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1 de julho de 2025

Códigos Silenciosos

O nevoeiro sobre Nova Orbis não era apenas bruma, era um suspiro constante, uma respiração pesada que se entranhava em cada pedra, como se a cidade viva respirasse sob o jugo do Sistema Prime. Uma cortina densa, permanente, céu e terra deixavam de ser distinguíveis. O ar adensava-se com a opressão, esmagando pulmões, afogando pensamentos.

O Sistema Prime não só via tudo, também sentia. Era uma fera invisível que se alimentava do medo e da obediência. Cada palavra registada, cada pensamento moldado, cada sonho espionado por algoritmos.

Diziam que os fios mortos ainda sussurravam o nome dela, a que ousou desafiar o Sistema.

Naquela manhã, o terminal piscou: «Eles sabem que estás a tentar sair.» O meu coração falhou um compasso. Ninguém sabia. Nem Elias.

Levei o polegar ao pulso. Gesto herdado do meu pai. Ele fazia-o no escuro, como quem confirmava que ainda existia. Nunca deixes que vejam o teu medo. Sentir não denuncia. Mostrar, sim.

Durante meses, colecionei fragmentos proibidos, chips ilegais, códigos queimados, mapas em papel quase desfeitos. O plano era arriscado. Mas era meu, a última esperança que me restava para escapar deste mundo.

Agora, sabiam.

Nas zonas de monitorização, sorria. Marcha perfeita. O nevoeiro fazia da cidade uma prisão líquida, onde cada sombra podia ser um Olho disfarçado. Um agente hesitou. O olhar fixo e glacial congelava as dúvidas dentro de mim. «Desvio potencial: Setor Kael.»

O suor escorria-me pela espinha. Avancei, dominando cada músculo.

Quando o silêncio do mundo te parecer natural, grita por dentro.

Era a voz do meu pai, ecoando nas noites frias: Os sistemas são como bichos. Não gostam de ser feridos, mas se lhes mostrares silêncio... abrem-se.

Mas o silêncio não dura para sempre.

Na quarta noite, uma nova mensagem: «Estão perto.»

E Elias percebeu. A dúvida entre nós não era simples, era um campo minado.

— Estás estranho… Não me contas tudo.

O seu tom era suave, mas carregado de suspeita.

— Só estou cansado — menti. Usei um código antigo. Ele tinha acesso. Precisava que acreditasse. Mas dentro de mim, o silêncio gritava: quem guarda os guardiões?

A aldeia dos Gestos não estava longe. Onde Nova Orbis era uma garganta apertada pelo nevoeiro e câmaras. Era um pulmão aberto, um refúgio esquecido do tempo. As árvores antigas erguiam-se como guardiãs silenciosas. Os rios sem nome escondiam segredos antigos. O ar era pesado de histórias não ditas, mas também livre, um silêncio carregado de significado.

Ali, as palavras perderam força. A comunicação era feita de sopros, ritmos e silêncios. Um toque no ombro: «Confio.» Um assobio curto: «Alerta.» Um gesto em dois tempos: «Atenção.» Era como se, naquela aldeia, a própria essência da comunicação tivesse sido reinventada para escapar à vigilância do Sistema.

Fugi nessa noite, numa falha térmica de doze segundos de invisibilidade. Tempo suficiente para escapar do canto opressivo do Sistema Prime. A Zona Zero era mais do que um espaço abandonado, um lugar onde o tempo se desfazia em ecos e segredos. Corredores com símbolos marcados em sangue seco, túneis onde o ar zumbia com vozes antigas, como sussurros das almas que ali viveram. Num desses caminhos, uma boneca sem braços esperava, com um bordado desbotado: «Para Mira.»

— Tens coragem de vir, mas não sabes para onde vais — disse uma voz rouca.

Era Mira. De cabelos emaranhados, olhos como uma chama que a opressão nunca conseguiu apagar, uma cicatriz no rosto como marca de fogo e de resistência.

— Foste tu que enviaste as mensagens? —

Ela assentiu, os olhos pesados.

— E ainda não percebeste quem te traiu.

— Elias? — Limitou-se a apontar para a boneca.

— Era minha. O teu nome apareceu nos mesmos arquivos que os meus. Os nossos pais tentaram fugir juntos. Elias era aprendiz deles. Ficou para vigiar e garantir que não quebrássemos o ciclo.

Lembrei-me do meu pai, escondendo-me num armário antes de ser levado. Tocou-me no peito, firme: Se um dia correres, não leves nomes. Leva promessas.

Mira entregou-me um transmissor.

— Tens dez segundos antes que te rastreiem.

— E tu?

Tirou do pescoço um colar. Uma conta de âmbar.

— Isto não é só um símbolo. As velhas contas guardam dados esquecidos. Códigos que não se deixam apagar.

Corri. Atrás, o som metálico dos Olhos aproximava-se.

Leva só o que não pode ser quebrado.

Três ciclos de silêncio depois, o sinal:

— Kael... ouves-me?

Era Elias.

— Não é o que pensas. Eles sabiam de ti antes de mim. Eu tentei afastar os Olhos. A Mira sobreviveu. Protege-a. Cuida da última centelha.

O sinal cortou.

Chamam-lhe Eco, à Mira, aquela que regressou com chama no sangue. À noite, diz:

— A destruição não começa com bombas. Começa com memória.

O transmissor vibrou. PRIME-000. Falha crítica. Setor Norte comprometido.

Era o início. Voltámos à orla da cidade. O nevoeiro adensava-se, como se Nova Orbis respirasse fundo, pronta a expelir o veneno. Mira parou.

— É aqui que decido: se vou morrer com o passado ou viver pelo futuro. — Entregou-me um novo transmissor, selado com cera negra. — Só pode ser ativado no núcleo. Uma viagem sem retorno.

Colocou-me o colar na mão. Dizem que cada conta guarda um nome esquecido. Se eu cair… que reste o brilho. E a verdade. Toquei no pulso. Grita por dentro.

Minutos, depois horas. Então, uma lâmina de luz rasgou o horizonte. Torres tombaram, silenciosas. As câmaras apagaram-se. O silêncio tornou-se profundo, quase sagrado. Antes do fim, um som pequeno: o âmbar sobre pedra. O transmissor queimado jazia no chão. Um bilhete, dobrado com cuidado: «Para quem vier, não deixem que voltem a esquecer. — M.»

O colar, quente e leve, pulsava com vida própria. As contas começaram a revelar padrões, códigos gravados em luz antiga.

Mira não voltou.

Agora somos nós que contamos as histórias. Kael, o Fugitivo. Mira, a Chama. Elias, o Traidor que talvez tenha amado demais. À noite, junto ao transmissor calado, repetimos: «Eles sabiam que saímos. Nunca souberam que resistimos. Jamais imaginaram que renasceríamos.»

Mas mesmo na paz, vigio o vento. Porque a memória tem inimigos silenciosos. E eu toco no pulso. Se o mundo esquecer tudo... sê tu o que lembra

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