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Mensagens

A mostrar mensagens de junho, 2025

O Sopro da Vida

Às vezes, não há mesmo um aviso. As cortinas do tempo se abrem, nuas, sem música, sem prólogo, só o silêncio e as mãos cruas. Em poucos segundos, tudo cai. O chão que parecia tão seguro se esvai em névoa. E o que era o alicerce torna-se apenas rastro, poeira. Vivemos na ilusão do comando, traçando um plano como um cartógrafo, crendo que a vida é linear e previsível, mas é maré e vento errático. Pensamos demais. A mente pesa. O que virá? O que foi? E se fosse...? Levamos as pedras nos bolsos e esquecemos o instante que nos trouxe. Pensa menos e sinta mais. Sinta o calor do sol sobre a face, o silêncio a dançar entre os sentidos, o riso sem razão, leve e fugaz, o arrepio dos tempos já partidos. A vida é curta e bela, E se a olharmos bem, nem é breve é um sopro. Suspiro entre dois vazios. Aproveitar não é correr, é ser. É colher figos antes que estejam frios. Há beleza no estar, simplesmente, viver com atenção, em alma presente, amar sem rede, sem ga...

Mariana e a Flor Azul

Conto, gênero Infanto juvenil: Nome da personagem Mariana/ Animal cavalo/ Objecto flor/ Verbo ajudar/ Espaço mãe/ Para no final transmitir paz as crianças. Mariana vivia com a mãe numa casinha simples, cercada de flores e silêncio. Um dia, encontrou um cavalo branco no quintal. Chamou-o de Jasmim. Ele não falava, mas entendia tudo. Quando a mãe adoeceu, Mariana cuidou dela com carinho. Ajudou a varrer a casa, fez chá e colheu flores. Jasmim a seguia por todo o lado, deixando pétalas pelo chão. Numa manhã, Mariana encontrou uma flor azul, rara como um sonho. Colocou-a ao lado da cama da mãe e a febre passou. A mãe sorriu. Jasmim relinchou. E, no coração da menina, nasceu uma paz tão grande que parecia encher o mundo.

A Teia

A primeira aranha apareceu na manhã em que o velho modem piscou pela última vez. Clara vivia sozinha num rés-do-chão húmido, paredes forradas de livros e silêncios, onde o ruído do mundo chegava filtrado por camadas de poeira e memória. Quando perdeu a ligação à internet, não ligou. Era um alívio. Um silêncio novo. Na semana seguinte, teias surgiram nos cantos dos quartos. Mas não eram teias comuns. Estendiam-se com uma simetria quase matemática, fios prateados que vibravam mesmo sem vento. As aranhas, finas como agulhas, tinham olhos demais. Clara tentava limpá-las. No dia seguinte, estavam de volta. Maiores. Mais densas. Descobriu que os livros estavam colados. Quando forçou um, as páginas estavam preenchidas por símbolos bordados em seda  fórmulas, fragmentos de código, palavras que nunca aprendera. Conectada . Permanece . Ouvida . Na véspera do equinócio, Clara tentou religar o modem. As luzes piscaram uma última vez. Depois, só o zumbido. Um calor estranho percorreu a casa....

E a sorte?? Paira no meu ar?

Sim, a sorte paira no teu ar esta semana, mas não como prémio. Como resposta. Ela não virá aos gritos, nem com clarins celestes. Virá no instante em que escolheres com verdade. No momento em que recusares o que brilha, mas não vibra. Na hora em que fores fiel à tua cadência, lenta, antiga, certeira. A sorte está em ti quando confias no que sabes há muito: que o código limpo é como um poema bem medido, que uma palavra certa vale mais que um milhão de cliques, que o tempo, esse velho artífice, está do teu lado quando não te vendes à pressa. Se precisares de um sinal, ele virá entre quinta e sábado. Não será óbvio, mas será exato. Um encontro, uma frase, um erro que afinal é chave. Repara bem. Não desates logo a interpretá-lo, vive-o. Se te perguntam se tens sorte, podes sorrir devagar e responder: “Tenho. Mas é da que se cultiva com silêncio e escolha certa.” E sim, o ar está cheio dela. Só tens de respirar com intenção.

A Voz e o Sal

O velho Manuel subiu a encosta de Alfama com o xaile da mulher dobrado sobre o braço. O cheiro do mar, mesmo distante, colava-se-lhe à pele como sal antigo. Os telhados coravam com a luz morna do entardecer, e das janelas escapavam murmúrios, panela ao lume, guitarra a afinar, silêncios a mastigar saudade. Na taberna da esquina, sentou-se à sombra. Pediu um copo de vinho e pousou o xaile no banco vazio. Era sempre o mesmo. Ali, Beatriz sentara-se pela última vez antes do cancro lhe apagar a voz. "Se algum dia a saudade for maior que o corpo, dá este xaile a quem a cante por mim", dissera, com o olhar virado ao Tejo. O homem da guitarra assentiu-lhe com uma mirada breve. Entre fados, há silêncios que se reconhecem. A rapariga entrou como quem procura algo que perdeu sem saber. Trazia nos olhos uma ausência antiga. Sentou-se, respirou fundo e cantou. > "Ai mar, que me levaste, Ai, vento, que não voltaste..." O tempo estacou. E com ele, o coração de Manu...

Obrigada a mim

  O sol nascia no quarto creme. A luz filtrava-se pelas persianas, desenhando sombras no chão. O ar cheirava a desinfetante e silêncio. O lençol, áspero contra a pele marcada, colava-se à carne como se quisesse lembrar onde doía. E eu, presa entre tubos e cicatrizes frescas, olhava o tecto como quem olha um céu escuro. O silêncio era denso. Só quebrado pelo bip das máquinas, esse compasso metálico da sobrevivência. Ali, o tempo não era tempo. Era espera. Era dor com nome e hora marcada. Não me lembro da última vez que respirei sem dor. O meu corpo era um campo de batalha. A pele, trincheira. Os músculos, soldados exaustos. E as cicatrizes… As cicatrizes eram fronteiras. Terreno conquistado. Cada linha na carne contava o avanço de uma ofensiva vencida a custo. Uma emboscada superada. Um regresso possível.  Lutei. Sozinha. Mas não como nos filmes. Sem música. Sem frases de efeito. Lutei em silêncio. Com o maxilar cerrado. Com a raiva sussurrada para dentro. C...

A Última Face

No dia em que Clara se esqueceu do rosto, o espelho da entrada estilhaçou-se sozinho. O sol nascente iluminava a casa antiga, revelando o pó a dançar no ar como espectros silenciosos. Ela desceu as escadas lentamente, os pés descalços tocando a madeira fria, mas não sentia nada. Estendeu a mão para o espelho, onde costumava ver o sorriso treinado, a simetria artificial que tanto praticara. Agora, só vidro partido como se o reflexo tivesse tentado fugir. Na vila, evitavam-na. Sussurravam quando passava, como se o silêncio tivesse peso e forma. O padre benzia-se três vezes ao vê-la. As crianças choravam. E Clara, que outrora vivera do olhar dos outros, vestia lenços escuros e mantinha a cabeça baixa, tentando prender o que quer que restasse de si. Certa noite, guiada por um pressentimento húmido e denso, desceu à cave. As paredes transpiravam memória. No fundo, uma caixa de madeira — não se lembrava de a ter guardado ali. Dentro, máscaras de vidro, todas com feições diferentes. Reconh...