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A mostrar mensagens com a etiqueta Autoria_LMCF

Fala

Na aldeia engolida pela névoa, ninguém falava depois do pôr do sol. Dizia-se que as palavras, libertas no ar frio, ganhavam corpo e voltavam famintas a procurar quem as soltou. Helena não acreditava. O pai ensinara-lhe a chamar o vento com o nome das coisas perdidas, a sombra de um cão, o riso da mãe, o som das campainhas ao longe. Às vezes parecia ouvir resposta. Nessa noite, cansada do medo dos outros, subiu à colina e gritou o nome dele. O chamamento regressou, denso, como se tivesse atravessado a terra húmida. — Helena. Não era eco. Era retorno. O ar tremeu. Da bruma ergueu-se algo que lembrava uma boca feita de sombra e vapor. O sussurro enchia-lhe o peito, puxava-lhe o fôlego para fora. — Deixa-me entrar. As sílabas tocaram-lhe a pele, quentes, viscosas. Escorriam-lhe pelo pescoço, entravam-lhe nos ouvidos, serpentinas de som à procura de abrigo. Tentou falar, mas o ar já não lhe pertencia. Na manhã seguinte, encontraram-na junto ao poço, imóvel. Os olhos, fixos na água, ...

A Folha que Ria do Outono

Dinâmica: Com 300 palavras com titulo,1º paragrafo contém vinte e duas palavras,2º paragrafo contém nove palavras,3º paragrafo contem vinte e cinco palavras, as palavras obrigatórias Outono e folha. Tem de acabar com a palavra não. O sino da aldeia ecoava três vezes, anunciando o Outono com ares de velho farsante. Uma folha ria-se, convencida de que nunca cairia. O padeiro observava, riu, bocejou, tossiu. Espreguiçou-se. Depois sorriu. A folha, levada pelo vento maroto, girava descontrolada sobre telhados, tropeçando em chaminés, beijando janelas, mergulhando em poças barrentas, zombando do ciclo inevitável da gravidade. As crianças batiam palmas, mas não só. Uma menina tentou agarrá-la, falhando de propósito. Um rapaz imitava as piruetas, quase caindo do muro. Até o padre, que raramente se deixava corromper pelo riso, apertou o rosário com mais leveza, como se cada conta fosse aplauso secreto. O vento, vendo a multidão rendida ao espetáculo, decidiu exagerar, lançando a fo...

15 anos

 

A prova - Na Fabrica do Terror

  Ver Mais   

Irmã da Alma, Anjo da Vida

 

Vulcão em Repouso

Tema: INVESTIGAR PARA ESCREVER… UM CONTO ERÓTICO - A Casa dos Budas Ditosos (Nos top 3 do Clube dos Writers) Nota da autora Este conto nasce da recusa. Recusa do apagamento, da culpa, do silêncio. Aqui, o corpo não é metáfora, é argumento. A sexualidade não é 'performance' é filosofia encarnada. É direito de existir com desejo, com rugas, com história. Cada toque é protesto, cada gozo é sobrevivência. O que pulsa não é apenas carne, é memória, é resistência Acordei com um calor entre as pernas que não era só físico, era lembrança. Aos 67 anos, o meu corpo não precisa de espelho para saber que mudou. A carne cedeu, os vincos chegaram. Mas a fome… a fome subsistiu. E ficou mais cruel. Mais honesta. Às vezes vinha baixa, como uma reza: «   Ainda posso ?» E a resposta era sempre: «Não posso não querer.» Na juventude, tinha relações por impulso, uma corrida sem mapa. Hoje é ritual. Cada toque tem peso. Cada momento carrega história. Antes do Marcelo chegar, olhei-me...

O Conto do Treze

Era noite de lua minguante, e o silêncio cobria a aldeia como véu pesado. As casas dormiam, mas tu, guiada pelo teu número secreto, caminhavas até a velha ponte de pedra. Passo a passo, contava-os em silêncio. O décimo terceiro era o selo. Não doze, não quatorze. Sempre o treze. Quando o último eco ressoou sobre a ponte, o mundo suspendeu-se. O rio deixou de correr, o vento parou, até os grilos calaram. A noite prendeu a respiração. Foi então que a presença se anunciou, não com passos, mas com a ausência. O ar gelou e um cheiro de ferro húmido, como sangue ou metal esquecido na chuva, subiu da pedra. Antes de a veres, já a sentias, a certeza de algo à tua espera desde sempre. Sentada no parapeito, surgiu a figura: olhos fundos, corpo desenhado mais de sombra do que de carne. — Chegaste, finalmente — disse, com voz que arranhava.. — Não tens medo do número que todos rejeitam? Ergueste o queixo. — Não. O treze é meu. O que eles chamam azar, eu chamo de caminho. A figura sorriu e nesse so...

