa de rum do Roberto, o rei rigoroso da Rússia. Roubou as rosas raras, rasgou as rendas reluzentes e raptou três roscas recheadas sem deixar rastos.
16 de novembro de 2024
Rato e Rei!
13 de novembro de 2024
Enumeração
Parto amanhã rumo ao Santiago de Compostela, onde as melhores aventuras acontecem.
12 de novembro de 2024
Sozinho sem saida
11 de novembro de 2024
O Mosaico do Jardim da Estrela
No Jardim da Estrela, o tempo parecia andar muito devagar. As crianças de vários, tamanhos, cores e defeitos corriam atrás de bolas coloridas enquanto os idosos, sob a sombra das árvores, disputavam partidas de dominó com a paciência de quem sabe aproveitar a vida. Mas o que tornava aquele espaço verdadeiramente especial não era a tranquilidade nem os risos infantis, mas como a diversidade se entrelaçava em cada canto, como os ramos de uma árvore que crescem por todos os lados, mas pertencem ao mesmo tronco.
A Clara, uma menina cega de olhos curiosos, tornara-se a guia sensorial de Sofia, que usava uma cadeira de rodas e adorava explorar o mundo com os sentidos que podia usar. Naquele dia, Clara segurava uma flor entre os dedos delicados e dizia com convicção: “Esta é lavanda. Cheira como se o mundo parasse por um segundo, não achas?” Sofia aspirava profundamente e respondia com um sorriso: “Sim, mas não é só o cheiro. Ouve como o vento parece dançar entre os ramos. É como uma música!” Ambas de 12 anos e sentiam a luz das flores a irradiarem nas mãos. E na falta dum sentido sensorial, apuravam-se os outros.
O Miguel, um rapaz que comunicava por linguagem gestual, estava num debate acalorado com o Lucas, um menino com síndrome de Down que adorava as histórias fantásticas. As mãos de Miguel moviam-se rapidamente e Lucas, mesmo sem entender todos os sinais, replicava com entusiasmo: “E depois o dragão voou tão alto que desapareceu nas nuvens!” Ana, uma jovem que aprendera linguagem gestual, estava ali, para unir os dois mundos, traduzia com uma alegria que contagiava.
Nos sábados, o bairro reuniu-se para criar algo monumental. Um mosaico que representasse a praça e as suas pessoas. As peças de cerâmica quebradas espalhavam-se pelo chão, cada uma com uma cor ou textura distinta. Sara, uma jovem com dificuldades motoras, mas com um talento único para a pintura, orientava quem não sabia por onde começar. “A arte é sobre o que sentimos. Não há erros, só emoção.”, dizia. Hugo, que usava os aparelhos auditivos, liderava com um carisma que fazia com que, os mais tímidos participassem.
Quando o mosaico ficou pronto, era mais do que uma obra de arte. Era um reflexo de vidas interligadas, de histórias compartilhadas. Clara passou os dedos pelas peças ásperas e murmurou: “Sinto cada um de nós aqui. Como se estivéssemos juntos, mesmo quando não estamos.”
Naquele dia, ninguém falou em diferenças. Elas não eram barreiras, eram pontes. O Jardim da Estrela tornou-se um símbolo de união, onde todos aprenderam que a verdadeira força de uma comunidade está na capacidade de ouvir, acolher e criar juntos.
Somos todos iguais e diferentes ao menos tempo.
(Tema do mês de Novembro: Inclusão e Diversidade da Escrita)
7 de novembro de 2024
Radar Humano
Ninguém sabia muito bem por quê. Talvez fosse uma questão genética, ou porque a natureza decidiu ser criativa naquele dia.
Desde sempre, Rita viveu sem orelhas e curiosamente, nunca se importou. Na verdade, ela até achava engraçado e fazia piadas sobre isso com naturalidade. "A falta das orelhas é minha superpotência", costumava dizer. Sempre com um sorriso na cara, como se tivesse descoberto um segredo do universo.
Enquanto as crianças perguntavam onde haviam ido parar as orelhas, Rita se divertia, a observar as tentativas engraçadas dos seus amigos, de adivinhar o motivo. "Será que ela foi feita por alienígenas? Ou será que foi a um salão de beleza onde tiraram as orelhas para dar aquele acabamento especial?", brincavam.
Ela ria tanto dessas suposições que chegava a ter um acesso de gargalhadas incontroláveis. “Quem sabe? Só sei que não tenho que me preocupar com a falta de protetor auricular num dia de ventania!”, dizia. Dando uma risada contagiante que fazia todos caírem na gargalhada.
