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31 de julho de 2025

Quem ateia fogo, que sinta o peso da enxada

 Minha opinião estruturada com sangue quente

Num país onde as chamas já parecem uma estação do ano, não basta mais contar os hectares ardidos como se fossem apenas estatística. Portugal arde — outra vez — e arde por várias mãos: pelas do descuido, pela seca impiedosa, mas também, e com frequência assustadora, pela mão criminosa de quem risca o fósforo e vira costas.

Dados do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas apontam que entre 20% a 35% dos incêndios têm origem intencional. Contudo
, são estes que destroem mais — não só território, mas tempo, memórias, e sobretudo, vidas. Em 2023, 84% da área ardida foi resultado direto de fogos postos. O crime, neste caso, não é só fogo: é tragédia multiplicada.

E o que acontece a quem é apanhado?

A resposta oficial é: cadeia. Três a dez anos, podendo ir além se houver agravantes. Mas na prática, há uma sensação de impunidade difusa. Muitos processos não vão além da investigação; os que chegam a tribunal são, por vezes, reduzidos a penas suspensas. E os que são presos, entram num sistema que, para alguns, mais parece retiro: cama feita, três refeições por dia, roupa lavada. A floresta perde tudo; o incendiário perde apenas a liberdade — e nem sempre.

Surge então uma ideia que, sendo antiga, carrega a força da justiça natural:

E se os incendiários fossem obrigados a participar na reconstrução daquilo que queimaram?
E se limpassem mato, carregassem mangueiras, desentupissem valas, ajudassem os bombeiros — não em combate direto, mas em esforço real?

Não como castigo humilhante, mas como reparação. Que sintam, com o corpo inteiro, o peso do que é tentar salvar o que eles próprios destruíram. Que conheçam o cansaço de quem sobe a serra de botas encharcadas, com 40 graus nas costas e uma pá nas mãos. Justiça que não toca o corpo e não pesa na consciência é apenas papel com carimbo.

Sabemos que a Constituição não permite colocar reclusos em risco — e bem. Mas isso não impede um Estado com vontade de criar programas de trabalho florestal obrigatório para condenados por incêndio: limpeza preventiva, reflorestação, sensibilização nas escolas e aldeias. Obrigar a ouvir o choro de quem perdeu a casa pode ser mais eficaz do que anos de silêncio em cela fechada.

Portugal é um país de memória curta. Todos os anos o fogo nos visita, e todos os anos reagimos como se fosse surpresa. Talvez porque nunca exigimos o bastante de quem o ateia.
Talvez porque o medo de parecer duros nos impede de sermos justos.
Mas há uma verdade antiga que resiste ao fumo:

Quem queima a terra, deve sentir-lhe o peso.
Quem acende, que ajude a apagar.
Quem destrói, que construa.

Porque só assim a justiça deixa de ser abstracta e se torna como a cinza real, palpável, irrecusável.

29 de julho de 2025

O Cavalo de Sal e a Flor Azul

Mariana acordou antes de Sol nascer. O vento sacudia as persianas do quarto e o rugir das ondas chegava-lhe como um bater de tambores antigos. Levantou-se devagar, sentindo o soalho frio nos pés. Espreitou pela janela e viu o oceano estender-se até ao horizonte, com véus brancos de espuma a dançar à superfície. Uma inquietação apertava-lhe o peito.

Desde pequena, as águas fascinavam-na e assustavam-na em partes iguais. Gostava de as ouvir, de ver as vagas enrolarem-se e rebentarem, mas temia a sua imensidão, aonde se escondem segredos difíceis para uma criança entender.

Nessa madrugada, porém, tudo parecia diferente. O oceano respirava mais depressa e o vento trazia um cheiro a sal e mistério. Sem dizer nada a ninguém, vestiu o casaco, calçou as botas e saiu para a praia. A areia fria e húmida, colava-se às solas como lama. O céu clareava num azul desm
aiado, mas a superfície líquida mantinha-se escura e furiosa.

Foi então que o viu.

