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Mensagens

A mostrar mensagens de dezembro, 2024

A viagem mórbida

O relógio da estação marcava exactamente vinte e três horas quando o último comboio partiu, rasgando a quietude da noite. A locomotiva deslizava pelos trilhos como um predador silencioso e o som compassado do motor era a única companhia da escuridão. Lara, envolta num casaco que pouco fazia contra o frio, ajustou-se no assento. O veludo, outrora rico e convidativo, estava agora desgastado e áspero ao toque, refletindo anos de abandono. O vagão permanecia vazio. A ausência de outros passageiros criava um silêncio quase palpável, apenas interrompido pelo ritmo hipnótico dos trilhos. Lá fora, o mundo parecia ter sido engolido por uma noite eterna. A paisagem era um abismo escuro, sem qualquer sinal de vida ou luz. Nenhuma aldeia distante, nem estrelas ou lua para quebrar o vazio. Ela observou o cenário, sentindo um desconforto que crescia à medida que os quilómetros passavam. “É como viajar por um sonho quebrado”, pensou, tentando afastar a sensação de estranheza. O comboio avançava e o e...

Reflexões de um Ano Bissexto

Este ano pareceu passar mais rápido que os outros, como se os dias extras de um ano bissexto tivessem sido roubados pelo tempo. Foi um período especialmente desafiador. Completar os cinquenta anos trouxe não apenas a marca inevitável do tempo, mas também uma clareza inquietante sobre tudo o que está errado à minha volta, as dores inexplicáveis que carregamos e os conflitos que surgem do nada, pesando sobre nós como tempestades inesperadas. Vejo as famílias desfeitas pela soberba e por julgamentos implacáveis, onde a cobardia se sobrepõe ao perdão, mesmo entre aqueles que deveriam saber mais pela experiência de vida. Percebi que muitos conflitos desnecessários persistem, alimentados pelo silêncio e pela ausência das palavras certas nos momentos cruciais. Ainda assim, acredito no poder transformador do perdão. Como diz o provérbio: "O perdão não muda o passado, mas enriquece o futuro." Outro pensamento que me acompanhou foi: "A cobardia veste-se de descul...

Natal em Família

Quatorze à mesa, um laço de união, Entre risos, memórias e recordação. Crianças brincando, canções a soar, No frio lá fora, calor a vibrar. Pratos servidos com gosto e cuidado, Sabores que unem, carinho ao lado. Troca-se afeto, dá-se a essência, Recebe-se paz, cultiva-se a presença. No olhar de um filho, no abraço apertado, A magia do Natal é amor partilhado. Convívio sincero, sem pressa ou razão, A alegria nos sorrisos é a maior emoção. Enquanto a lareira o ambiente aquece, O frio lá fora apenas esquece. Aqui, a família é sempre o central, E mais evidente se torna no Natal.

Pensar ao contrário

 

Espírito de Natal

Com alicate, ajeito a decoração, No pinheiro brilham luzes de emoção. Esponja de banho? Presente encantado, Entre risadas, todos bem animados. Um clip segura cartões de carinho, Desejos sinceros no nosso caminho. A pá recolhe os brilhantes do chão, E o alho-francês perfuma o caldeirão. Contos e cantorias rompem o silêncio, A noite é festiva, amor tão intenso. O espírito natalício aquece e floresce, E a união da família jamais esmorece.

Um sábado bem-passado

A manhã começou serena, com um passeio tranquilo ao lado da minha cadela Loira, junto ao riacho. Um café e uma conversa leve, cheia de palavras soltas que dançavam no ar, com o meu companheiro. Perto do meio-dia, peguei no carro e segui devagar a caminho do sarau da minha sobrinha mais nova, acompanhada pela mais velha. O sábado em Miraflores estava movimentado, com muitos carros estacionados em cima do passeio. Fiz o mesmo. Sentámo-nos nos bancos de cimento, que desta vez, estavam cobertos com resguardos, afastando o frio. O tempo passou num instante, entre as entradas de grupos, das crianças aos mais velhos, muitas palmas, vídeos e brincadeiras. Quando tudo terminou, as meninas foram almoçar e preparar para a tarde. E caminhei até ao carro. Ao ver os papéis presos nos vidros dos outros carros, percebi, que já tinha uma multa. Bah! Fiz uma pausa numa bomba de gasolina, onde tinha uma área de serviço e aproveitei para comprar uma sandes, um sumo e um café. Depois, segui cam...