Mas, havia momentos em que a ausência de orelhas não era tão vantajosa. Quando estava na escola, Rita jamais escapava dos castigos. "Isso é para escutares melhor!", diziam, sempre a puxar as orelhas das crianças que aprontavam alguma travessura.
Ficava com a expressão confusa, enquanto os seus amigos riam e davam-lhe palmadinhas.
Cresceu com uma habilidade extraordinária de ouvir, apesar da ausência. Os seus amigos a chamavam de "radar humano", porque ela conseguia escutar absolutamente tudo. Não só ouvia as conversas a quilómetros de distância, mas também conseguia identificar o que as pessoas pensavam, baseando-se apenas nos gestos e expressões faciais.
E assim, sem orelhas, viveu uma vida cheia de risos, os segredos revelados e o incrível poder de escutar o mundo de uma maneira que ninguém mais podia.
Afinal, quem precisa de orelhas ao ter o coração tão afinado?
3 de novembro de 2024
Deseducando com as Mãos
As mãos da mãe Júlia, marcadas pelo tempo e pelas responsabilidades, eram firmes, mas guardavam uma suavidade intrínseca, aquela que somente o amor incondicional consegue preservar. Elas seguravam um frágil barco de papel com uma precisão cuidadosa, consciente de que, apesar da sua leveza, carregava os sonhos preciosos. Cada movimento era impregnado de ternura, como se soubesse que aquele pequeno objeto era mais do que papel: era a chave para um mundo que ela mesma ajudava a criar.
As mãos do filho João, pequenas, inquietas e cheias de uma energia vibrante, tocavam no barco com uma ansiedade de quem está a desvendar os mistérios do universo pela primeira vez. O toque infantil, desajeitado, mas cheio de vida, dava forma a novas aventuras a cada instante. Os seus dedos percorriam as dobras do papel como se explorassem um mapa desconhecido, em cada linha era um caminho a seguir, um destino a conquistar.
Entre as mãos da mãe e do filho, o barco de papel transformava-se. Deixava de ser apenas uma dobradura simples e tornava-se um navio corajoso, comandado por um capitão audaz e muitos marinheiros fortes e enérgicos, sempre prontos para enfrentarem os oceanos da imaginação.
Juntos, a mãe e filho, através do toque, criavam um momento de profunda cumplicidade. As suas mãos não só moldavam o barco, mas também o futuro, ia a tecer uma narrativa conjunta onde ambos eram protagonistas de aventuras que ultrapassavam a realidade.
Aquele contacto, possua o seguro e o inocente, entre o conhecido e o inexplorado, era um compromisso. Uma promessa de proteção, de descoberta, de apoio mútuo. As mãos, naquela comunhão silenciosa, tinham o poder de transformar o banal em extraordinário, de educar e, ao mesmo tempo, deseducar, libertando-se das regras para criar um mundo, onde o impossível se tornava possível.
31 de outubro de 2024
Halloween!
Fiz este Miniconto mensal que intensifica o terror e o mistério, criando uma atmosfera de presságio e tensão sobrenatural, perfeita para um conto de Halloween com as palavras do Spooktober 2024 e pela a ordem de cada dia!
Lara acordou sobressaltada ao sentir algo frio a tocar na sua pele. Ao abrir os olhos, encontrou uma flor seca e negra sobre a almofada, as pétalas manchadas de um vermelho-escuro, como se tivessem sido banhadas com sangue coagulado. O quarto, antes familiar, parecia agora mais apertado, como se as sombras tivessem aumentado, observando-a com olhos invisíveis. Um cheiro metálico pairava no ar, sufocando-lhe a garganta e o nariz.
Atormentada pela visão, decidiu caminhar até ao vale verdejante, onde sempre encontrava paz. No entanto, o prado parecia irreconhecível. O arco-íris após a chuva estava agora manchado de vermelho, com gotas de sangue pingando das suas cores desbotadas. Ao seu redor, ouviu o remexer de algo rastejante e ao olhar para o chão, viu um bando de aranhas negras a escalar-lhe as pernas. Sentiu um pânico a crescer, mas por algum motivo, não conseguiu mover-se.
Um arrepio gelado percorreu-lhe o corpo quando sentiu um beijo frio e húmido no pescoço, mas, ao virar-se, o que viu foi pior do que o vazio: uma sombra feminina, com olhos vazios e a boca distorcida num sorriso cruel. Uma risada distante, rouca e penetrante, ecoou pelo vale.
O som do mar chegou-lhe aos ouvidos, mas não era o mesmo som que conhecia. As ondas não eram feitas de água, mas de um líquido escuro e espesso, que refletia a luz de uma lua sangrenta num céu pesado.