No meio da ondulação, uma figura emergiu. Um cavalo, feito inteiramente de sal e espuma, a crina agitada pelo vento como véus de bruma. Tinha olhos enormes, profundos que brilhavam sob a luz trémula da lua.

Mariana parou, incapaz de avançar ou fugir. O cavalo aproximou-se, caminhando sobre a água como se fosse terra firme. Quando chegou junto dela, baixou a cabeça até à altura do seu rosto. Entre os cascos brilhava uma flor azul, delicada, quase translúcida. A voz do cavalo soou grave, ecoando como ondas a rebentar nas rochas.

— O oceano está doente, Mariana. Correntes negras crescem no seu fundo. Os homens descuidaram a beleza das suas memórias e esqueceram-se de respeitar as águas. E agora, sangra sal.

Mariana recuou um passo. O vento cortava-lhe a pele como lâminas frias.

— Mas… eu sou uma criança. O que eu posso fazer?

O cavalo inclinou o pescoço, aproximando ainda mais o focinho dela. Nos seus olhos havia algo de extraordinariamente familiar, uma ternura que a fez engolir em seco.

— Esta flor é a última promessa do mar. Está a perder a cor. Só quem guarda recordações felizes pode fazê-la brilhar de novo. Tu tens essas recordações, Mariana. Queres ajudar?

Ela desviou o olhar. Sentia-se pequena diante daquela imensidão, como se a força do oceano fosse demasiado vasta para qualquer esperança. Uma parte dela queria voltar para casa e ficar no quarto. E se falhasse? E se o oceano a engolisse também? Nunca fora corajosa.

Gostava mais de ver as águas ao longe, de ouvir-lhes o canto sem se aproximar.  Mas, nesse instante, lembrou-se da avó, do jardim cheio de camélias, do som do rio junto à casa. E lembrou-se das palavras que a avó repetia tantas vezes: «“Mesmo quem parece frágil guarda dentro de si a força do mar inteiro.»”

Ergueu o olhar. O cavalo fitava-a com olhos brilhantes, e, durante um segundo, Mariana teve a certeza de reconhecer nele o mesmo brilho terno que via nos olhos da avó, quando esta lhe contava histórias à lareira. Como se aquela criatura fosse feita não só de espuma e sal, mas também de lembranças antigas.

Inspirou fundo. Ainda tremia, mas estendeu a mão.

— Quero ajudar.

O cavalo pareceu sorrir, num movimento subtil da cabeça.

— Então vem. Ainda há sombras para derrotar.

Guiou-a até ao rochedo mais alto. As ondas batiam com violência, lançando jorros de espuma branca semelhantes ao fumo. A subida era íngreme. O vento rugia, puxava-lhe o cabelo, chicoteava-lhe o rosto com sal e frio. As pedras estavam molhadas e Mariana escorregou mais do que uma vez.

Enquanto subia, ouviu vozes misturadas no vento. Sussurros que a faziam querer desistir:

— És pequena demais.

— Não salvarás nada.

— O oceano é maior do que tu.

A cada passo, o medo enchia-lhe o peito como água gelada. Mas, lá no fundo, a voz da avó ecoava, firme, como um farol: «“Mesmo quem parece frágil guarda dentro de si a força do mar inteiro.»”

Respirou fundo, agarrou a flor azul com força e continuou a subir. A imensidão lá em baixo rodopiava em redemoinhos negros, como se escondesse segredos que ninguém devia conhecer. Chegou ao topo, ofegante, o coração a martelar-lhe nas costelas. O Sol começava a rasgar as nuvens, lançando raios dourados sobre a superfície líquida.

O cavalo aproximou-se, a voz agora baixa, quase um sussurro:

— Agora, Mariana. Mostra ao mar a luz que tens dentro de ti.

Ela ergueu a flor azul, mesmo quando o vento quase lha arrancava das mãos. Fechou os olhos e deixou que as recordações lhe percorressem o corpo como um calor suave: o jardim florido, o cheiro adocicado das camélias, o riso cristalino da irmã, o aconchego da mãe. Essas memórias vibraram dentro dela como cordas de um instrumento antigo.

