Num país onde as chamas já parecem uma estação do ano, não basta mais contar os hectares ardidos como se fossem apenas estatística. Portugal arde — outra vez — e arde por várias mãos: pelas do descuido, pela seca impiedosa, mas também, e com frequência assustadora, pela mão criminosa de quem risca o fósforo e vira costas.
Dados do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas apontam que entre 20% a 35% dos incêndios têm origem intencional. Contudo
, são estes que destroem mais — não só território, mas tempo, memórias, e sobretudo, vidas. Em 2023, 84% da área ardida foi resultado direto de fogos postos. O crime, neste caso, não é só fogo: é tragédia multiplicada.
E o que acontece a quem é apanhado?
A resposta oficial é: cadeia. Três a dez anos, podendo ir além se houver agravantes. Mas na prática, há uma sensação de impunidade difusa. Muitos processos não vão além da investigação; os que chegam a tribunal são, por vezes, reduzidos a penas suspensas. E os que são presos, entram num sistema que, para alguns, mais parece retiro: cama feita, três refeições por dia, roupa lavada. A floresta perde tudo; o incendiário perde apenas a liberdade — e nem sempre.
Surge então uma ideia que, sendo antiga, carrega a força da justiça natural:
E se os incendiários fossem obrigados a participar na reconstrução daquilo que queimaram?
E se limpassem mato, carregassem mangueiras, desentupissem valas, ajudassem os bombeiros — não em combate direto, mas em esforço real?
Não como castigo humilhante, mas como reparação. Que sintam, com o corpo inteiro, o peso do que é tentar salvar o que eles próprios destruíram. Que conheçam o cansaço de quem sobe a serra de botas encharcadas, com 40 graus nas costas e uma pá nas mãos. Justiça que não toca o corpo e não pesa na consciência é apenas papel com carimbo.
Sabemos que a Constituição não permite colocar reclusos em risco — e bem. Mas isso não impede um Estado com vontade de criar programas de trabalho florestal obrigatório para condenados por incêndio: limpeza preventiva, reflorestação, sensibilização nas escolas e aldeias. Obrigar a ouvir o choro de quem perdeu a casa pode ser mais eficaz do que anos de silêncio em cela fechada.
Portugal é um país de memória curta. Todos os anos o fogo nos visita, e todos os anos reagimos como se fosse surpresa. Talvez porque nunca exigimos o bastante de quem o ateia.
Talvez porque o medo de parecer duros nos impede de sermos justos.
Mas há uma verdade antiga que resiste ao fumo:
Quem queima a terra, deve sentir-lhe o peso.
Quem acende, que ajude a apagar.
Quem destrói, que construa.
Porque só assim a justiça deixa de ser abstracta e se torna como a cinza real, palpável, irrecusável.
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