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Mensagens

Em Cada Mulher

  Sai hoje na revista digital Vinca Literária. 

O Último Manuscrito

Dinâmicas luz das letras: 300 palavras, meta literatura, de um livro que li Quando Lisboa tremeu de Domingos Amaral: A tinta escorria lenta sobre o papel, enquanto Sebastião traçava palavras febris. A pena tremia nos dedos, mas não pelo esforço. Era Lisboa que estremecia debaixo dos seus pés. O candeeiro balançava. Lá fora, gritos cortavam a noite. Prédios cederam num estrondo de pedra e madeira. A cidade afundava-se em poeira e cinza, mas Sebastião não largava a pena. A história precisava ser escrita. As linhas corriam, desesperadas. O terramoto devorava a cidade, tal como as suas palavras devoravam o tempo. Ele escrevia sobre homens e mulheres que fugiam entre as ruínas, sobre um padre que rezava diante de um altar desabado, sobre uma mulher que, de joelhos, procurava o filho perdido. Mas, à medida que a pena riscava o papel, os ecos da realidade transformavam-se. A mulher encontrava o filho nos escombros, são e salvo. O padre erguia-se entre as chamas, guiando os fiéis para for...

Dois em Um

Mateus acordou com um gosto metálico na boca. O cheiro a ferrugem e suor impregnava-lhe a pele. — Bom dia. — A voz veio de dentro. O coração de Mateus acelerou. — Não outra vez… — Outra vez? — A risada ecoou na sua cabeça. — Meu caro,  nós  somos isto. O espelho ao lado da cama reflectiu um rosto familiar. Mas os olhos não eram seus. O direito brilhava num castanho comum, mas o esquerdo… negro como breu. Um sorriso rasgou-lhe os lábios sem o permitir. — O que fizeste? — Mateus segurou a própria cabeça, os dedos cravando-se na pele. — Salvei-te do tédio. — A voz dentro dele soava satisfeita. A náusea subiu-lhe à garganta. Sentia o corpo pesado, exausto, como se tivesse corrido durante horas. Levantou-se, cambaleante. O cheiro de sangue enchia o ar. Os dedos moveram-se sem permissão, alisando a camisa manchada. — Fica calmo — disse a voz. — Desta vez fui cuidadoso. Mateus tropeçou até à porta. A maçaneta estava pegajosa. O chão, molhado. Um passo, outr...

Noventa Invernos, Noventa Primaveras

  Em homenagem a um primo querido que fez 90 anos com saúde e jovialidade.  Foi lida na véspera, num jantar de poesia no hotel vila galé.

Um jantar há luz das velas com poesia falada, nas paredes...

 

O Dia do Rei - Alcácer do Sal, outono de 1158

O vento quente que soprava do sul trazia o cheiro a especiarias e mar, mas no campo português, o ar sabia apenas a ferro e suor. O acampamento estendia-se como um animal agachado, feito de tendas, lanças e cavalos impacientes. Um crepúsculo tingia o céu de púrpura e ouro, refletindo-se nos elmos e nas cotas de malha dos homens que afiavam espadas e rezavam em voz baixa. Afonso Henriques observava-os em silêncio. Desde a alvorada que sentia aquela inquietação no peito, não de medo, porque o receio era um luxo de homens fracos, mas algo mais profundo, um pressentimento de que aquela noite ficaria gravada na pedra da história. Virou-se para Pedro Pais da Maia, que surgira à entrada da tenda, o rosto endurecido pelo cansaço e pela expectativa. — O que dizem os batedores? Pedro hesitou um instante, depois deu um passo à frente. — Os mouros esperam um cerco longo. Têm mantimentos para meses e reforçaram os portões com ferro. Há patrulhas a cada duas horas e os caldeirões de azeite ...

Silêncio Sangrento

Dinâmicas: Tema: Erro até 100 palavras A faca escorregou-lhe das mãos. O som metálico contra o azulejo rasgou o silêncio. O sangue, quente, espalhava-se pelo chão. João recuou, os olhos presos na ferida aberta no peito de Miguel. Não era suposto. Era apenas uma discussão. Um impulso. Miguel engasgou-se ao tentar falar. A boca tremia, os olhos suplicavam. João caiu de joelhos, pressionando a ferida, mas o sangue fugia-lhe pelos dedos. — Aguenta… por favor… O aperto na mão de João afrouxou e o olhar de Miguel perdeu-se no vazio. O grito ficou preso na garganta e o erro, viveria para sempre.

Asas na noite

O vento deslizava entre as copas das árvores, murmurando segredos indecentes à noite cúmplice. A escuridão envolvia tudo, espessa e convidativa, um véu onde os sentidos eram despertados à flor da pele. Clara avançava pela estrada deserta, com o corpo vibrando dum desejo febril e inquieto. Sentiu primeiro o silêncio. Não uma ausência banal, mas um convite suspenso, uma promessa. Depois, veio o som, um bater de asas profundo, ritmado, como se a própria noite respirasse ao seu redor.  Ela parou, de olhos arregalados e peito arfante. Olhou para cima. Nada, apenas o céu aveludado, escuro. Um arrepio percorreu-lhe a espinha, um choque eléctrico que incendiou cada célula do corpo. Continuou a andar, cada passo mais lento, como se a dança da noite exigisse rendição. O som regressou, mais próximo e íntimo. O bater de asas envolvia-a como um sussurro ao ouvido, um toque sem contacto, uma carícia ardente sem forma. Clara mordeu o lábio, tentando conter o gemido. O ar pulsava ao seu redor, pro...