Quando abriu os olhos, a flor azul brilhava com uma intensidade nova. O azul tornara-se profundo, luminoso, como uma chama acesa. A luz espalhou-se pelas águas. As vagas acalmaram, o rugido do oceano transformou-se num sussurro doce. O ar encheu-se de um silêncio cheio de significado no qual cabia a paz.

O cavalo fitou-a, os olhos agora serenos, quase humanos.

— Lembra-te sempre, Mariana. Quando a tempestade voltar, há dentro de ti uma flor azul que nunca se apaga.

E, lentamente, o cavalo começou a dissolver-se, transformando-se em espuma que subiu com o vento, como uma canção que se esfumava no ar. E ela, desceu devagar, sentindo o corpo cansado, marcado pelos pequenos cortes, mas de peito leve e cheio de uma força nova.

Em casa, encontrou a avó adormecida na poltrona, com o bordado colorido sobre o colo. O chá ainda fumegava na chávena esquecida. Mariana sentou-se à mesa, abriu o caderno e desenhou o cavalo de sal, com a crina feita de bruma e o olhar profundo como as águas.

Depois colocou a flor azulada num copo com água, junto à janela. E ficou a olhar o oceano, agora calmo, o silêncio já não doía. Sorriu, porque sabia que, mesmo quando tudo parecesse escuro, haveria sempre uma flor azul pronta a acender-se dentro dela.

 Escolhida para Top3 e selecionada para o Top1 no Prazer da escrita

20 de julho de 2025

Um, dois, três... Macaquinho do Chinês!

A tarde vinha morna, quase triste, daquelas em que até os cortinados parecem suspirar. Os ombros de Larita traziam o peso de reuniões vazias e filas sem destino. Com um suspiro, deixou cair a mala no chão.

— Hoje... vamos jogar.

Loira, cadela de alma dourada, cheirando a sol e chão quente, ergueu-se num salto que sacudiu almofadas, memórias e pó. Ginger, o gato laranja, nem pestanejou. Cookie, loiro e teatral, desapareceu como um ator sem fala.

— Um... dois... três... macaquinho do chinês!
Virou-se. Loira estacada, mas o chocalho da coleira ainda sussurrava no ar.
— Estás fora... — sorriu Larita, como quem reaprende a brincar.

O soalho rangia, os móveis respiravam. A luz tingia o chão de laranja derretida. O ar sabia a almofadas gastas e tardes cheias de vago.

Nova ronda.
— Um... dois... três... macaquinho do chinês!
Cookie avançava como sombra em missão. Ginger desaparecera do tapete.

Do relógio, um tilintar seco. Lá fora, uma buzina esquecida.

— Um... dois... três... macaquinho do chi—

Miau.

Um som. Breve. Quase irreal.
Larita ficou imóvel. Teria ouvido mesmo?

Virou-se devagar. Lá estava ele.
Ginger, em cima do encosto do sofá, com uma pata no seu ombro. Olhos calmos. Bigodes firmes. Corpo leve como quem reina sem ruído.

O tempo parou. Depois explodiu em gargalhadas.

Loira, emocionada, correu e enroscou-se contra a Larita, quente e viva como um abraço esquecido. Cookie saltava, vitorioso por associação.

E então, sem mais a acrescentar, a tristeza daquela senhora silenciosa de fim de tarde, levantou-se do canto e saiu pela porta da varanda.

"Há dias em que perder para um gato é a vitória mais elegante que se pode ter."

13 de julho de 2025

O que ninguém sabe

 No coração da cidade antiga, onde as pedras sussurram histórias esquecidas, morava um homem chamado Elias. Conhecido pela sua bondade desmedida, oferecia tudo o que tinha, comida, abrigo, até o próprio tempo, aos que batiam à sua porta. A casa, uma relíquia coberta de heras, era um farol para os perdidos, um oásis de luz num mundo cansado.

Mas a bondade, pensava Elias, tinha um preço. Cada acto de generosidade drenava algo invisível, uma ausência que crescia em silêncio dentro dele. As tábuas antigas rangeram, num suspiro que parecia conter uma paciência sombria. As heras mexiam-se, deslizando pelas paredes como dedos ávidos, à espera que Elias cedesse ao que se abrira na sua alma.

