Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

A mostrar mensagens de maio, 2025

Descalçar o Pensamento

Publicação: Revista Ofélia.   No alpendre gasto de madeira antiga, ela pousou os sapatos sem palavra. O chão sentiu o peso do abandono e devolveu-lhe o frio da memória. A casa ouviu o gesto sem ruído, como quem quebra um pacto sem remorso. Os quadros nas paredes tremularam com a leveza das coisas que se foram. Caminhou nua do tornozelo à mente, deixando para trás o ruído das ideias. No coração cresceu uma clareira onde os sentidos ardiam sem juízo. Na cozinha, o relógio estava mudo. No seu lugar, batia um outro tempo. Os pensamentos, descalços, tropeçavam nos cantos mais antigos da infância. Ali, o pai chamava da figueira. Ali, a mãe bordava no fim do dia. E o mundo era um lugar sem argumento, feito apenas de cheiros, toques e gestos. Sentou-se junto à luz, perto da porta. Não quis partir, mas também não ficou. No rosto havia a sombra do que viu, nos pés, o peso leve do que soube. E quando a tarde cedeu à promessa, ergueu-se com a coragem dos simples....

Herança de papel e tinta

Publicação: Clube dos Writers, Redes Sociais. A chuva miudinha tamborilava contra a janela do pequeno estúdio. O vento sussurrava entre as frestas da porta, emitindo um leve gemido fantasmagórico. O ar tinha um cheiro familiar , uma mistura de papel envelhecido, tinta seca e um leve resquício do perfume do pai, impregnado nos móveis e na poltrona onde ele sempre se sentara. Clara passou a mão sobre a mesa de desenho do pai, agora coberta de pó e de silêncio. Fora ali que ele passara tantas noites, dobrado sobre as pranchas, criando mundos de tinta e papel. E agora, restava um vazio. Foi então que viu o livro. Uma pilha de folhas , d esenhos a lápis, alguns traços definitivos a tinta, mas muitos balões vazios, sem palavras. Uma história suspensa. Com mãos hesitantes, folheou as páginas. A forma como o pai, esboçava emoções nos rostos e o jeito cuidadoso de sombrear. Algo a intrigava , a s personagens pareciam-lhe familia res.   Na primeira página, um ...

O que ninguém sabe

O poço no fundo do quintal nunca secava, mesmo nos verões em que os rios sumiam sob a poeira. A avó dizia que era abençoado. O pai murmurava o contrário, mas só quando achava que ninguém ouvia. Numa noite de Agosto, quando o calor roía os ossos e a electricidade faltava, ela acordou com um som húmido, arrastado, vindo lá de baixo. Foi até à janela. O balde subia devagar, como se soubesse o caminho de cor, puxado por uma força que não vinha da terra. No topo, repousava algo que não devia ter nome — um amontoado de carne escura, pulsante, como um coração lembrado só pelos mortos. De dentro, escapava um sussurro baixo, molhado, como se o objecto respirasse. De manhã, tudo parecia intacto. A mãe varria o alpendre com indiferença. O cão, encolhido sob a mesa, rosnava para o poço. Durante dias, observou em silêncio. Sempre à mesma hora, três e onze da madrugada, o balde descia e subia. E cada vez trazia mais: dentes soltos, cabelos embaraçados, uma mão de criança a mexer os dedos como al...

No dia do apagão

https://reportersombra.com/quando-o-mundo-desliga-a-calma-que-os-livros-nos-oferecem/?fbclid=IwY2xjawKRPRdleHRuA2FlbQIxMQABHvonMdsmQDM1hB1SmH6IHQ9Xf6n8aFUd7oy7xRgSOvpn5pFYp2IMcnHehUbV_aem_I_4kEelovnRdR6MyxJ1WBA Quando o Mundo desliga: A calma que os livros nos oferecem.

Raízes Invisíveis

Publicação: Chiado Books.   A primeira coisa que um bebé faz, com consciência, é entregar-se. Ao peito da mãe, ao calor que a envolve, ao leite que acalma. À suavidade da tua voz, que abraça os medos. É em ti que repousa o primeiro sorriso, o primeiro suspiro tranquilo. Lembro-me, mãe, da tua mão firme sobre a minha, quando o medo me envolvia como uma noite sem fim. Lembro-me do teu olhar que dizia "estás segura", quando o mundo parecia abismo e a dúvida se insinuava. Os perigos disfarçados, os obstáculos e sombras. As experiências, boas ou más, ensinam-nos a hesitar. De ti, mãe, comecei a duvidar, não por tua falta, mas por que o mundo me tornava vulnerável à dor. Quem perde a confiança, vive no escuro. O temor cresce, como erva daninha. Aos poucos, silenciosa, entranha-se no peito, tomando forma, entupindo os sentidos. Lembrei-me de ti, nos silêncios que partilhávamos, no toque que diz mais que as palavras. Ao voltar a abrir-me para ti e para o mundo, a...

A terra que respira

A terra cede sob os pés, branda, aberta, como se nunca tivesse sido pisada. O vento estende as mãos invisíveis, puxa o olhar para o horizonte rasgado, onde nada existe ainda, mas tudo espera. Os passos surgem antes do corpo, desenhando um traço onde não havia forma. Cada pedra que rola ao lado é um grão de tempo deslocado, um aviso de que ir é também deixar. Os dedos tocam os troncos brutos, as cicatrizes vivas das árvores antigas, onde a seiva ainda corre sob a casca dura. Há uma voz sem som na madeira, Que sussurra o nome de quem veio antes. O céu pesa sobre os ombros, não como um fardo, mas como um chamado. A poeira sobe dos passos e dissolve-se, sem pressa, sem regresso, sem promessa. Cada gesto abre um corte no silêncio, cada decisão finca raízes na incerteza. Mas a marcha não se detém, porque a ausência de caminho é apenas uma espera por pegadas. No fim, quando o olhar se volta, não há vazio, nem dúvidas, nem sombras. Só a lin...