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Mensagens

O Sopro da Vida

Às vezes, não há mesmo um aviso. As cortinas do tempo se abrem, nuas, sem música, sem prólogo, só o silêncio e as mãos cruas. Em poucos segundos, tudo cai. O chão que parecia tão seguro se esvai em névoa. E o que era o alicerce torna-se apenas rastro, poeira. Vivemos na ilusão do comando, traçando um plano como um cartógrafo, crendo que a vida é linear e previsível, mas é maré e vento errático. Pensamos demais. A mente pesa. O que virá? O que foi? E se fosse...? Levamos as pedras nos bolsos e esquecemos o instante que nos trouxe. Pensa menos e sinta mais. Sinta o calor do sol sobre a face, o silêncio a dançar entre os sentidos, o riso sem razão, leve e fugaz, o arrepio dos tempos já partidos. A vida é curta e bela, E se a olharmos bem, nem é breve é um sopro. Suspiro entre dois vazios. Aproveitar não é correr, é ser. É colher figos antes que estejam frios. Há beleza no estar, simplesmente, viver com atenção, em alma presente, amar sem rede, sem ga...

Mariana e a Flor Azul

Conto, gênero Infanto juvenil: Nome da personagem Mariana/ Animal cavalo/ Objecto flor/ Verbo ajudar/ Espaço mãe/ Para no final transmitir paz as crianças. Mariana vivia com a mãe numa casinha simples, cercada de flores e silêncio. Um dia, encontrou um cavalo branco no quintal. Chamou-o de Jasmim. Ele não falava, mas entendia tudo. Quando a mãe adoeceu, Mariana cuidou dela com carinho. Ajudou a varrer a casa, fez chá e colheu flores. Jasmim a seguia por todo o lado, deixando pétalas pelo chão. Numa manhã, Mariana encontrou uma flor azul, rara como um sonho. Colocou-a ao lado da cama da mãe e a febre passou. A mãe sorriu. Jasmim relinchou. E, no coração da menina, nasceu uma paz tão grande que parecia encher o mundo.

A Teia

A primeira aranha apareceu na manhã em que o velho modem piscou pela última vez. Clara vivia sozinha num rés-do-chão húmido, paredes forradas de livros e silêncios, onde o ruído do mundo chegava filtrado por camadas de poeira e memória. Quando perdeu a ligação à internet, não ligou. Era um alívio. Um silêncio novo. Na semana seguinte, teias surgiram nos cantos dos quartos. Mas não eram teias comuns. Estendiam-se com uma simetria quase matemática, fios prateados que vibravam mesmo sem vento. As aranhas, finas como agulhas, tinham olhos demais. Clara tentava limpá-las. No dia seguinte, estavam de volta. Maiores. Mais densas. Descobriu que os livros estavam colados. Quando forçou um, as páginas estavam preenchidas por símbolos bordados em seda  fórmulas, fragmentos de código, palavras que nunca aprendera. Conectada . Permanece . Ouvida . Na véspera do equinócio, Clara tentou religar o modem. As luzes piscaram uma última vez. Depois, só o zumbido. Um calor estranho percorreu a casa....

E a sorte?? Paira no meu ar?

Sim, a sorte paira no teu ar esta semana, mas não como prémio. Como resposta. Ela não virá aos gritos, nem com clarins celestes. Virá no instante em que escolheres com verdade. No momento em que recusares o que brilha, mas não vibra. Na hora em que fores fiel à tua cadência, lenta, antiga, certeira. A sorte está em ti quando confias no que sabes há muito: que o código limpo é como um poema bem medido, que uma palavra certa vale mais que um milhão de cliques, que o tempo, esse velho artífice, está do teu lado quando não te vendes à pressa. Se precisares de um sinal, ele virá entre quinta e sábado. Não será óbvio, mas será exato. Um encontro, uma frase, um erro que afinal é chave. Repara bem. Não desates logo a interpretá-lo, vive-o. Se te perguntam se tens sorte, podes sorrir devagar e responder: “Tenho. Mas é da que se cultiva com silêncio e escolha certa.” E sim, o ar está cheio dela. Só tens de respirar com intenção.