Chegada

 O último comboio chegou ao cais deserto como um suspiro metálico, arfando vapor pelas gretas enferrujadas. As lâmpadas, embaciadas de pó, vacilavam, e cada clarão parecia denunciar algo que se movia nas sombras. Marta esperava, a mala pequena pendida da mão. Apertava a pega até os dedos lhe doerem. O peso parecia excessivo para tão pouca roupa; por vezes, jurava senti-la oscilar, como se tivesse vida própria. O bilhete no bolso trazia uma única palavra impressa: Chegada . O apito ecoou. Um frio húmido subiu-lhe pelas pernas. As portas da carruagem abriram-se num estertor de ferro. Dentro, bancos gastos, riscados por unhas invisíveis. Silêncio. Cheiro a terra molhada. Sentou-se. As janelas mostravam campos alagados onde presenças imóveis acompanhavam o comboio com olhos que não existiam. Casas sem portas, torres tortas contra um céu sem estrelas. Em cada paragem, o monstro de ferro libertava vapor e sombras subiam a bordo — contornos de fumo, imóveis, todos voltados para ela. ...

Sentir o sonho

 Publicação: Revista Ofélia  A casa dormia de olhos fechados. O soalho guardava o frio dos passos. As paredes, húmidas de murmúrios, respiravam o sal das histórias caladas. Lá fora, o mundo estendia-se imóvel, um campo aberto à espera do tempo. As espigas curvavam-se sem vento, como se escutassem um segredo antigo. Uma silhueta avançava devagar, feita de neblina e retorno. Não era sombra nem carne, mas o eco de algo por nascer. Nos braços, trazia o corpo do sonho, ainda quente, ainda a tremer, como um pássaro indeciso entre o voo e a petrificação. O chão reconhecia-lhe o peso, a memória de passos por vir. Mas o sonho começava a fixar-se e no contorno, ardia a dúvida. Seria milagre ou perda? Se se tornasse real, perder-se-ia a chama. A casa estremeceu no soalho. Veio um cheiro a laranja e terra molhada. As janelas abriram-se devagar, como pulmões a reaprender o ar. No rosto da silhueta, um traço de luz o breve milagre entre o antes e o depois....

Harmonizar o caos

 

Monólogo: Escutem

  Vivemos um tempo em que as pessoas deixaram de conversar. Gritam. Gritam porque acreditam que ouvir é fraqueza, que silenciar é submissão, que a pressa de se impor é mais importante do que compreender. E quando gritam, a minha raiva cresce. Cresce até se tornar quase física, um peso que empurra o peito, enriquece os músculos, prende a respiração. Cresce tanto que deixo de conseguir argumentar, deixo de conseguir explicar.  Ver mais...  

Fogo

A fogueira dança selvagem, rugindo entre os troncos secos, labaredas lambendo o céu escuro. Florestas, outrora verdes, tornam-se cinzas e desertas, silêncios quebrados por estalos ardentes. Animais correm com olhos assustados, buscando refúgio entre pedras quentes. Casas antigas de telhados incendiados, memórias consumidas pelo calor voraz. Fumaça espessa envolve montanhas, carregando cheiro acre e lembranças de verões antigos. Ventos traidores espalham fagulhas, pincelando destruição em cada encosta e vale. Homens e mulheres correm: baldes, mangueiras, coragem em mãos trémulas. No horizonte, o sol luta para aparecer, apagado pelo manto alaranjado. Cada brasa leva fragmentos de contos, sonhos, histórias ancestrais. A natureza refaz-se lentamente, promissora, regenerando-se após a chama.  (Dinâmica: 111 palavras, começa com A e acaba com a, sem verbo ter e ser)

Notas de Carmim

No bairro antigo, de ruas estreitas e fachadas descascadas, Sérgio era apenas o Pintor da Rua das Pombas. Não para vender, mas para manter-se inteiro, sem as telas, sentia-se apenas um vulto à deriva, alguém que caminhava sem deixar pegadas. Todas as manhãs, antes que o sol atravessasse as cortinas de renda do estúdio, ele acordava com um som que parecia vir de outro século, não o canto dos galos nem o motor dos barcos, mas o uivo distante de uma velha sirene . Não era só um ruído, era grave e lento, que marcava a pulsação de um tempo paralelo, como se chamasse não para o trabalho, mas para o que restava da vida. Ouvia-a como quem recebe um recado discreto: “Ainda há algo a criar, antes que o dia te roube.” O bairro parecia ouvir com ele. As janelas fechadas estremeciam ligeiramente, as calçadas prendiam o ar e até os gatos ficavam imóveis, como se também esperassem. Havia dias em que o som se perdia no vento e nesses dias as cores do mundo pareciam-lhe mais pálidas, como se algu...