No horizonte, um templo de pedra ergueu-se onde nunca existira. Era antigo e coberto de símbolos gravados em ossos humanos. Sentiu uma presença sombria a atraí-la, puxando-lhe pelas entranhas.
Contra a sua vontade, os pés de Lara começaram a mover-se, levando-a até ao local. Ao entrar, o cheiro de carne queimada invadiu-lhe as narinas e as paredes estavam cobertas de marcas de garras e manchas de sangue fresco. No altar, uma fotografia amarelada duma mulher de olhos vazios e os lábios manchados de sangue. Ao lado da foto, uma concha quebrada que continha um anel negro pulsante, coberto por teias de aranha e pedrinhas de diamantes.
Relutante, mexeu na peça como um chamamento. Imediatamente, uma caixa de música tocou uma melodia lúgubre e distorcida, ecoando como um lamento do além. A tampa da caixa abriu-se por conta própria, revelando um pergaminho antigo, inscrito com símbolos indecifráveis e ameaçadores.
As portas do templo fecharam-se violentamente e a única luz veio de uma vela ao lado, que se acendeu sozinha e projetava as sombras grotescas que se moviam como bruxas a dançar em torno de uma fogueira. O chão começou a tremer e Lara percebeu que algo, debaixo da terra, tentava emergir.
Ao agarrar num pincel que lhe apareceu na mão, o sangue dela começou a escorrer pelas cerdas enquanto possuída, desenhava sobre um pedaço de algodão sujo. As formas que criou começaram a rastejar para fora do pano, as serpentes e os corvos de carne apodrecida, que se contorciam pelo santuário frio. Um coro de vozes fantasmagóricos ecoava pelas paredes, sufocando-a com o terror crescente.
A atmosfera tornava-se cada vez mais pesada e o chão húmido parecia escorrer orvalho das próprias paredes, encharcando o local.
Desesperada, fugiu para o jardim, mas tudo ali estava morto e desfigurado. As plantas tinham formas retorcidas e grotescas, como mãos esqueléticas que tentavam agarrá-la. Uma harpa empoeirada num canto vibrou sozinha, emitindo uma nota que parecia um grito agudo e interminável.
O céu já não continha o brilho da aurora; em vez disso, uma nuvem negra e condensada bloqueava qualquer esperança de luz. Subitamente, uma escuridão espessa, como um véu, cobriu os seus olhos.
A Lara tropeçou e caiu de joelhos, sentindo o coração a martelar no peito. Viu uma figura em trapos de bruxa emergindo da escuridão, com um rosto deformado e olhos que brilhavam como brasas. Rindo-se com uma malícia ancestral, a bruxa estendeu a mão ossuda e agarrou a Lara pelo braço, cravando as unhas afiadas na sua pele até que o sangue começasse a escorrer.
O mar, aquela massa fervente de sangue, expelia uma espuma negra e no reflexo das ondas, a Lara viu a mulher da fotografia, com o seu rosto, mas desfigurado e coberto de cortes profundos. Quando gritou, a própria água borbulhou e nas bolhas provenientes da profundeza emergiu uma criatura de carne com bichos nojentos, com mil olhos a observá-la.
Algo frio, quase etéreo como seda, deslizou sobre a sua pele, prendendo-a com correntes ocultas, enquanto os seus pés pareciam colados a uma tela invisível. O chão começou a ceder, arrastando-a para um abismo.
De repente, o som de um pêndulo a balançar soou, cada vez mais rápido. O tempo esgotava-se. Um cheiro enjoativo de alfazema invadiu-lhe os sentidos. O templo começava a desmoronar-se ao seu redor, as pedras tingidas de sangue a cair como a sentença final de um pesadelo sem escapatória.
Tudo ficou escuro. Apenas o som de um riso cruel e distante permaneceu, ecoando num vazio, enquanto a Lara desaparecia para sempre entre o véu do real e do sobrenatural.
#laritacaramela
As palavras do spooktober2024 (1-Flor, 2-Almofada, 3-Prado, 4-Arco-íris, 5-Beijo, 6-Mar, 7-Céu, 8-Templo, 9-Fotografia, 10-Concha, 11-Anel, 12-Caixa de Música, 13-Pergaminho, 14-Vela, 15-Pincel, 16-Algodão, 17-Coro, 18-Orvalho, 19-Jardim, 20-Harpa, 21-Nuvem, 22-Aurora, 23-Véu, 24-Coração, 25-Espuma, 26-Reflexo, 27-Bolha, 28-Seda, 29-Tela, 30-Pêndulo, 31-Alfazema)