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Mensagens

A mostrar mensagens de julho, 2025

Quem ateia fogo, que sinta o peso da enxada

 Minha o pinião estruturada com sangue quente. Num país onde as chamas já parecem uma estação do ano, não basta mais contar os hectares ardidos como se fossem apenas estatística. Portugal arde — outra vez — e arde por várias mãos: pelas do descuido, pela seca impiedosa, mas também, e com frequência assustadora, pela mão criminosa de quem risca o fósforo e vira costas . Dados do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas apontam que entre 20% a 35% dos incêndios têm origem intencional . Contudo , são estes que destroem mais — não só território, mas tempo, memórias, e sobretudo, vidas. Em 2023, 84% da área ardida foi resultado direto de fogos postos . O crime, neste caso, não é só fogo: é tragédia multiplicada. E o que acontece a quem é apanhado? A resposta oficial é: cadeia. Três a dez anos, podendo ir além se houver agravantes. Mas na prática, há uma sensação de impunidade difusa . Muitos processos não vão além da investigação; os que chegam a tribunal são, por vezes,...

O Cavalo de Sal e a Flor Azul

Publicação: Clube dos Writers, Redes Sociais. Mariana acordou antes de Sol nascer. O vento sacudia as persianas do quarto e o rugir das ondas chegava-lhe como um bater de tambores antigos. Levantou-se devagar, sentindo o soalho frio nos pés. Espreitou pela janela e viu o oceano estender-se até ao horizonte, com véus brancos de espuma a dançar à superfície. Uma inquietação apertava-lhe o peito. Desde pequena, as águas fascinavam-na e assustavam-na em partes iguais. Gostava de as ouvir, de ver as vagas enrolarem-se e rebentarem, mas temia a sua imensidão, aonde se escondem segredos difíceis para uma criança entender. Nessa madrugada, porém, tudo parecia diferente. O oceano respirava mais depressa e o vento trazia um cheiro a sal e mistério. Sem dizer nada a ninguém, vestiu o casaco, calçou as botas e saiu para a praia. A areia fria e húmida, colava-se às solas como lama. O céu clareava num azul desm aiado, mas a superfície líquida mantinha-s...

Um, dois, três... Macaquinho do Chinês!

A tarde vinha morna, quase triste, daquelas em que até os cortinados parecem suspirar. Os ombros de Larita traziam o peso de reuniões vazias e filas sem destino. Com um suspiro, deixou cair a mala no chão. — Hoje... vamos jogar. Loira, cadela de alma dourada, cheirando a sol e chão quente, ergueu-se num salto que sacudiu almofadas, memórias e pó. Ginger, o gato laranja, nem pestanejou. Cookie, loiro e teatral, desapareceu como um ator sem fala. — Um... dois... três... macaquinho do chinês! Virou-se. Loira estacada, mas o chocalho da coleira ainda sussurrava no ar. — Estás fora... — sorriu Larita, como quem reaprende a brincar. O soalho rangia, os móveis respiravam. A luz tingia o chão de laranja derretida. O ar sabia a almofadas gastas e tardes cheias de vago. Nova ronda. — Um... dois... três... macaquinho do chinês! Cookie avançava como sombra em missão. Ginger desaparecera do tapete. Do relógio, um tilintar seco. Lá fora, uma buzina esquecida. — Um... dois... três... macaq...

O que ninguém sabe

  No coração da cidade antiga, onde as pedras sussurram histórias esquecidas, morava um homem chamado Elias. Conhecido pela sua bondade desmedida, oferecia tudo o que tinha, comida, abrigo, até o próprio tempo, aos que batiam à sua porta. A casa, uma relíquia coberta de heras, era um farol para os perdidos, um oásis de luz num mundo cansado. Mas a bondade, pensava Elias, tinha um preço. Cada acto de generosidade drenava algo invisível, uma ausência que crescia em silêncio dentro dele. As tábuas antigas rangeram, num suspiro que parecia conter uma paciência sombria. As heras mexiam-se, deslizando pelas paredes como dedos ávidos, à espera que Elias cedesse ao que se abrira na sua alma. Numa noite enluarada, um estranho apareceu, com olhos de abismo e voz que parecia vir de outro tempo. Entregou-lhe um presente, uma caixa pequena, ornada com símbolos que dançavam nas sombras. Na caixa, a inscrição borrada lia-se com esforço: “Só abre, quando já não fores inteiro.” “O Espelho do Va...

O mal das coisas boas

No coração da cidade antiga, onde as pedras sussurram histórias esquecidas, morava um homem chamado Elias. Conhecido pela sua bondade desmedida, oferecia tudo o que tinha — comida, abrigo, até o próprio tempo — aos que batiam à sua porta. A casa, uma relíquia coberta de heras, era um farol para os perdidos, um oásis de luz num mundo cansado. Mas a bondade, pensava Elias, tinha um preço. Cada acto de generosidade drenava algo invisível, uma ausência que crescia em silêncio dentro dele. As tábuas antigas rangeram, num suspiro que parecia conter uma paciência sombria. As heras mexiam-se, deslizando pelas paredes como dedos ávidos, à espera que Elias cedesse ao que se abrira na sua alma. Numa noite enluarada, um estranho apareceu, com olhos de abismo e voz que parecia vir de outro tempo. Entregou-lhe um presente — uma caixa pequena, ornada com símbolos que dançavam nas sombras. Na caixa, a inscrição borrada lia-se com esforço: “Só abre, quando já não fores inteiro.” “O Espelho do Vazio”,...

Códigos Silenciosos

O nevoeiro sobre Nova Orbis não era apenas bruma, era um suspiro constante, uma respiração pesada que se entranhava em cada pedra, como se a cidade viva respirasse sob o jugo do Sistema Prime. Uma cortina densa, permanente, céu e terra deixavam de ser distinguíveis. O ar adensava-se com a opressão, esmagando pulmões, afogando pensamentos. O Sistema Prime não só via tudo, também sentia. Era uma fera invisível que se alimentava do medo e da obediência. Cada palavra registada, cada pensamento moldado, cada sonho espionado por algoritmos. Diziam que os fios mortos ainda sussurravam o nome dela, a que ousou desafiar o Sistema. Naquela manhã, o terminal piscou: «Eles sabem que estás a tentar sair.» O meu coração falhou um compasso. Ninguém sabia. Nem Elias. Levei o polegar ao pulso. Gesto herdado do meu pai. Ele fazia-o no escuro, como quem confirmava que ainda existia. Nunca deixes que vejam o teu medo. Sentir não denuncia. Mostrar, sim. Durante meses, colecionei fragmentos proibi...