A Voz e o Sal

O velho Manuel subiu a encosta de Alfama com o xaile da mulher dobrado sobre o braço. O cheiro do mar, mesmo distante, colava-se-lhe à pele como sal antigo. Os telhados coravam com a luz morna do entardecer, e das janelas escapavam murmúrios, panela ao lume, guitarra a afinar, silêncios a mastigar saudade. Na taberna da esquina, sentou-se à sombra. Pediu um copo de vinho e pousou o xaile no banco vazio. Era sempre o mesmo. Ali, Beatriz sentara-se pela última vez antes do cancro lhe apagar a voz. "Se algum dia a saudade for maior que o corpo, dá este xaile a quem a cante por mim", dissera, com o olhar virado ao Tejo. O homem da guitarra assentiu-lhe com uma mirada breve. Entre fados, há silêncios que se reconhecem. A rapariga entrou como quem procura algo que perdeu sem saber. Trazia nos olhos uma ausência antiga. Sentou-se, respirou fundo e cantou. > "Ai mar, que me levaste, Ai, vento, que não voltaste..." O tempo estacou. E com ele, o coração de Manu...

Obrigada a mim

  O sol nascia no quarto creme. A luz filtrava-se pelas persianas, desenhando sombras no chão. O ar cheirava a desinfetante e silêncio. O lençol, áspero contra a pele marcada, colava-se à carne como se quisesse lembrar onde doía. E eu, presa entre tubos e cicatrizes frescas, olhava o tecto como quem olha um céu escuro. O silêncio era denso. Só quebrado pelo bip das máquinas, esse compasso metálico da sobrevivência. Ali, o tempo não era tempo. Era espera. Era dor com nome e hora marcada. Não me lembro da última vez que respirei sem dor. O meu corpo era um campo de batalha. A pele, trincheira. Os músculos, soldados exaustos. E as cicatrizes… As cicatrizes eram fronteiras. Terreno conquistado. Cada linha na carne contava o avanço de uma ofensiva vencida a custo. Uma emboscada superada. Um regresso possível.  Lutei. Sozinha. Mas não como nos filmes. Sem música. Sem frases de efeito. Lutei em silêncio. Com o maxilar cerrado. Com a raiva sussurrada para dentro. C...

A Última Face

No dia em que Clara se esqueceu do rosto, o espelho da entrada estilhaçou-se sozinho. O sol nascente iluminava a casa antiga, revelando o pó a dançar no ar como espectros silenciosos. Ela desceu as escadas lentamente, os pés descalços tocando a madeira fria, mas não sentia nada. Estendeu a mão para o espelho, onde costumava ver o sorriso treinado, a simetria artificial que tanto praticara. Agora, só vidro partido como se o reflexo tivesse tentado fugir. Na vila, evitavam-na. Sussurravam quando passava, como se o silêncio tivesse peso e forma. O padre benzia-se três vezes ao vê-la. As crianças choravam. E Clara, que outrora vivera do olhar dos outros, vestia lenços escuros e mantinha a cabeça baixa, tentando prender o que quer que restasse de si. Certa noite, guiada por um pressentimento húmido e denso, desceu à cave. As paredes transpiravam memória. No fundo, uma caixa de madeira — não se lembrava de a ter guardado ali. Dentro, máscaras de vidro, todas com feições diferentes. Reconh...

Descalçar o Pensamento

Publicação: Revista Ofélia.   No alpendre gasto de madeira antiga, ela pousou os sapatos sem palavra. O chão sentiu o peso do abandono e devolveu-lhe o frio da memória. A casa ouviu o gesto sem ruído, como quem quebra um pacto sem remorso. Os quadros nas paredes tremularam com a leveza das coisas que se foram. Caminhou nua do tornozelo à mente, deixando para trás o ruído das ideias. No coração cresceu uma clareira onde os sentidos ardiam sem juízo. Na cozinha, o relógio estava mudo. No seu lugar, batia um outro tempo. Os pensamentos, descalços, tropeçavam nos cantos mais antigos da infância. Ali, o pai chamava da figueira. Ali, a mãe bordava no fim do dia. E o mundo era um lugar sem argumento, feito apenas de cheiros, toques e gestos. Sentou-se junto à luz, perto da porta. Não quis partir, mas também não ficou. No rosto havia a sombra do que viu, nos pés, o peso leve do que soube. E quando a tarde cedeu à promessa, ergueu-se com a coragem dos simples....

