Avançar para o conteúdo principal

A Voz e o Sal

O velho Manuel subiu a encosta de Alfama com o xaile da mulher dobrado sobre o braço. O cheiro do mar, mesmo distante, colava-se-lhe à pele como sal antigo. Os telhados coravam com a luz morna do entardecer, e das janelas escapavam murmúrios, panela ao lume, guitarra a afinar, silêncios a mastigar saudade.
Na taberna da esquina, sentou-se à sombra. Pediu um copo de vinho e pousou o xaile no banco vazio. Era sempre o mesmo. Ali, Beatriz sentara-se pela última vez antes do cancro lhe apagar a voz.
"Se algum dia a saudade for maior que o corpo, dá este xaile a quem a cante por mim", dissera, com o olhar virado ao Tejo.
O homem da guitarra assentiu-lhe com uma mirada breve. Entre fados, há silêncios que se reconhecem.
A rapariga entrou como quem procura algo que perdeu sem saber. Trazia nos olhos uma ausência antiga. Sentou-se, respirou fundo e cantou.
> "Ai mar, que me levaste,
Ai, vento, que não voltaste..."
O tempo estacou. E com ele, o coração de Manuel.
Voltou a ver a nau de velas tensas, a partida para a Guiné, o pai no cais a dizer:
"Portugal é mar antes de ser chão."
Voltou a sentir o calor húmido das selvas, o chumbo nos ossos, a carta de Beatriz a chegar atrasada — "não partas mais..." — E ele a partir outra vez, sem saber se era homem, soldado, ou só a saudade disfarçada de corpo.
O fado subia agora como névoa.
> "Trago na alma um navio,
Que nunca encontrou cais..."
Manuel olhou o xaile. Tocou-o como quem toca um mapa antigo. Viu Beatriz pendurar roupa ao sol, o xaile a esvoaçar no varal, o seu riso entre duas modas desafinadas. Viu-a mais viva que nunca, mas já feita de passado.
Ergueu-se.
Aproximou-se da jovem. A voz dela tinha o mesmo tremor que a voz do mundo quando começa ou acaba.
Pousou-lhe o xaile nos braços. Ela olhou-o sem palavras.
— Era dela. Agora é teu. Canta por quem ficou à espera e por quem nunca voltou inteiro.
Lá fora, o Tejo respirava devagar. Lisboa dormia com um ouvido no passado. Manuel desceu a rua sem pressa, como quem regressa ao mar.
No último degrau, parou. Sentiu no peito não o peso, mas o vazio. E nesse vácuo, uma certeza: ele era um daqueles. Dos que nunca regressam completamente. Mas agora, ao menos, alguém cantava o resto por ele.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Portugal no Guiness com a maior bandeira humana...

PORTUGUESE FEMALE POWER On 20 May 2006 we had the pleasure of spending 48 hours in Portugal adjudicating an attempt on the Guinness World Record for the Largest Human National Flag. The record to beat was set in Scotland earlier this year when 13,254 fans formed the Saltire, the Scottish national flag, at a Scotland v France Six-Nations game at Murrayfield Rugby Club. Held at Lisbon's national stadium, the event was organized by a company called Realizar who had plenty of experience having organized seven other successful Guinness World Records attempts. These include the Largest Hockey Stick, a staggering 56 ft 7 in ( 17.25 m) long, the Largest Human Logo made up of 34,000 people (part of Portugal's successful bid to host the Euro 2004 soccer championships) and the Largest Football with a whopping diameter of 19 ft 10 in (6.06 m)! But the focus this time was once again on mass participation. The record attempt was part of a larger celebration organized by Banco Espirito Santo,...