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Mensagens

A mostrar mensagens de novembro, 2024

Sinfonia Silenciosa

Nos ecos profundos que o silêncio acalma, numa nota vibrante, clara e inteira, um gesto e uma escolha, na nossa palma, compõem na pauta a melodia verdadeira.   O som das decisões, suave ou feroz, flutua no ar como sopro ou grito, vibra em cada riso e ténue voz, no compasso onde o destino é escrito.   Há quem toque em harmonia plena, com acordes de bondade e luz pura, Há quem perca na alma pequena, as dissonâncias que a sombra murmura.   A decisão, um acorde profundo, cada erro, um defeito a ecoar, no final, revelamos ao mundo as notas que ousamos deixar.   A vida, partitura sem maestro, com vibrações que o peito compreende, a moralidade, no seu ritmo e gesto, entre o caos e o sentido se estende.   Um concerto aberto, íntimo e constante, um compasso que vibra sem cessar, é a sinfonia em tom hesitante, nos laços que ousamos moldar.   Nos espaços entre notas e silêncios, onde a alma se desnuda e con...

Dezanove Anos

Hoje não é um dia de tristeza, embora tenha começado com um nó na garganta. São dezanove anos desde que o meu Pai partiu. De ausência que, pouco a pouco, se transformaram numa presença diferente. Não uma presença física, mas algo mais profundo. Ele representa um pouco, nos meus gestos, nos nossos risos, nas histórias que conto. Coloquei flores no meu coração, como sempre faço. Ele dizia que os pequenos gestos tinham poder e agora entendo por quê.  Era assim que ele era, uma força constante, até quando as coisas não iam bem. Ainda encontro muitas pessoas que se lembram dele. “O teu pai… era um homem como poucos. Sempre dizia que a vida era para ser partilhada e fazia isso como ninguém. Principalmente com a família e com as pessoas que amava.” Aquelas palavras aqueceram-me. Mesmo depois de tanto tempo, havia quem ainda o recordava com carinho. Senti reconhecimento, por ele e pelas memórias que não deixam que a sua essência se perca. Mais tarde, reunimos em família para um ...

Pais das Maravilhas

Vou escrevendo um conto e a medida que for dizendo Stop muda de letra do alfabeto: ABCDE. A-Atirei o pau ao gato, mas ele não se mexeu. Apenas fixava no queijo em cima da mesa, com os olhos a brilhar de desejo. Passava a língua pelos lábios, com vontade de atacar o dito cujo sem perder tempo. Mas, hesitou. Olhou de relance para o lado e viu o presunto. Queijo ou presunto? Parecia ponderar como um ladrão indeciso, planeando o próximo roubo. Os seus olhos arregalados brilhavam de gula, e um fio de baba já lhe escorria pelo canto da boca. B-Borboleta cheia de cores voava inquieta, procurando onde fazer o seu casulo, preparando-se para, curiosamente, transformar-se... em lagarta. Talvez seja aquela lagarta do País das Maravilhas que fumava como um Lorde ou Lady.  A menina loira de olhos azuis e vestido branco e azul surgiu correndo, perseguindo um coelho branco de relógio na mão. Ela caiu num poço profundo e aterrou num estranho labirinto com muitas portas e uma sala gigantesca...

Um Vendaval de Problemas

Ontem foi uma tarde perfeita à beira do rio no Montijo, com boa companhia e um céu limpo. Hoje? Um completo desastre. Era uma daquelas manhãs em que parecia que o universo tinha acordado de mau-humor e decidido que eu seria o alvo. Nada me corria bem. Tentava limpar as folhas da entrada, mas o vento parecia ter outros planos. Cada varrida minha transformava-se numa piada para a tempestade, que insistia em devolver as folhas à porta com uma precisão quase provocadora. — Estou a varrer ou a dançar salsa? — resmunguei, enquanto o monte de folhas ignorava-me triunfantemente. Foi nesse momento que Dona Domingas apareceu. A vizinha, envolta num chapéu de chuva extravagante, parecia ter saído diretamente de um filme de época. — Não sabia que tinha talento para aeróbica na chuva! — gritou ela, entre gargalhadas. Nem tive tempo de responder. Uma folha rebelde decidiu colar-se à minha testa, como se quisesse marcar território. Para completar o ‘show’, Ginger, o meu gato alaranjado e com a pose d...

