Quando os corpos começaram a desaparecer, ninguém parecia surpreso. Primeiro foi o cão de Mariana, depois o gato do vizinho, sempre à noite, sempre silencioso. Pela manhã, objetos novos ocupavam os lugares vazios: relógios, bonecas, vasos. Mas o ar pulsava, espesso, quente e metálico, dobrando-se à volta, como se respirasse por dentro da pele de quem olhava.
Mariana começou a tentar corrigir os objetos: alinhar a cadeira, ajeitar a boneca, substituir o vaso por outro. Cada tentativa falhava. Os objetos moviam-se sozinhos, ajustando-se, melhorando, impondo uma ordem invisível. Sentiu o chão vibrar sob os pés, a brisa cheirar a ferro queimado, um som surdo reverberar nos ossos. A mudez observava, aguardava, corrigia.
Numa noite, seguiu passos suaves até ao quintal. Uma figura encapuçada observava. Tentou falar, mas a voz dissolveu-se. O cão estava imóvel, olhos humanos, cabeça girando impossível. O chão ondulava, o vento tornou-se sólido, o tempo desacelerou. O substituto estudava, aperfeiçoava, moldava.
Nos dias seguintes, os substitutos multiplicaram-se: vizinhos, animais, sombras, cada gesto calibrado, cada expressão otimizada. As paredes curvavam-se, o espaço expandia-se e comprimida-se sem aviso.
Um dia, Mariana olhou para o espelho e viu-se calma demais, perfeita demais. Um sussurro emergiu do vidro: “É a tua vez.” Tentou fugir, mas mãos impossíveis agarraram-na. Sentiu-se esticar, diluir-se, fundir-se com reflexos, sombras, sons. O mundo real era fachada.
Cada rosto, cada sombra, cada gesto podia ser substituído. A respiração suspensa observava, moldava, duplicava. Mariana desapareceu, e, por um instante, tudo ao redor — tu, a rua, o vento — pareceu hesitar. E se já fosses substituído? O silêncio respirava, atento, aperfeiçoando, sempre aperfeiçoando.

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