6 agosto de 1942 - Lisboa sufoca sob um calor insuportável e uma nuvem de poluição que fere as mucosas nasais. Um concerto de buzinas abafa os pregões das varinas de canastra à cabeça, marcando o compasso dos carros que abrem freneticamente caminho através das ruas congestionadas da Baixa.
A burguesia rica já se mudou para as residências de verão, no Estoril. Mas também ali a agitação é maior do que nos anos anteriores. A parte endinheirada dos 60 mil refugiados, na sua maioria judeus, que invadiram a capital desde o espezinhamento da França pelas botas militares alemãs, preferiu o clima mais ameno da chiquérrima estância balnear.
Na abafada Lisboa, ficou quem tem de lutar pela sobrevivência, pelo visto, por um bilhete que dá direito a um lugar num transatlântico apinhado. Ficaram os que não podem extasiar-se com os hors d'oevres, as sopas, os bifes, os vinhos e o aroma do café brasileiro dos ótimos restaurantes da cidade, tendo de recorrer à sopa na Cozinha Económica Israelita.
O Estoril é um oásis de frescura, cosmopolitismo e paz. Nas praias, a areia dourada mete-se, a cada passo, entre os dedos dos pés descalços, ao contrário do que acontece além Pirenéus, onde os areais foram convertidos em instalações militares, rodeadas de arame farpado, minas antitanque e antipessoal e pesados blocos de cimento, para evitar a passagem de carros de combate.
Na Riviera portuguesa, os hotéis e o Casino estão a abarrotar de clientela estrangeira. O muito dinheiro que gastam apenas lhes atenua o sofrimento de quem anda há demasiado tempo a fugir à guerra e à perseguição. Diplomatas, homens de negócios, ex-governantes, aristocratas e monarcas caídos em desgraça cruzam-se nas mesas de baccarat.
Alguns espiões frequentam, às claras, os bares dos hotéis e o Casino. Trocam-se informações e espalham-se boatos para confundir os agentes inimigos.
"O Hotel Atlântico é a casa de repouso da Gestapo", comenta-se, por estes dias, na colónia alemã de Lisboa. Os aliados, em especial os britânicos, têm uma predileção pelo Hotel Palácio. O MI6 britânico avisou, entretanto, os seus agentes na zona de Lisboa: há que evitar sítios muito frequentados por ingleses. Estão infestados de agentes ao serviço das potências do Eixo.
NA SOMBRA
É ao anoitecer, quando os candeeiros da Marginal se acendem e o Casino se ilumina, que o Estoril ganha uma aura incandescente, nesta Europa escurecida, em blackout, a aguardar bombardeamentos.
Mas a luminosa Costa do Sol também tem o seu lado sombrio. Não muito longe do halo esbranquiçado das luzes daquela avenida à distância de uns vinte minutos de caminhada, sempre a subir, atrás de muros encimados por vegetação, duas casas contíguas, na Rua de Inglaterra, ocultam uma das mais bem guardadas armas secretas alemãs em território neutro.
O Chalet Bem-me-quer e a Vivenda Gira-Sol são oficialmente as residências dos funcionários da legação alemã em Lisboa, Hans Bendixen e Richard Schubert.
Escusado será dizer que o estatuto diplomático é apenas uma cobertura conveniente.
A verdade é que as duas casas, com uma vista ampla até à foz do Tejo, são bastante mais do que um mero posto de observação a partir do qual os serviços secretos militares alemães (Abwehr) controlam, 24 sobre 24 horas, tudo o que entra e sai do porto de Lisboa.
É no Chalet Bem-me-quer que, nesta noite de 6 de agosto, um radiotelegrafista alemão, possivelmente Rudolf Larenz ou Helmut Hope, recebe uma mensagem codificada.
Os di-dah-di-dah do morse dão conta de movimentações navais dos aliados na Terra Nova, falam dos navios que enchem o porto de St. John's, do equipamento que levam e das rotas de comboios marítimos que, partindo da Costa Leste dos Estados Unidos, vão abastecer uma Grã-Bretanha cercada e, através de Murmansk, uma União Soviética à mingua de armamento e víveres para barrar o caminho que Hitler tomou em direção ao Cáucaso.
Algures no Atlântico, entre a Terra Nova e a Gronelândia, é Gastão Ferraz, 47 anos, radiotelegrafista de primeira classe, morador na Rua Morais Soares 78, em Lisboa, quem manobra, com destreza, o "pica-pau", emitindo, a partir do Gil Eanes, o navio-almirante da frota portuguesa da pesca do bacalhau, os sinais codificados recebidos no Estoril.
