O
nevoeiro sobre Nova Orbis não era apenas bruma, era um suspiro constante, uma
respiração pesada que se entranhava em cada pedra, como se a cidade viva
respirasse sob o jugo do Sistema Prime. Uma cortina densa, permanente, céu e
terra deixavam de ser distinguíveis. O ar adensava-se com a opressão, esmagando
pulmões, afogando pensamentos.
O
Sistema Prime não só via tudo, também sentia. Era uma fera invisível que se
alimentava do medo e da obediência. Cada palavra registada, cada pensamento
moldado, cada sonho espionado por algoritmos.
Diziam
que os fios mortos ainda sussurravam o nome dela, a que ousou desafiar o
Sistema.
Naquela
manhã, o terminal piscou: «Eles sabem que estás a tentar sair.» O meu coração
falhou um compasso. Ninguém sabia. Nem Elias.
Levei
o polegar ao pulso. Gesto herdado do meu pai. Ele fazia-o no escuro, como quem
confirmava que ainda existia. Nunca deixes que vejam o teu medo. Sentir não
denuncia. Mostrar, sim.
Durante
meses, colecionei fragmentos proibidos, chips ilegais, códigos
queimados, mapas em papel quase desfeitos. O plano era arriscado. Mas era meu,
a última esperança que me restava para escapar deste mundo.
Agora,
sabiam.
Nas
zonas de monitorização, sorria. Marcha perfeita. O nevoeiro fazia da cidade uma
prisão líquida, onde cada sombra podia ser um Olho disfarçado. Um agente
hesitou. O olhar fixo e glacial congelava as dúvidas dentro de mim. «Desvio
potencial: Setor Kael.»
O
suor escorria-me pela espinha. Avancei, dominando cada músculo.
Quando
o silêncio do mundo te parecer natural, grita por dentro.
Era
a voz do meu pai, ecoando nas noites frias: Os sistemas são como bichos. Não
gostam de ser feridos, mas se lhes mostrares silêncio... abrem-se.
Mas
o silêncio não dura para sempre.
Na
quarta noite, uma nova mensagem: «Estão perto.»
E
Elias percebeu. A dúvida entre nós não era simples, era um campo minado.
—
Estás estranho… Não me contas tudo.
O
seu tom era suave, mas carregado de suspeita.
—
Só estou cansado — menti. Usei um código antigo. Ele tinha acesso. Precisava
que acreditasse. Mas dentro de mim, o silêncio gritava: quem guarda os
guardiões?
A
aldeia dos Gestos não estava longe. Onde Nova Orbis era uma garganta apertada
pelo nevoeiro e câmaras. Era um pulmão aberto, um refúgio esquecido do tempo.
As árvores antigas erguiam-se como guardiãs silenciosas. Os rios sem nome
escondiam segredos antigos. O ar era pesado de histórias não ditas, mas também
livre, um silêncio carregado de significado.
Ali,
as palavras perderam força. A comunicação era feita de sopros, ritmos e
silêncios. Um toque no ombro: «Confio.» Um assobio curto: «Alerta.» Um gesto em
dois tempos: «Atenção.» Era como se, naquela aldeia, a própria essência da
comunicação tivesse sido reinventada para escapar à vigilância do Sistema.
Fugi
nessa noite, numa falha térmica de doze segundos de invisibilidade. Tempo
suficiente para escapar do canto opressivo do Sistema Prime. A Zona Zero era
mais do que um espaço abandonado, um lugar onde o tempo se desfazia em ecos e
segredos. Corredores com símbolos marcados em sangue seco, túneis onde o ar
zumbia com vozes antigas, como sussurros das almas que ali viveram. Num desses caminhos,
uma boneca sem braços esperava, com um bordado desbotado: «Para Mira.»
—
Tens coragem de vir, mas não sabes para onde vais — disse uma voz rouca.
Era
Mira. De cabelos emaranhados, olhos como uma chama que a opressão nunca
conseguiu apagar, uma cicatriz no rosto como marca de fogo e de resistência.
—
Foste tu que enviaste as mensagens? —
Ela
assentiu, os olhos pesados.
—
E ainda não percebeste quem te traiu.
—
Elias? — Limitou-se a apontar para a boneca.
—
Era minha. O teu nome apareceu nos mesmos arquivos que os meus. Os nossos pais
tentaram fugir juntos. Elias era aprendiz deles. Ficou para vigiar e garantir
que não quebrássemos o ciclo.
Lembrei-me
do meu pai, escondendo-me num armário antes de ser levado. Tocou-me no peito,
firme: Se um dia correres, não leves nomes. Leva promessas.
Mira
entregou-me um transmissor.
—
Tens dez segundos antes que te rastreiem.
—
E tu?
Tirou
do pescoço um colar. Uma conta de âmbar.
—
Isto não é só um símbolo. As velhas contas guardam dados esquecidos. Códigos
que não se deixam apagar.
Corri.
Atrás, o som metálico dos Olhos aproximava-se.
Leva
só o que não pode ser quebrado.
Três
ciclos de silêncio depois, o sinal:
—
Kael... ouves-me?
Era
Elias.
—
Não é o que pensas. Eles sabiam de ti antes de mim. Eu tentei afastar os Olhos.
A Mira sobreviveu. Protege-a. Cuida da última centelha.
O
sinal cortou.
Chamam-lhe
Eco, à Mira, aquela que regressou com chama no sangue. À noite, diz:
—
A destruição não começa com bombas. Começa com memória.
O
transmissor vibrou. PRIME-000. Falha crítica. Setor Norte comprometido.
Era
o início. Voltámos à orla da cidade. O nevoeiro adensava-se, como se Nova Orbis
respirasse fundo, pronta a expelir o veneno. Mira parou.
—
É aqui que decido: se vou morrer com o passado ou viver pelo futuro. —
Entregou-me um novo transmissor, selado com cera negra. — Só pode ser ativado
no núcleo. Uma viagem sem retorno.
Colocou-me
o colar na mão. Dizem que cada conta guarda um nome esquecido. Se eu cair…
que reste o brilho. E a verdade. Toquei no pulso. Grita por dentro.
Minutos,
depois horas. Então, uma lâmina de luz rasgou o horizonte. Torres tombaram,
silenciosas. As câmaras apagaram-se. O silêncio tornou-se profundo, quase
sagrado. Antes do fim, um som pequeno: o âmbar sobre pedra. O transmissor
queimado jazia no chão. Um bilhete, dobrado com cuidado: «Para quem vier, não
deixem que voltem a esquecer. — M.»
O
colar, quente e leve, pulsava com vida própria. As contas começaram a revelar
padrões, códigos gravados em luz antiga.
Mira
não voltou.
Agora
somos nós que contamos as histórias. Kael, o Fugitivo. Mira, a Chama. Elias, o Traidor
que talvez tenha amado demais. À noite, junto ao transmissor calado, repetimos:
«Eles sabiam que saímos. Nunca souberam que resistimos. Jamais imaginaram que
renasceríamos.»
Mas
mesmo na paz, vigio o vento. Porque a memória tem inimigos silenciosos. E eu
toco no pulso. Se o mundo esquecer tudo... sê tu o que lembra.
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