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Mensagens

A Voz e o Sal

O velho Manuel subiu a encosta de Alfama com o xaile da mulher dobrado sobre o braço. O cheiro do mar, mesmo distante, colava-se-lhe à pele como sal antigo. Os telhados coravam com a luz morna do entardecer, e das janelas escapavam murmúrios, panela ao lume, guitarra a afinar, silêncios a mastigar saudade. Na taberna da esquina, sentou-se à sombra. Pediu um copo de vinho e pousou o xaile no banco vazio. Era sempre o mesmo. Ali, Beatriz sentara-se pela última vez antes do cancro lhe apagar a voz. "Se algum dia a saudade for maior que o corpo, dá este xaile a quem a cante por mim", dissera, com o olhar virado ao Tejo. O homem da guitarra assentiu-lhe com uma mirada breve. Entre fados, há silêncios que se reconhecem. A rapariga entrou como quem procura algo que perdeu sem saber. Trazia nos olhos uma ausência antiga. Sentou-se, respirou fundo e cantou. > "Ai mar, que me levaste, Ai, vento, que não voltaste..." O tempo estacou. E com ele, o coração de Manu...

Obrigada a mim

  O sol nascia no quarto creme. A luz filtrava-se pelas persianas, desenhando sombras no chão. O ar cheirava a desinfetante e silêncio. O lençol, áspero contra a pele marcada, colava-se à carne como se quisesse lembrar onde doía. E eu, presa entre tubos e cicatrizes frescas, olhava o tecto como quem olha um céu escuro. O silêncio era denso. Só quebrado pelo bip das máquinas, esse compasso metálico da sobrevivência. Ali, o tempo não era tempo. Era espera. Era dor com nome e hora marcada. Não me lembro da última vez que respirei sem dor. O meu corpo era um campo de batalha. A pele, trincheira. Os músculos, soldados exaustos. E as cicatrizes… As cicatrizes eram fronteiras. Terreno conquistado. Cada linha na carne contava o avanço de uma ofensiva vencida a custo. Uma emboscada superada. Um regresso possível.  Lutei. Sozinha. Mas não como nos filmes. Sem música. Sem frases de efeito. Lutei em silêncio. Com o maxilar cerrado. Com a raiva sussurrada para dentro. C...

A Última Face

No dia em que Clara se esqueceu do rosto, o espelho da entrada estilhaçou-se sozinho. O sol nascente iluminava a casa antiga, revelando o pó a dançar no ar como espectros silenciosos. Ela desceu as escadas lentamente, os pés descalços tocando a madeira fria, mas não sentia nada. Estendeu a mão para o espelho, onde costumava ver o sorriso treinado, a simetria artificial que tanto praticara. Agora, só vidro partido como se o reflexo tivesse tentado fugir. Na vila, evitavam-na. Sussurravam quando passava, como se o silêncio tivesse peso e forma. O padre benzia-se três vezes ao vê-la. As crianças choravam. E Clara, que outrora vivera do olhar dos outros, vestia lenços escuros e mantinha a cabeça baixa, tentando prender o que quer que restasse de si. Certa noite, guiada por um pressentimento húmido e denso, desceu à cave. As paredes transpiravam memória. No fundo, uma caixa de madeira — não se lembrava de a ter guardado ali. Dentro, máscaras de vidro, todas com feições diferentes. Reconh...

Descalçar o Pensamento

Publicação: Revista Ofélia.   No alpendre gasto de madeira antiga, ela pousou os sapatos sem palavra. O chão sentiu o peso do abandono e devolveu-lhe o frio da memória. A casa ouviu o gesto sem ruído, como quem quebra um pacto sem remorso. Os quadros nas paredes tremularam com a leveza das coisas que se foram. Caminhou nua do tornozelo à mente, deixando para trás o ruído das ideias. No coração cresceu uma clareira onde os sentidos ardiam sem juízo. Na cozinha, o relógio estava mudo. No seu lugar, batia um outro tempo. Os pensamentos, descalços, tropeçavam nos cantos mais antigos da infância. Ali, o pai chamava da figueira. Ali, a mãe bordava no fim do dia. E o mundo era um lugar sem argumento, feito apenas de cheiros, toques e gestos. Sentou-se junto à luz, perto da porta. Não quis partir, mas também não ficou. No rosto havia a sombra do que viu, nos pés, o peso leve do que soube. E quando a tarde cedeu à promessa, ergueu-se com a coragem dos simples....

