Mariana acordou antes de Sol nascer. O vento sacudia as persianas do quarto e o rugir das ondas chegava-lhe como um bater de tambores antigos. Levantou-se devagar, sentindo o soalho frio nos pés. Espreitou pela janela e viu o oceano estender-se até ao horizonte, com véus brancos de espuma a dançar à superfície. Uma inquietação apertava-lhe o peito.
Desde pequena, as águas fascinavam-na e assustavam-na em partes iguais. Gostava de as ouvir, de ver as vagas enrolarem-se e rebentarem, mas temia a sua imensidão, aonde se escondem segredos difíceis para uma criança entender.
Nessa madrugada,
porém, tudo parecia diferente. O oceano respirava mais depressa e o
vento trazia um cheiro a sal e mistério. Sem dizer nada a ninguém,
vestiu o casaco, calçou as botas e saiu para a praia. A areia fria e
húmida, colava-se às solas como lama. O céu clareava num azul desm
aiado,
mas a superfície líquida mantinha-se escura e furiosa.
Foi então que o viu.
No meio da ondulação, uma figura emergiu. Um cavalo, feito inteiramente de sal e espuma, a crina agitada pelo vento como véus de bruma. Tinha olhos enormes, profundos que brilhavam sob a luz trémula da lua.
Mariana parou, incapaz de avançar ou fugir. O cavalo aproximou-se, caminhando sobre a água como se fosse terra firme. Quando chegou junto dela, baixou a cabeça até à altura do seu rosto. Entre os cascos brilhava uma flor azul, delicada, quase translúcida. A voz do cavalo soou grave, ecoando como ondas a rebentar nas rochas.
— O oceano está doente, Mariana. Correntes negras crescem no seu fundo. Os homens descuidaram a beleza das suas memórias e esqueceram-se de respeitar as águas. E agora, sangra sal.
Mariana recuou um passo. O vento cortava-lhe a pele como lâminas frias.
— Mas… eu sou uma criança. O que eu posso fazer?
O cavalo inclinou o pescoço, aproximando ainda mais o focinho dela. Nos seus olhos havia algo de extraordinariamente familiar, uma ternura que a fez engolir em seco.
— Esta flor é a última promessa do mar. Está a perder a cor. Só quem guarda recordações felizes pode fazê-la brilhar de novo. Tu tens essas recordações, Mariana. Queres ajudar?
Ela desviou o olhar. Sentia-se pequena diante daquela imensidão, como se a força do oceano fosse demasiado vasta para qualquer esperança. Uma parte dela queria voltar para casa e ficar no quarto. E se falhasse? E se o oceano a engolisse também? Nunca fora corajosa.
Gostava mais de ver as águas ao longe, de ouvir-lhes o canto sem se aproximar. Mas, nesse instante, lembrou-se da avó, do jardim cheio de camélias, do som do rio junto à casa. E lembrou-se das palavras que a avó repetia tantas vezes: «“Mesmo quem parece frágil guarda dentro de si a força do mar inteiro.»”
Ergueu o olhar. O cavalo fitava-a com olhos brilhantes, e, durante um segundo, Mariana teve a certeza de reconhecer nele o mesmo brilho terno que via nos olhos da avó, quando esta lhe contava histórias à lareira. Como se aquela criatura fosse feita não só de espuma e sal, mas também de lembranças antigas.
Inspirou fundo. Ainda tremia, mas estendeu a mão.
— Quero ajudar.
O cavalo pareceu sorrir, num movimento subtil da cabeça.
— Então vem. Ainda há sombras para derrotar.
Guiou-a até ao rochedo mais alto. As ondas batiam com violência, lançando jorros de espuma branca semelhantes ao fumo. A subida era íngreme. O vento rugia, puxava-lhe o cabelo, chicoteava-lhe o rosto com sal e frio. As pedras estavam molhadas e Mariana escorregou mais do que uma vez.
Enquanto subia, ouviu vozes misturadas no vento. Sussurros que a faziam querer desistir:
— És pequena demais.
— Não salvarás nada.
— O oceano é maior do que tu.
A cada passo, o medo enchia-lhe o peito como água gelada. Mas, lá no fundo, a voz da avó ecoava, firme, como um farol: «“Mesmo quem parece frágil guarda dentro de si a força do mar inteiro.»”
Respirou fundo, agarrou a flor azul com força e continuou a subir. A imensidão lá em baixo rodopiava em redemoinhos negros, como se escondesse segredos que ninguém devia conhecer. Chegou ao topo, ofegante, o coração a martelar-lhe nas costelas. O Sol começava a rasgar as nuvens, lançando raios dourados sobre a superfície líquida.
O cavalo aproximou-se, a voz agora baixa, quase um sussurro:
— Agora, Mariana. Mostra ao mar a luz que tens dentro de ti.
Ela ergueu a flor azul, mesmo quando o vento quase lha arrancava das mãos. Fechou os olhos e deixou que as recordações lhe percorressem o corpo como um calor suave: o jardim florido, o cheiro adocicado das camélias, o riso cristalino da irmã, o aconchego da mãe. Essas memórias vibraram dentro dela como cordas de um instrumento antigo.
Quando abriu os olhos, a flor azul brilhava com uma intensidade nova. O azul tornara-se profundo, luminoso, como uma chama acesa. A luz espalhou-se pelas águas. As vagas acalmaram, o rugido do oceano transformou-se num sussurro doce. O ar encheu-se de um silêncio cheio de significado no qual cabia a paz.
O cavalo fitou-a, os olhos agora serenos, quase humanos.
— Lembra-te sempre, Mariana. Quando a tempestade voltar, há dentro de ti uma flor azul que nunca se apaga.
E, lentamente, o cavalo começou a dissolver-se, transformando-se em espuma que subiu com o vento, como uma canção que se esfumava no ar. E ela, desceu devagar, sentindo o corpo cansado, marcado pelos pequenos cortes, mas de peito leve e cheio de uma força nova.
Em casa, encontrou a avó adormecida na poltrona, com o bordado colorido sobre o colo. O chá ainda fumegava na chávena esquecida. Mariana sentou-se à mesa, abriu o caderno e desenhou o cavalo de sal, com a crina feita de bruma e o olhar profundo como as águas.
Depois colocou a flor azulada num copo com água, junto à janela. E ficou a olhar o oceano, agora calmo, o silêncio já não doía. Sorriu, porque sabia que, mesmo quando tudo parecesse escuro, haveria sempre uma flor azul pronta a acender-se dentro dela.
Escolhida para Top3 e selecionada para o Top1 no Prazer da escrita
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