Numa noite enluarada, um estranho apareceu, com olhos de abismo e voz que parecia vir de outro tempo. Entregou-lhe um presente, uma caixa pequena, ornada com símbolos que dançavam nas sombras. Na caixa, a inscrição borrada lia-se com esforço: “Só abre, quando já não fores inteiro.” “O Espelho do Vazio”, murmurou o estranho antes de desaparecer no nevoeiro.

Dias passaram, e o silêncio sem fim apertava as costelas de Elias, consumindo-lhe o sorriso. A casa, antes cheia de risos e aromas de pão fresco, tornou-se um mausoléu de memórias apagadas. Por fim, numa mistura de medo e desespero, afastou a caixa com mãos trémulas, como se repelisse um veneno. Uma voz distante, uma lembrança tênue da infância, sussurrou-lhe: “Não faças isto.” Mas a ausência dentro dele era uma maré que não cedia. Tremendo, Elias cedeu e abriu a caixa.

Dentro, um espelho negro não se limitava a mostrar rostos, ao fixar os olhos na sua superfície, sentiu uma brisa fria roubar-lhe a última centelha de calor, como se o próprio reflexo sugasse a sua alma. Não viu o seu rosto, mas as almas daqueles a quem dera algo, todos a olhar, vazios e famintos. Cada gesto bom não tinha curado, apenas roubado pedaços do seu próprio ser para alimentar espectros invisíveis.

O terror não vinha de monstros externos, mas daquilo que ele próprio criara, um cemitério de boas intenções. A sua bondade, como uma erva venenosa, crescera até sufocá-lo, deixando-o prisioneiro daquilo que mais amava.

Naquela noite, Elias desapareceu. A casa, agora calada, aguardava a próxima alma que acreditasse no mal das coisas boas, onde a luz era só a sombra do sacrifício eterno. E do espelho, a sombra de Elias sorria. Como sempre. Para servir.

1 de julho de 2025

O mal das coisas boas


No coração da cidade antiga, onde as pedras sussurram histórias esquecidas, morava um homem chamado Elias. Conhecido pela sua bondade desmedida, oferecia tudo o que tinha — comida, abrigo, até o próprio tempo — aos que batiam à sua porta. A casa, uma relíquia coberta de heras, era um farol para os perdidos, um oásis de luz num mundo cansado.

Mas a bondade, pensava Elias, tinha um preço. Cada acto de generosidade drenava algo invisível, uma ausência que crescia em silêncio dentro dele. As tábuas antigas rangeram, num suspiro que parecia conter uma paciência sombria. As heras mexiam-se, deslizando pelas paredes como dedos ávidos, à espera que Elias cedesse ao que se abrira na sua alma.

Numa noite enluarada, um estranho apareceu, com olhos de abismo e voz que parecia vir de outro tempo. Entregou-lhe um presente — uma caixa pequena, ornada com símbolos que dançavam nas sombras. Na caixa, a inscrição borrada lia-se com esforço: “Só abre, quando já não fores inteiro.” “O Espelho do Vazio”, murmurou o estranho antes de desaparecer no nevoeiro.

Dias passaram, e o silêncio sem fim apertava as costelas de Elias, consumindo-lhe o sorriso. A casa, antes cheia de risos e aromas de pão fresco, tornou-se um mausoléu de memórias apagadas. Por fim, numa mistura de medo e desespero, afastou a caixa com mãos trémulas, como se repelisse um veneno. Uma voz distante, uma lembrança tênue da infância, sussurrou-lhe: “Não faças isto.” Mas a ausência dentro dele era uma maré que não cedia. Tremendo, Elias cedeu e abriu a caixa.

Dentro, um espelho negro não se limitava a mostrar rostos; ao fixar os olhos na sua superfície, sentiu uma brisa fria roubar-lhe a última centelha de calor, como se o próprio reflexo sugasse a sua alma. Não viu o seu rosto, mas as almas daqueles a quem dera algo, todos a olhar, vazios e famintos. Cada gesto bom não tinha curado, apenas roubado pedaços do seu próprio ser para alimentar espectros invisíveis.