Herança de papel e tinta

Publicação: Clube dos Writers, Redes Sociais. A chuva miudinha tamborilava contra a janela do pequeno estúdio. O vento sussurrava entre as frestas da porta, emitindo um leve gemido fantasmagórico. O ar tinha um cheiro familiar , uma mistura de papel envelhecido, tinta seca e um leve resquício do perfume do pai, impregnado nos móveis e na poltrona onde ele sempre se sentara. Clara passou a mão sobre a mesa de desenho do pai, agora coberta de pó e de silêncio. Fora ali que ele passara tantas noites, dobrado sobre as pranchas, criando mundos de tinta e papel. E agora, restava um vazio. Foi então que viu o livro. Uma pilha de folhas , d esenhos a lápis, alguns traços definitivos a tinta, mas muitos balões vazios, sem palavras. Uma história suspensa. Com mãos hesitantes, folheou as páginas. A forma como o pai, esboçava emoções nos rostos e o jeito cuidadoso de sombrear. Algo a intrigava , a s personagens pareciam-lhe familia res.   Na primeira página, um ...

O que ninguém sabe

O poço no fundo do quintal nunca secava, mesmo nos verões em que os rios sumiam sob a poeira. A avó dizia que era abençoado. O pai murmurava o contrário, mas só quando achava que ninguém ouvia. Numa noite de Agosto, quando o calor roía os ossos e a electricidade faltava, ela acordou com um som húmido, arrastado, vindo lá de baixo. Foi até à janela. O balde subia devagar, como se soubesse o caminho de cor, puxado por uma força que não vinha da terra. No topo, repousava algo que não devia ter nome — um amontoado de carne escura, pulsante, como um coração lembrado só pelos mortos. De dentro, escapava um sussurro baixo, molhado, como se o objecto respirasse. De manhã, tudo parecia intacto. A mãe varria o alpendre com indiferença. O cão, encolhido sob a mesa, rosnava para o poço. Durante dias, observou em silêncio. Sempre à mesma hora, três e onze da madrugada, o balde descia e subia. E cada vez trazia mais: dentes soltos, cabelos embaraçados, uma mão de criança a mexer os dedos como al...

No dia do apagão

https://reportersombra.com/quando-o-mundo-desliga-a-calma-que-os-livros-nos-oferecem/?fbclid=IwY2xjawKRPRdleHRuA2FlbQIxMQABHvonMdsmQDM1hB1SmH6IHQ9Xf6n8aFUd7oy7xRgSOvpn5pFYp2IMcnHehUbV_aem_I_4kEelovnRdR6MyxJ1WBA Quando o Mundo desliga: A calma que os livros nos oferecem.

Raízes Invisíveis

Publicação: Chiado Books.   A primeira coisa que um bebé faz, com consciência, é entregar-se. Ao peito da mãe, ao calor que a envolve, ao leite que acalma. À suavidade da tua voz, que abraça os medos. É em ti que repousa o primeiro sorriso, o primeiro suspiro tranquilo. Lembro-me, mãe, da tua mão firme sobre a minha, quando o medo me envolvia como uma noite sem fim. Lembro-me do teu olhar que dizia "estás segura", quando o mundo parecia abismo e a dúvida se insinuava. Os perigos disfarçados, os obstáculos e sombras. As experiências, boas ou más, ensinam-nos a hesitar. De ti, mãe, comecei a duvidar, não por tua falta, mas por que o mundo me tornava vulnerável à dor. Quem perde a confiança, vive no escuro. O temor cresce, como erva daninha. Aos poucos, silenciosa, entranha-se no peito, tomando forma, entupindo os sentidos. Lembrei-me de ti, nos silêncios que partilhávamos, no toque que diz mais que as palavras. Ao voltar a abrir-me para ti e para o mundo, a...