BACALHOEIROS INFILTRADOS
O dossiê que os serviços da contraespionagem britânica hão de elaborar a seu respeito não se limita a revelar a história de um radiotelegrafista que vendeu os seus serviços aos alemães por 1 500 escudos mensais (quando o salário de um operário especializado não chegava aos 500 escudos). Juntamente com outros documentos britânicos e alemães, revela o recurso intenso da secreta naval nazi à infiltração de agentes seus na frota bacalhoeira portuguesa.
"O uso de agentes a bordo de navios de pesca como estes portugueses é uma das características operacionais dos serviços secretos navais alemães em Lisboa", escreverá, em setembro desse ano, o brigadeiro David Petrie, diretor-geral do MI5, numa carta ao tenente-coronel Guild, oficial de segurança no porto de St. John's.
Gastão Ferraz, oficial da Legião Portuguesa, apodrecerá durante três anos, até ao final da guerra, em dois campos de concentração para espiões, em Inglaterra.
Segundo contará mais tarde, no Camp 020R tratavam-no bem, davam-lhe uma "ração" de seis cigarros por dia e até o levaram ao dentista. Isso depois de ter passado pelo horror dos interrogatórios, noutro campo de internamento.
Uma das jogadas de Hans Bendixen foi a de recrutar o maior número possível de homens entre o pessoal mais qualificado da frota do bacalhau sendo, entre os oficiais, os radiotelegrafistas os mais cobiçados. Os serviços de segurança britânicos têm, por isso, fortes razões para desconfiar que, entre os 47 bacalhoeiros que, em maio, largaram rumo aos bancos de pesca da Terra Nova e da Gronelândia, uma dúzia leva a bordo, pelo menos, um agente do Eixo.
O que torna a frota portuguesa apetecível para a espionagem naval alemã é o facto de esses bancos de pesca navegarem exatamente nas rotas dos comboios de navios (de mercadorias e de tropas) que atravessam o Atlântico entre os EUA e a Grã-Bretanha e a Rússia. Ora, em plena Batalha do Atlântico, os alemães usam a cobertura da neutralidade portuguesa para monitorizar o tráfego marítimo e colocar as suas alcateias submarinas no encalço das embarcações aliadas. A preocupação grassa nos centros de poder militar, em Londres e Washington, onde, à boca pequena, se admite que essa batalha está à beira de ser perdida.
Os alemães não só quebraram o código de comunicações dos comboios navais aliados, como descobriram que o asdic, o sistema usado para a deteção de submarinos, é praticamente cego quando eles navegam à superfície. Assim, passaram a atacar à noite, aproximando-se a umas 500 jardas dos navios, sem serem detetados.
Só em junho, o pior mês, afundaram 173 navios. Os submarinistas alemães falam, este verão, em "idade de ouro" e em "época de caça americana". Entre janeiro e agosto, das investidas alemãs, envolvendo apenas 22 submarinos, resultou a perda de 609 navios aliados, o equivalente a mais de 3 milhões de toneladas.
E isso, em certa medida, com a ajuda da frota bacalhoeira nacional, também suspeita de abastecer os alemães em alto mar, se não com combustível, pelo menos com víveres.
O navio almirante dessa frota é o Gil Eanes, cedido, em fevereiro, pela Armada ao Grémio dos Armadores de Pesca do Bacalhau.
Trata-se de um organismo tutelado pela figura paternalista e, diga-se, germanófila, de Henrique Tenreiro, cunhado e ajudante de campo de Ortins de Bettencourt, ministro da Marinha. Tenreiro, tido como o patrono das pescas, contratou Ferraz para o Gil Eanes. A investigação inglesa há de apontá-lo como alguém que pode, pelo menos, ter facilitado a infiltração da frota bacalhoeira pelos nazis.
O Gil Eanes é um navio de bandeira, que representa o Estado português naquelas águas, onde faz um vaivém permanente entre os bacalhoeiros (na sua maioria veleiros), abastecendo-os e apoiando-os com cuidados médicos. Goza, assim, de uma liberdade total no Atlântico Norte, que lhe permite fazer escalas em diversos portos aliados, entre eles Hallifax, no Canadá, Nova Iorque e Newport News, nos EUA, este último quase encostado à base aérea naval de Norfolk, a maior do hemisfério ocidental. O raio de ação da embarcação portuguesa vai da Virgínia ao Círculo Polar Ártico.