O terror não vinha de monstros externos, mas daquilo que ele próprio criara: um cemitério de boas intenções. A sua bondade, como uma erva venenosa, crescera até sufocá-lo, deixando-o prisioneiro daquilo que mais amava.

Naquela noite, Elias desapareceu. A casa, agora calada, aguardava a próxima alma que acreditasse no mal das coisas boas, onde a luz era só a sombra do sacrifício eterno. E do espelho, a sombra de Elias sorria. Como sempre. Para servir.

Códigos Silenciosos

O nevoeiro sobre Nova Orbis não era apenas bruma, era um suspiro constante, uma respiração pesada que se entranhava em cada pedra, como se a cidade viva respirasse sob o jugo do Sistema Prime. Uma cortina densa, permanente, céu e terra deixavam de ser distinguíveis. O ar adensava-se com a opressão, esmagando pulmões, afogando pensamentos.

O Sistema Prime não só via tudo, também sentia. Era uma fera invisível que se alimentava do medo e da obediência. Cada palavra registada, cada pensamento moldado, cada sonho espionado por algoritmos.

Diziam que os fios mortos ainda sussurravam o nome dela, a que ousou desafiar o Sistema.

Naquela manhã, o terminal piscou: «Eles sabem que estás a tentar sair.» O meu coração falhou um compasso. Ninguém sabia. Nem Elias.

Levei o polegar ao pulso. Gesto herdado do meu pai. Ele fazia-o no escuro, como quem confirmava que ainda existia. Nunca deixes que vejam o teu medo. Sentir não denuncia. Mostrar, sim.

Durante meses, colecionei fragmentos proibidos, chips ilegais, códigos queimados, mapas em papel quase desfeitos. O plano era arriscado. Mas era meu, a última esperança que me restava para escapar deste mundo.

Agora, sabiam.

Nas zonas de monitorização, sorria. Marcha perfeita. O nevoeiro fazia da cidade uma prisão líquida, onde cada sombra podia ser um Olho disfarçado. Um agente hesitou. O olhar fixo e glacial congelava as dúvidas dentro de mim. «Desvio potencial: Setor Kael.»

O suor escorria-me pela espinha. Avancei, dominando cada músculo.

Quando o silêncio do mundo te parecer natural, grita por dentro.

Era a voz do meu pai, ecoando nas noites frias: Os sistemas são como bichos. Não gostam de ser feridos, mas se lhes mostrares silêncio... abrem-se.

Mas o silêncio não dura para sempre.

Na quarta noite, uma nova mensagem: «Estão perto.»

E Elias percebeu. A dúvida entre nós não era simples, era um campo minado.

— Estás estranho… Não me contas tudo.

O seu tom era suave, mas carregado de suspeita.

— Só estou cansado — menti. Usei um código antigo. Ele tinha acesso. Precisava que acreditasse. Mas dentro de mim, o silêncio gritava: quem guarda os guardiões?

A aldeia dos Gestos não estava longe. Onde Nova Orbis era uma garganta apertada pelo nevoeiro e câmaras. Era um pulmão aberto, um refúgio esquecido do tempo. As árvores antigas erguiam-se como guardiãs silenciosas. Os rios sem nome escondiam segredos antigos. O ar era pesado de histórias não ditas, mas também livre, um silêncio carregado de significado.

Ali, as palavras perderam força. A comunicação era feita de sopros, ritmos e silêncios. Um toque no ombro: «Confio.» Um assobio curto: «Alerta.» Um gesto em dois tempos: «Atenção.» Era como se, naquela aldeia, a própria essência da comunicação tivesse sido reinventada para escapar à vigilância do Sistema.

Fugi nessa noite, numa falha térmica de doze segundos de invisibilidade. Tempo suficiente para escapar do canto opressivo do Sistema Prime. A Zona Zero era mais do que um espaço abandonado, um lugar onde o tempo se desfazia em ecos e segredos. Corredores com símbolos marcados em sangue seco, túneis onde o ar zumbia com vozes antigas, como sussurros das almas que ali viveram. Num desses caminhos, uma boneca sem braços esperava, com um bordado desbotado: «Para Mira.»