A terra que respira

A terra cede sob os pés, branda, aberta, como se nunca tivesse sido pisada. O vento estende as mãos invisíveis, puxa o olhar para o horizonte rasgado, onde nada existe ainda, mas tudo espera. Os passos surgem antes do corpo, desenhando um traço onde não havia forma. Cada pedra que rola ao lado é um grão de tempo deslocado, um aviso de que ir é também deixar. Os dedos tocam os troncos brutos, as cicatrizes vivas das árvores antigas, onde a seiva ainda corre sob a casca dura. Há uma voz sem som na madeira, Que sussurra o nome de quem veio antes. O céu pesa sobre os ombros, não como um fardo, mas como um chamado. A poeira sobe dos passos e dissolve-se, sem pressa, sem regresso, sem promessa. Cada gesto abre um corte no silêncio, cada decisão finca raízes na incerteza. Mas a marcha não se detém, porque a ausência de caminho é apenas uma espera por pegadas. No fim, quando o olhar se volta, não há vazio, nem dúvidas, nem sombras. Só a lin...

Herança

O velho solar dos Monteiro, encravado entre nevoeiros e silêncios no vale de Vilar Frio, permaneceu vazio durante décadas. Quando a Clara o herdou, mal conhecia o apelido que agora carregava. Aceitou as chaves sem cerimónia, sem suspeitar que não se herdavam apenas paredes e telhados, mas também o que nelas vive ou morre. Na primeira noite, o ar adensou-se. As tábuas gemiam com o tempo e os espelhos antigos, pareciam respirar. Clara explorava os corredores como se os pés não lhe pertencessem, atraída por uma força que não compreendia. Encontrou, enfim, o sótão. Uma escada íngreme, uma porta que se abriu com um estalido seco e um frio que não vinha de fora. Lá dentro, entre móveis cobertos e retratos de olhos fundos, achou um espelho oval com a moldura entalhada em espinhos. O seu reflexo devolveu-lhe o rosto, mas não os olhos. Neles dançava outra coisa, uma presença faminta. A imagem sorriu-lhe antes de ela fazê-lo. Desde essa noite, Clara já não dormia. Acordava com as ...

O ódio cresce como erva daninha

Temas da semana: Porque rezamos/ O ódio cresce como erva daninha      Sussurros tornaram-se gritos, olhares rasgaram laços. O ódio cresceu, disfarçado entre desconfianças, invadindo corações como erva daninha, sufocando bondade. Quando tentou arrancá-lo, era tarde demais, as raízes profundas deixaram cicatrizes onde outrora floresciam afectos.

Papa Francisco - Oração pela PAZ

"Podes estar defeituoso, ansioso e às vezes irritado, mas lembre-se que a sua vida é o maior negócio do mundo.” Só tu podes impedir que ele decline. Muitos são aqueles que te valorizam, te admiram e te amam. E não sabes, mas tens pessoas para quem és especial Quero que lembres que felicidade não é ter um céu sem tempestades, caminhar sem acidentes, trabalhar sem cansaço e relacionamentos pessoais sem decepções. Ser feliz é encontrar força no perdão, esperança nas batalhas, segurança no medo, amor na discórdia. Ser feliz não é só valorizar o sorriso, é também refletir sobre a tristeza. Não se trata apenas de comemorar o sucesso, mas de aprender as lições do fracasso. Não é só ter alegria com aplausos, mas sim ter alegria no anonimato. Ser feliz é reconhecer que a vida vale a pena viver apesar de todos os desafios, tristezas, desentendimentos e tempos de crise emocional e económica. Ser feliz não é um destino, mas sim uma conquista para quem sabe viajar no seu pr...