Amarrar o burro

Luz das letras 1.    A céu aberto: ao ar livre 2.    Abandonar o barco: desistir de uma situação difícil 3.    Abotoar o paletó: morrer 4.    Abrir mão de alguma coisa: renunciar alguma coisa 5.    Abrir o coração: desabafar, declarar-se sinceramente 6.    Abrir o jogo: denunciar ou revelar detalhes 7.    Abrir os olhos a alguém: alertar ou convencer alguém de alguma coisa 8.    Acabar em pizza: quando uma situação não resolvida acaba encerrada (especialmente em casos de corrupção, quando ninguém é punido) 9.    Acertar na lata: acertar com precisão, adivinhar de primeira 10. Acertar na mosca: acertar com precisão, adivinhar de primeira 11. Adoçar a boca: conseguir um favor de alguém com elogios 12. Agarrar com unhas e dentes: agir de forma extrema para não perder algo ou alguém 13. Agora é que são elas: momento em que começa a dificuldade 14. Água que...

Domingo Alegre

No mínimo, duas vezes por ano, celebramos o tradicional "Domingo Alegre," uma tradição de Moçambique. É um encontro entre várias famílias e amigos, misturando idades, as origens e as cores, numa convivência recheada de boas comidas, de conversas longas e de jogos: sueca, matraquilhos, Carrom e brincadeiras de crianças. Era sempre um dia muito especial, cheio de energia e de recordações. Este ano, a Tia Rita marcou um almoço antecipado de Natal para um domingo. “Não podemos mudar de dia!”, decretou ela, prática e inflexível, nada normal. Com cerca de 26 pessoas confirmadas, escolhemos um restaurante espaçoso, ideal para as nossas festas prolongadas, cheias de risadas, histórias e boa disposição. O grande dia chegou. “Está marcado para as 12h, não se atrasem!”, avisou a tia Rita. Como de costume, os primeiros a chegar acomodaram-se no recinto da entrada, abrigadas do vento frio. Entrei logo depois, cumprimentando as tias, as primas e as amigas, até que uma vo...

Rato e Rei!

  O raio do rápido rato roeu, raivoso, a rolha redonda da garrafa de rum do Roberto, o rei rigoroso da Rússia. Roubou as rosas raras, rasgou as rendas reluzentes e raptou três roscas recheadas sem deixar rastos. O rei, revoltado, resmungou: "Ratos rabugentos roubaram as riquezas do meu reino resplandecente! Reúnam rapidamente os reforços, recuperem o que restou e reduzam os ratos a meras recordações!" Reis, rainhas e rústicos reagiram, rumores rodopiavam pelos recantos: "Ratos raros, reais rivais, reinavam no reino roubado!" Enquanto isso, o rato regozijava, rindo em ruas recônditas, rolando sobre relíquias roubadas, rodeado de riquezas e rosquinhas recheadas. No horizonte, a revolução rugia e o rei, rígido, retomava o reino: "Rendição ou rebelião?" O rato, rápido e resoluto, respondeu com riso: "Reinar é uma arte e roubar é o meu ritual." O rei Roberto, resoluto, reuniu os seus reforços com um rugido retumbante. Os soldados, com reluzentes armad...

Enumeração

Parto amanhã rumo ao Santiago de Compostela, onde as melhores aventuras acontecem. LEVO:  Uma bússola pequena para encontrar caminhos secretos ( para orientação); Um mapa real para descobrir estradas escondidas (me diz onde estou e para onde vou); Duas botas impermeáveis para alguns terrenos imprevisíveis (uma em cada pé); Duas cordas resistentes para atravessar abismos inclinados (um para descer, outro para subir); Três livros antigos para desvendar enigmas ocultos (um que conta, outro que nega e outro confirma); Quatro lanternas luminosas para noites mais escuras (para cada ponto cardeal); Cinco frascos mágicos para curar ferimentos estranhos (mazelas com olhos, nariz, ouvidos, coração e pés); Seis amuletos protectores para espantar criaturas ferozes (para seis bichos); Sete lápis encantados para enviar mensagens necessárias (as cores do arco-íris).