— Tens coragem de vir, mas não sabes para onde vais — disse uma voz rouca.

Era Mira. De cabelos emaranhados, olhos como uma chama que a opressão nunca conseguiu apagar, uma cicatriz no rosto como marca de fogo e de resistência.

— Foste tu que enviaste as mensagens? —

Ela assentiu, os olhos pesados.

— E ainda não percebeste quem te traiu.

— Elias? — Limitou-se a apontar para a boneca.

— Era minha. O teu nome apareceu nos mesmos arquivos que os meus. Os nossos pais tentaram fugir juntos. Elias era aprendiz deles. Ficou para vigiar e garantir que não quebrássemos o ciclo.

Lembrei-me do meu pai, escondendo-me num armário antes de ser levado. Tocou-me no peito, firme: Se um dia correres, não leves nomes. Leva promessas.

Mira entregou-me um transmissor.

— Tens dez segundos antes que te rastreiem.

— E tu?

Tirou do pescoço um colar. Uma conta de âmbar.

— Isto não é só um símbolo. As velhas contas guardam dados esquecidos. Códigos que não se deixam apagar.

Corri. Atrás, o som metálico dos Olhos aproximava-se.

Leva só o que não pode ser quebrado.

Três ciclos de silêncio depois, o sinal:

— Kael... ouves-me?

Era Elias.

— Não é o que pensas. Eles sabiam de ti antes de mim. Eu tentei afastar os Olhos. A Mira sobreviveu. Protege-a. Cuida da última centelha.

O sinal cortou.

Chamam-lhe Eco, à Mira, aquela que regressou com chama no sangue. À noite, diz:

— A destruição não começa com bombas. Começa com memória.

O transmissor vibrou. PRIME-000. Falha crítica. Setor Norte comprometido.

Era o início. Voltámos à orla da cidade. O nevoeiro adensava-se, como se Nova Orbis respirasse fundo, pronta a expelir o veneno. Mira parou.

— É aqui que decido: se vou morrer com o passado ou viver pelo futuro. — Entregou-me um novo transmissor, selado com cera negra. — Só pode ser ativado no núcleo. Uma viagem sem retorno.

Colocou-me o colar na mão. Dizem que cada conta guarda um nome esquecido. Se eu cair… que reste o brilho. E a verdade. Toquei no pulso. Grita por dentro.

Minutos, depois horas. Então, uma lâmina de luz rasgou o horizonte. Torres tombaram, silenciosas. As câmaras apagaram-se. O silêncio tornou-se profundo, quase sagrado. Antes do fim, um som pequeno: o âmbar sobre pedra. O transmissor queimado jazia no chão. Um bilhete, dobrado com cuidado: «Para quem vier, não deixem que voltem a esquecer. — M.»

O colar, quente e leve, pulsava com vida própria. As contas começaram a revelar padrões, códigos gravados em luz antiga.

Mira não voltou.

Agora somos nós que contamos as histórias. Kael, o Fugitivo. Mira, a Chama. Elias, o Traidor que talvez tenha amado demais. À noite, junto ao transmissor calado, repetimos: «Eles sabiam que saímos. Nunca souberam que resistimos. Jamais imaginaram que renasceríamos.»

Mas mesmo na paz, vigio o vento. Porque a memória tem inimigos silenciosos. E eu toco no pulso. Se o mundo esquecer tudo... sê tu o que lembra

Top 3 no Prazer da Escrita 

26 de junho de 2025

O Sopro da Vida

Às vezes, não há mesmo um aviso.
As cortinas do tempo se abrem, nuas,
sem música, sem prólogo,
só o silêncio e as mãos cruas.

Em poucos segundos, tudo cai.
O chão que parecia tão seguro se esvai em névoa.

E o que era o alicerce torna-se apenas rastro, poeira.

Vivemos na ilusão do comando,
traçando um plano como um cartógrafo,
crendo que a vida é linear e previsível,
mas é maré e vento errático.

