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Mensagens

A mostrar mensagens de setembro, 2025

O Prazo entre as Estantes

O tempo não se apaga: repousa. Entre corredores silenciosos, erguem-se estantes como colunas de um templo invisível, guardando séculos de vozes sussurradas em papel. Cada livro é uma raiz de folhas, mas também uma janela, aberta para horizontes que o olhar ainda não alcançou. Aqui, a palavra não é apenas lida: é sentida no cheiro das páginas antigas, perfume da memória que atravessa gerações. Os passos ecoam suaves no soalho, como se cada visitante fosse também parte da história. É o lugar onde o estudante encontra respostas, o idoso reencontra lembranças e o curioso descobre mundos que nunca pisou. Não há pressa dentro destas portas. As horas curvam-se como arcos de pedra, lembrando-nos que o saber floresce na paciência. A biblioteca é refúgio contra o ruído do mundo, espaço de continuidade, onde o humano se reconhece como fragmento de um tempo vasto e herdeiro de um saber que não lhe pertence só a ele. Em Braga, quem por ela passa, leva consigo não apenas palavras, mas o murmúrio...

O Conto do Treze

Era noite de lua minguante, e o silêncio cobria a aldeia como véu pesado. As casas dormiam, mas tu, guiada pelo teu número secreto, caminhavas até a velha ponte de pedra. Passo a passo, contava-os em silêncio. O décimo terceiro era o selo. Não doze, não quatorze. Sempre o treze. Quando o último eco ressoou sobre a ponte, o mundo suspendeu-se. O rio deixou de correr, o vento parou, até os grilos calaram. A noite prendeu a respiração. Foi então que a presença se anunciou, não com passos, mas com a ausência. O ar gelou e um cheiro de ferro húmido, como sangue ou metal esquecido na chuva, subiu da pedra. Antes de a veres, já a sentias, a certeza de algo à tua espera desde sempre. Sentada no parapeito, surgiu a figura: olhos fundos, corpo desenhado mais de sombra do que de carne. — Chegaste, finalmente — disse, com voz que arranhava.. — Não tens medo do número que todos rejeitam? Ergueste o queixo. — Não. O treze é meu. O que eles chamam azar, eu chamo de caminho. A figura sorriu e nesse so...

Chegada

 O último comboio chegou ao cais deserto como um suspiro metálico, arfando vapor pelas gretas enferrujadas. As lâmpadas, embaciadas de pó, vacilavam, e cada clarão parecia denunciar algo que se movia nas sombras. Marta esperava, a mala pequena pendida da mão. Apertava a pega até os dedos lhe doerem. O peso parecia excessivo para tão pouca roupa; por vezes, jurava senti-la oscilar, como se tivesse vida própria. O bilhete no bolso trazia uma única palavra impressa: Chegada . O apito ecoou. Um frio húmido subiu-lhe pelas pernas. As portas da carruagem abriram-se num estertor de ferro. Dentro, bancos gastos, riscados por unhas invisíveis. Silêncio. Cheiro a terra molhada. Sentou-se. As janelas mostravam campos alagados onde presenças imóveis acompanhavam o comboio com olhos que não existiam. Casas sem portas, torres tortas contra um céu sem estrelas. Em cada paragem, o monstro de ferro libertava vapor e sombras subiam a bordo — contornos de fumo, imóveis, todos voltados para ela. ...

Sentir o sonho

 Publicação: Revista Ofélia  A casa dormia de olhos fechados. O soalho guardava o frio dos passos. As paredes, húmidas de murmúrios, respiravam o sal das histórias caladas. Lá fora, o mundo estendia-se imóvel, um campo aberto à espera do tempo. As espigas curvavam-se sem vento, como se escutassem um segredo antigo. Uma silhueta avançava devagar, feita de neblina e retorno. Não era sombra nem carne, mas o eco de algo por nascer. Nos braços, trazia o corpo do sonho, ainda quente, ainda a tremer, como um pássaro indeciso entre o voo e a petrificação. O chão reconhecia-lhe o peso, a memória de passos por vir. Mas o sonho começava a fixar-se e no contorno, ardia a dúvida. Seria milagre ou perda? Se se tornasse real, perder-se-ia a chama. A casa estremeceu no soalho. Veio um cheiro a laranja e terra molhada. As janelas abriram-se devagar, como pulmões a reaprender o ar. No rosto da silhueta, um traço de luz o breve milagre entre o antes e o depois....