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Vulcão em Repouso

Tema: INVESTIGAR PARA ESCREVER… UM CONTO ERÓTICO - A Casa dos Budas Ditosos (Nos top 3 do Clube dos Writers)

Nota da autora

Este conto nasce da recusa.
Recusa do apagamento, da culpa, do silêncio.
Aqui, o corpo não é metáfora, é argumento.
A sexualidade não é
'performance' é filosofia encarnada.
É direito de existir com desejo, com rugas, com história.
Cada toque é protesto, cada gozo é sobrevivência.
O que pulsa não é apenas carne, é memória, é resistência

Acordei com um calor entre as pernas que não era só físico, era lembrança. Aos 67 anos, o meu corpo não precisa de espelho para saber que mudou. A carne cedeu, os vincos chegaram. Mas a fome… a fome subsistiu. E ficou mais cruel. Mais honesta.

Às vezes vinha baixa, como uma reza: «  Ainda posso ?» E a resposta era sempre: «Não posso não querer.»

Na juventude, tinha relações por impulso, uma corrida sem mapa. Hoje é ritual. Cada toque tem peso. Cada momento carrega história.

Antes do Marcelo chegar, olhei-me ao espelho. Um vestido leve, o que ele conhecia. Pensei em trocá-lo. Peguei na camisola de algodão e quase fui para a cama sozinha. O Marcelo chegou às onze horas, sem aviso. Vinho tinto, uma camisa gasta moldando o peito peludo. Cabelo grisalho, mãos grandes e olhos que escutam.

— "Estás mais bonita hoje" — disse, sem pressa.

— "Hoje? Só hoje?" — rebati, rindo. Por dentro, fisgada. Ele ainda via e não era sobre beleza. Era sobre ser vista.

O Marcelo tem 56 anos. Não é menino, nem velho. Tinha potência nos quadris, mas aprendeu a escutar. Ainda assim, erra. Noutro dia, distraído:

— "Pareces mais… cansada." — Sorri com os dentes. Por dentro, trinquei.

Não é fácil ser um templo antigo, mas sou. Ruínas que guardam as marcas das procissões, das velas queimadas, dos cantos noturnos e ninguém visita sem reverência. Uma vez, depois do sexo, ele disse:

— “Não esperas permissão. És templo e sacerdotisa.”

Ri alto, fingindo não me lembrar da frase anterior. Porque a maioria dos homens já não me vê. Na rua, os olhares escorrem de mim como se eu fosse vidro, invisível. Na farmácia, «vovó» que vai comprar o preservativo.

O Marcelo é exceção e, é talvez por isso que eu ainda, o receba. Mas até ele hesita. E eu percebo. No silêncio que se estende entre um gesto e outro, no olhar que às vezes escapa, como quem teme ver no outro o próprio futuro. Teme o envelhecer. E, por tabela, o meu.

No quarto, toca-me como quem lê um livro raro, com dedos atentos, olhos lentos. Quando me penetra, não busca apenas orgasmo. Procura habitar, com calma. E antes de tudo isso, veio o pensamento: “Se este for o último corpo que tocar o meu… será o suficiente?”

A pergunta engasgou-me. Não por dúvida, mas por gratidão. Marcelo é espelho e alerta. Resposta ao silêncio que a idade tenta impor. Não me vê como relíquia. Vê-me como vulcão em repouso.

Fodíamos como quem dança sobre cinzas. A minha pele contra a dele. Suor misturado com vinho barato e lembranças. Quando me virou de lado, os meus joelhos doeram. Ri sozinha. A satisfação, agora também vinha com dores lombares. Ele riu também:

— “Acha que quebrámos alguma coisa?”

— “Só o silêncio” — respondi.

Quando a sua boca desceu entre as minhas coxas, senti mais do que prazer, senti justiça. Disseram-me que essa parte da vida era para ser apagada. Que o gozo tinha prazo. Que a mulher que envelhece deve calar-se. Eu gritei. Não pelo orgasmo, mas pelo direito de tê-lo. Depois, deitada sobre o peito dele, perguntei:

— “Tens medo de mim?”

— “Não. Tenho medo de nunca ser tão livre como tu.”

Fechei os olhos. Eu não era jovem. Era livre. Hoje não preciso de promessas, preciso de mãos que saibam pousar. Línguas que falem a linguagem da minha pele. Olhares que não peçam desculpa por desejar. O Marcelo vestiu-me com os dedos. Beijou-me o ombro como quem agradece por também ser visto. Quando saiu, ficou aquele silêncio cheio. O sossego depois do grito certo.

Levantei-me nua. Olhei-me ao espelho. Não o corpo que fui, o corpo que ainda sou. Marcas nos seios. Coxas pesadas. Ventre mole. Tudo isso é meu. Tudo ainda pulsa.

Acendi uma vela sobre a cómoda. Não para rezar, mas para celebrar. Toquei na mesa da sala, onde já fui deitada como oferenda. Encostei-me à na parede do corredor, que já escutou o meu riso entre gemidos. Qualquer fresta, cada móvel, toda a sombra, tudo aqui conhece o meu corpo. Tudo aqui me reconhece. A chama ainda tremia sobre o móvel.

Como se soubesse que o templo não dorme. Ele pulsa. E arde.

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Portugaaalll

Vamos lá!!!! Força selecção vamos jogar limpo vamos jogar correto vamos jogar bonito! vamos mostrar como o futebol é espectáculo!!!