Pensamos demais. A mente pesa.
O que virá? O que foi? E se fosse...?
Levamos as pedras nos bolsos
e esquecemos o instante que nos trouxe.

Pensa menos e sinta mais.
Sinta o calor do sol sobre a face,
o silêncio a dançar entre os sentidos,
o riso sem razão, leve e fugaz,
o arrepio dos tempos já partidos.

A vida é curta e bela,
E se a olharmos bem, nem é breve é um sopro.

Suspiro entre dois vazios.
Aproveitar não é correr, é ser.
É colher figos antes que estejam frios.

Há beleza no estar, simplesmente,
viver com atenção, em alma presente,
amar sem rede, sem garantias,
sorrir sem causa, eternamente ausente.

Não há promessa firme do amanhã.
Só este agora, feito sem demora.
Tão frágil como a pele da maçã,
e tão eterno quanto o sopro do agora.

15 de junho de 2025

A Teia


A primeira aranha apareceu na manhã em que o velho modem piscou pela última vez. Clara vivia sozinha num rés-do-chão húmido, paredes forradas de livros e silêncios, onde o ruído do mundo chegava filtrado por camadas de poeira e memória. Quando perdeu a ligação à internet, não ligou. Era um alívio. Um silêncio novo.

Na semana seguinte, teias surgiram nos cantos dos quartos. Mas não eram teias comuns. Estendiam-se com uma simetria quase matemática, fios prateados que vibravam mesmo sem vento. As aranhas, finas como agulhas, tinham olhos demais. Clara tentava limpá-las. No dia seguinte, estavam de volta. Maiores. Mais densas.

Descobriu que os livros estavam colados. Quando forçou um, as páginas estavam preenchidas por símbolos bordados em seda  fórmulas, fragmentos de código, palavras que nunca aprendera. Conectada. Permanece. Ouvida.

Na véspera do equinócio, Clara tentou religar o modem. As luzes piscaram uma última vez. Depois, só o zumbido. Um calor estranho percorreu a casa. Os espelhos cobriram-se. Os livros calaram-se. Só restavam as teias. E as vozes.

Nessa noite, acordou com o som do fio eléctrico a cantar. As teias brilhavam como circuitos vivos. No centro da sala, uma aranha do tamanho de um cão. Tinha a boca de um velho amigo morto. Sorria.

— Ligámo-nos, Clara. És nó. És ponte.

Ela caiu de joelhos. A seda envolveu-lhe os pulsos. Era morna. Não doía. Era como regressar. A casa dissolveu-se em fragmentos de luz.

No dia seguinte, os vizinhos comentaram o desaparecimento. A polícia entrou. Só encontraram uma divisão vazia e um monitor antigo, onde corria um código em tempo real. No topo, uma palavra única: Qh’raNet.

— O que é isso? — murmurou um agente.

— Um nome, talvez — respondeu outro. — Ou um idioma que ainda não foi sonhado.

A ligação nunca caiu. E nas noites mais silenciosas, se escutares com atenção… ouvem-se cliques. Como patas minúsculas a rastejar pela rede.

11 de junho de 2025

E a sorte?? Paira no meu ar?


Sim, a sorte paira no teu ar esta semana, mas não como prémio. Como resposta.

Ela não virá aos gritos, nem com clarins celestes.
Virá no instante em que escolheres com verdade.
No momento em que recusares o que brilha, mas não vibra.
Na hora em que fores fiel à tua cadência, lenta, antiga, certeira.

A sorte está em ti quando confias no que sabes há muito:
que o código limpo é como um poema bem medido,
que uma palavra certa vale mais que um milhão de cliques,
que o tempo, esse velho artífice, está do teu lado quando não te vendes à pressa.

Se precisares de um sinal, ele virá entre quinta e sábado.
Não será óbvio, mas será exato. Um encontro, uma frase, um erro que afinal é chave.
Repara bem.

Não desates logo a interpretá-lo, vive-o.

Se te perguntam se tens sorte, podes sorrir devagar e responder:
“Tenho. Mas é da que se cultiva com silêncio e escolha certa.”

E sim, o ar está cheio dela.
Só tens de respirar com intenção.