INGLESES À ESCUTA
Não foi só o telegrafista de serviço na estação clandestina instalada no chalé do Estoril quem captou a mensagem enviada por Ferraz a partir do Atlântico Norte.
Um dos postos de escuta dos ingleses intercetou-a e enviou-a para ser descodificada na Goverment Code & Cypher School que o MI6 instalou numa propriedade rural chamada Bletchley Park (ver caixa). Trata-se da verdadeira arma secreta dos aliados. É aqui que se desvendam os códigos das mensagens que os nazis cifram com as suas máquinas Enigma e Lorenz, tidas, por eles, como inexpugnáveis. E os britânicos hão de conseguir guardar o segredo até muito depois de a guerra terminar: a sua existência só será tornada pública em 1975.
Esta será, durante toda a guerra, a fonte de informação mais fiável sobre as diatribes alemãs. Nos relatórios, é sempre mencionada como most secret source ou simplesmente ULTRA. Mesmo na comunidade britânica de informações, apenas um grupo muitíssimo restrito sabe que ambas as expressões são sinónimos de um complexo sistema que interceta e decifra as comunicações alemãs.
Aquela não foi a primeira mensagem de Ferraz a ser intercetada. A contraespionagem britânica sabe, pelo menos desde julho, que o Gil Eanes transporta um espião nazi a bordo.
Paralelamente à infiltração na frota bacalhoeira, e ao desenvolvimento da chamada "organização costeira", que inclui, entre outros serviços, a colocação de agentes em navios da marinha mercante, Hans Bendixen, número dois da espionagem militar alemã em Lisboa a chamada Kriegsorganization Portugal (KOP, Organização de Guerra Portugal) desenvolveu uma rede de comunicações clandestinas que abarcava praticamente todo o hemisfério Ocidental, cujo epicentro eram as duas moradias do Estoril.
É aí que chegam as mensagens enviadas, via radiotelegrafia, pelos agentes da secreta militar alemã infiltrados, nos Estados Unidos, Inglaterra, América do Sul e África, e em todo o Império português, do Atlântico ao Índico. A partir do Estoril, essas informações são retransmitidas aos centros operacionais em Berlim, Hamburgo, Paris e Bordéus a localização de um comboio naval a atravessar o Atlântico tinha de chegar em tempo útil aos submarinos.
O PONTO DE VIRAGEM
No outono de 1941, a KOP partilhava com os serviços diplomáticos o único transmissor radiotelegráfico da legação.
Meses depois, há aparelhos disseminados por toda a orla costeira, ilhas e colónias portuguesas. O evoluir da guerra e a necessidade de retransmitir dados acerca do tráfego para os centros operacionais criou a necessidade de estabelecer vários serviços radiotelegráficos em Portugal. Só em Lisboa e arredores existiriam mais de cinco dezenas, pelas contas dos ingleses.
Mas os ventos de guerra mudarão realmente, até ao final do ano, e o seguinte revelar-se-á complicado para as organizações alemãs no nosso país. Os casos de Ferraz e de outros nove portugueses, detidos em Inglaterra grupo em que se inclui Rogério de Menezes, o escriturário da embaixada de Londres condenado à morte, mas cuja pena será comutada, causam um grande embaraço a Salazar.
Finalmente, em 1943, o ditador manda a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE) agir contra as organizações de espionagem alemãs, que têm feito mais ou menos o que querem, com as autoridades portuguesas a assobiarem para o lado ou a facilitarem-lhes mesmo o trabalho.
Vários alemães, entre os quais Schubert, são expulsos do País e dezenas de portugueses acabam presos. No Estoril, as moradias Bem-me-quer e Gira-Sol são alvo de uma busca. Mas, nos seus autos, a polícia política, onde predomina a germanofilia, faz constar que, além de um velho recetor de marca norte-americana, nada de suspeito foi encontrado.
Hans Bendixen, esse, continuará por cá, praticamente até ao final da guerra, como número dois da espionagem da Wehrmacht e, temporariamente, como diretor interino do KOP.
Com o final da guerra esvazia-se, também, a vaga de refugiados. O Estoril mantém o glamour e Lisboa permanece caótica e de ar quase irrespirável, embora mais cosmopolita.