Avançar para o conteúdo principal

A Teia das Bênçãos e das Maldições

 A aldeia despertava sempre envolta num véu húmido, como se a noite exalasse um suspiro que ninguém ousava decifrar. Os habitantes moviam-se com cuidado, evitando certas janelas, portas que permaneciam fechadas desde sempre, como se respeitassem um pacto silencioso. Na casa mais antiga, de telhado cansado e janelas estreitas, Clara descobriu um rosário enterrado sob o soalho. Cada conta parecia conter uma gota de água presa no tempo, translúcida e fria, ou um fragmento de unha antiga que provocava arrepios.

Ao tocá-lo, sentiu um calor estranho que lhe percorreu o braço. O silêncio da casa tornou-se denso, atento, carregado de uma presença que se contorcia nas sombras. Lá fora, o vento murmurava pelos campos, e dentro tudo parecia escutar-se a si mesmo.

Nos dias que se seguiram, bênçãos pequenas começaram a surgir. A água do poço subiu, clara como nunca. As galinhas, antes inúteis, encheram o cesto com ovos. Até o animal gasto pelo tempo recobrou forças, movendo-se com cautela mas vigor renovado. A aldeia aproximava-se dela com respeito silencioso, como se Clara carregasse algo ancestral.

Mas o rosário escurecia a cada dia, e a teia entre bênçãos e presságios começava a apertar. O poço sussurrava nomes esquecidos, as galinhas bicavam o ar vazio e o guardião cansado rosnava para cantos sem forma. Raízes pareciam tocar-se sob o chão, sombras entrelaçavam-se nos cantos da casa, e Clara sentiu o peso de algo que queria regressar.

Numa noite sem lua, compreendeu o preço. O rosário pulsava como um coração que não era seu, exigindo mais do que podia oferecer. Com mãos trémulas, empurrou-o de volta para o buraco do soalho, sentindo as contas arranharem-lhe a pele, recusando-se a desaparecer. Tapou o espaço com tábuas e o ar relaxou num sopro gelado.

Ao amanhecer, a aldeia parecia a mesma. O poço silencioso, o cesto vazio, o animal adormecido para sempre. Clara sentou-se à porta, cansada mas inteira, percebendo que certas dádivas são apenas máscaras de uma fome antiga. E, no silêncio que parecia paz, percebeu que a ameaça nunca dormira — apenas aguardava a próxima respiração.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Fala

Na aldeia engolida pela névoa, ninguém falava depois do pôr do sol. Dizia-se que as palavras, libertas no ar frio, ganhavam corpo e voltavam famintas a procurar quem as soltou. Helena não acreditava. O pai ensinara-lhe a chamar o vento com o nome das coisas perdidas, a sombra de um cão, o riso da mãe, o som das campainhas ao longe. Às vezes parecia ouvir resposta. Nessa noite, cansada do medo dos outros, subiu à colina e gritou o nome dele. O chamamento regressou, denso, como se tivesse atravessado a terra húmida. — Helena. Não era eco. Era retorno. O ar tremeu. Da bruma ergueu-se algo que lembrava uma boca feita de sombra e vapor. O sussurro enchia-lhe o peito, puxava-lhe o fôlego para fora. — Deixa-me entrar. As sílabas tocaram-lhe a pele, quentes, viscosas. Escorriam-lhe pelo pescoço, entravam-lhe nos ouvidos, serpentinas de som à procura de abrigo. Tentou falar, mas o ar já não lhe pertencia. Na manhã seguinte, encontraram-na junto ao poço, imóvel. Os olhos, fixos na água, ...