Herança de papel e tinta

Publicação: Clube dos Writers, Redes Sociais. A chuva miudinha tamborilava contra a janela do pequeno estúdio. O vento sussurrava entre as frestas da porta, emitindo um leve gemido fantasmagórico. O ar tinha um cheiro familiar , uma mistura de papel envelhecido, tinta seca e um leve resquício do perfume do pai, impregnado nos móveis e na poltrona onde ele sempre se sentara. Clara passou a mão sobre a mesa de desenho do pai, agora coberta de pó e de silêncio. Fora ali que ele passara tantas noites, dobrado sobre as pranchas, criando mundos de tinta e papel. E agora, restava um vazio. Foi então que viu o livro. Uma pilha de folhas , d esenhos a lápis, alguns traços definitivos a tinta, mas muitos balões vazios, sem palavras. Uma história suspensa. Com mãos hesitantes, folheou as páginas. A forma como o pai, esboçava emoções nos rostos e o jeito cuidadoso de sombrear. Algo a intrigava , a s personagens pareciam-lhe familia res.   Na primeira página, um ...

O que ninguém sabe

O poço no fundo do quintal nunca secava, mesmo nos verões em que os rios sumiam sob a poeira. A avó dizia que era abençoado. O pai murmurava o contrário, mas só quando achava que ninguém ouvia. Numa noite de Agosto, quando o calor roía os ossos e a electricidade faltava, ela acordou com um som húmido, arrastado, vindo lá de baixo. Foi até à janela. O balde subia devagar, como se soubesse o caminho de cor, puxado por uma força que não vinha da terra. No topo, repousava algo que não devia ter nome — um amontoado de carne escura, pulsante, como um coração lembrado só pelos mortos. De dentro, escapava um sussurro baixo, molhado, como se o objecto respirasse. De manhã, tudo parecia intacto. A mãe varria o alpendre com indiferença. O cão, encolhido sob a mesa, rosnava para o poço. Durante dias, observou em silêncio. Sempre à mesma hora, três e onze da madrugada, o balde descia e subia. E cada vez trazia mais: dentes soltos, cabelos embaraçados, uma mão de criança a mexer os dedos como al...

No dia do apagão

https://reportersombra.com/quando-o-mundo-desliga-a-calma-que-os-livros-nos-oferecem/?fbclid=IwY2xjawKRPRdleHRuA2FlbQIxMQABHvonMdsmQDM1hB1SmH6IHQ9Xf6n8aFUd7oy7xRgSOvpn5pFYp2IMcnHehUbV_aem_I_4kEelovnRdR6MyxJ1WBA Quando o Mundo desliga: A calma que os livros nos oferecem.

Raízes Invisíveis

Publicação: Chiado Books.   A primeira coisa que um bebé faz, com consciência, é entregar-se. Ao peito da mãe, ao calor que a envolve, ao leite que acalma. À suavidade da tua voz, que abraça os medos. É em ti que repousa o primeiro sorriso, o primeiro suspiro tranquilo. Lembro-me, mãe, da tua mão firme sobre a minha, quando o medo me envolvia como uma noite sem fim. Lembro-me do teu olhar que dizia "estás segura", quando o mundo parecia abismo e a dúvida se insinuava. Os perigos disfarçados, os obstáculos e sombras. As experiências, boas ou más, ensinam-nos a hesitar. De ti, mãe, comecei a duvidar, não por tua falta, mas por que o mundo me tornava vulnerável à dor. Quem perde a confiança, vive no escuro. O temor cresce, como erva daninha. Aos poucos, silenciosa, entranha-se no peito, tomando forma, entupindo os sentidos. Lembrei-me de ti, nos silêncios que partilhávamos, no toque que diz mais que as palavras. Ao voltar a abrir-me para ti e para o mundo, a...

A terra que respira

A terra cede sob os pés, branda, aberta, como se nunca tivesse sido pisada. O vento estende as mãos invisíveis, puxa o olhar para o horizonte rasgado, onde nada existe ainda, mas tudo espera. Os passos surgem antes do corpo, desenhando um traço onde não havia forma. Cada pedra que rola ao lado é um grão de tempo deslocado, um aviso de que ir é também deixar. Os dedos tocam os troncos brutos, as cicatrizes vivas das árvores antigas, onde a seiva ainda corre sob a casca dura. Há uma voz sem som na madeira, Que sussurra o nome de quem veio antes. O céu pesa sobre os ombros, não como um fardo, mas como um chamado. A poeira sobe dos passos e dissolve-se, sem pressa, sem regresso, sem promessa. Cada gesto abre um corte no silêncio, cada decisão finca raízes na incerteza. Mas a marcha não se detém, porque a ausência de caminho é apenas uma espera por pegadas. No fim, quando o olhar se volta, não há vazio, nem dúvidas, nem sombras. Só a lin...