Sozinho sem saida

De noite, o silêncio no hospital era quase absoluto, interrompido pelo som fraco das máquinas que pulsavam ritmadamente, como as batidas de um coração distante. João, de pele pálida, estava sozinho, no fim de um corredor vazio e mal iluminado. Os médicos e enfermeiros tinham desaparecido, e cada tentativa de gritar era abafada pela dor crescente na sua garganta. Do quarto vizinho, ouviam-se sons. Levou um instante até perceber que se moviam em círculos, num ritmo irregular. Um aperto tomou o peito de João ao entender que não eram passos humanos. Ouvia-se um arrastar lento e denso, como algo viscoso a mover-se. Ele fechou os olhos, mas a porta rangeu-se e um cheiro forte a mofo e decomposição invadiu o ar. Algo estava ali, à espreita, invisível e intensamente presente, e enquanto o horror se aproximava, sentiu que o seu próprio fim estava perto. #desafiofdt2024 #terroremportugal #laritacaramela A pedido pela continuação:  A figura que se imergiu na penumbra era alta, esquelética, en...

O Mosaico do Jardim da Estrela

No Jardim da Estrela, o tempo parecia andar muito devagar. As crianças de vários, tamanhos, cores e defeitos corriam atrás de bolas coloridas enquanto os idosos, sob a sombra das árvores, disputavam partidas de dominó com a paciência de quem sabe aproveitar a vida. Mas o que tornava aquele espaço verdadeiramente especial não era a tranquilidade nem os risos infantis, mas como a diversidade se entrelaçava em cada canto, como os ramos de uma árvore que crescem por todos os lados, mas pertencem ao mesmo tronco. A Clara, uma menina cega de olhos curiosos, tornara-se a guia sensorial de Sofia, que usava uma cadeira de rodas e adorava explorar o mundo com os sentidos que podia usar. Naquele dia, Clara segurava uma flor entre os dedos delicados e dizia com convicção: “Esta é lavanda. Cheira como se o mundo parasse por um segundo, não achas?” Sofia aspirava profundamente e respondia com um sorriso: “Sim, mas não é só o cheiro. Ouve como o vento parece dançar entre os ramos. É como uma música...

S.Martinho (castanhas fritas)

 

Radar Humano

Ninguém sabia muito bem por quê. Talvez fosse uma questão genética, ou porque a natureza decidiu ser criativa naquele dia. Desde sempre, Rita viveu sem orelhas e curiosamente, nunca se importou. Na verdade, ela até achava engraçado e fazia piadas sobre isso com naturalidade. "A falta das orelhas é minha superpotência", costumava dizer. Sempre com um sorriso na cara, como se tivesse descoberto um segredo do universo. Enquanto as crianças perguntavam onde haviam ido parar as orelhas, Rita se divertia, a observar as tentativas engraçadas dos seus amigos, de adivinhar o motivo. "Será que ela foi feita por alienígenas? Ou será que foi a um salão de beleza onde tiraram as orelhas para dar aquele acabamento especial?", brincavam.  Ela ria tanto dessas suposições que chegava a ter um acesso de gargalhadas incontroláveis. “Quem sabe? Só sei que não tenho que me preocupar com a falta de protetor auricular num dia de ventania!”, dizia. Dando uma risada contagiante que ...

Carro, chuva, dia e médios!

 Em carros automáticos, com luz do dia, os médios, não se acedem. Pessoas, Mulheres, acedem os médios.  Sejam vistos!

Deseducando com as Mãos

   As mãos da mãe Júlia, marcadas pelo tempo e pelas responsabilidades, eram firmes, mas guardavam uma suavidade intrínseca, aquela que somente o amor incondicional consegue preservar. Elas seguravam um frágil barco de papel com uma precisão cuidadosa, consciente de que, apesar da sua leveza, carregava os sonhos preciosos. Cada movimento era impregnado de ternura, como se soubesse que aquele pequeno objeto era mais do que papel: era a chave para um mundo que ela mesma ajudava a criar. As mãos do filho João, pequenas, inquietas e cheias de uma energia vibrante, tocavam no barco com uma ansiedade de quem está a desvendar os mistérios do universo pela primeira vez. O toque infantil, desajeitado, mas cheio de vida, dava forma a novas aventuras a cada instante. Os seus dedos percorriam as dobras do papel como se explorassem um mapa desconhecido, em cada linha era um caminho a seguir, um destino a conquistar. Entre as mãos da mãe e do filho, o barco de papel transformava-se. D...