Divisões

No silêncio da casa vazia, Sofia observava as rachaduras nas paredes, as linhas que pareciam se multiplicar a cada dia. Antes, eram quase invisíveis, um detalhe menor na paisagem do lar, mas agora cortavam o reboco em trajetos sinuosos e profundos, como cicatrizes que a casa se recusava a esconder. O técnico garantira: “é um assentamento normal.” Sofia tentara acreditar, mas algo naqueles traços irregulares a fazia sentir-se observada. À noite, os sons aumentavam. Pequenos estalos ecoavam pela madeira e pelas paredes, formando um compasso que a inquietava. Todas as madrugadas, às 3h13, o relógio da sala parava, como se o tempo obedecesse a um ritual sinistro. Os objetos surgiam deslocados. Os livros invertidos, os quadros tortos, um vaso quebrado que ela não se lembrava de ter tocado. E havia os sussurros. Baixos, indistintos, mas inegáveis, pareciam sair de dentro das paredes. Naquela noite, os estalos vieram mais fortes. Sofia, já acostumada, pensou em ignorá-los, mas o som tornou-se...

HISTÓRIA DAS RABANADAS

Pão Velho, Povo Sábio  O que é uma rabanada? Não, a sério, vamos lá desmontar isto como deve ser.  A rabanada é um monumento gastronómico ao génio humano, ou, mais concretamente, ao génio português.  Enquanto o restito do mundo olha para pão duro e pensa: "Lixo..." O português olha para o mesmo pedaço de pão e diz: "Huummm... que bela sobremesa." Isto diz muito sobre o valente e imortal povo lusitano.  Somos um povo que transforma dificuldades em iguarias, o que não é surpreendente se considerarmos que também transformamos bacalhau seco em mil e uma receitas, numa verdadeira religião dedicada à gastronomia, e chamamos “sopa” a uma mistura de água, couves e meia batata. Ora, as rabanadas nasceram, como tudo o que é bom em Portugal, da necessidade acutilante em sobreviver e ser feliz com o que a vida nos dá.  Antigamente, nas nossas maravilhosas aldeias, pão era coisa séria. Fazia-se em grandes quantidades, porque ir ao forno comunitário dava muito trabalho. ...

Dinamica Dezembro

Auguste Rodin foi um escultor francês do século XIX que revolucionou a escultura moderna. Para além das reconhecidas modulações das superfícies, de inspiração impressionista, também desenvolveu a escultura parcelar, ou seja, que não era a figura humana na totalidade ou o tradicional busto. "A mão de Deus"é um desses fantásticos objetos pétreos. Também na literatura o discurso pode ser modelado a partir de uma parcela corporal, como as mãos, a mão solitária, quase sem sujeito. DESAFIO: - TEMA: a mão; - TAREFA: escrever uma breve ficção apenas narrando uma mão; - O sujeito da mão não pode ser descrito física ou psiquicamente; - Uma mão tem 5 dedos, 5x9=45, 45+9=56; 56+5+6= 67; Usar 67 palavras exatas; - O narrador é na primeira pessoa (eu), pode ser a mão ou o sujeito da mão, e fala com um destinatário que trata na segunda pessoa (tu); - DESAFIO: não pode usar nenhuma letra T; Eu deslizo por superfícies enrugadas, os dedos dobrados e linhas marcadas de jornadas. Na minha presen...

Intimidade

Na penumbra do quarto, Clara sentiu as mãos de Marco deslizando sobre a sua pele. O calor do toque era real demais para um sonho, mas uma sensação de frio pesado instalava-se no seu peito. A cada carícia parecia trazer uma lembrança, mas também um peso que ela não sabia nomear. Lentamente, abriu os olhos. Marco não estava ali. O espelho em frente reflectia o quarto vazio, excepto uma sombra alongada atrás dela. Virou-se bruscamente, mas encontrou apenas o silêncio opressivo. Um cheiro de terra molhada invadiu o ar, denso e férreo, trazendo as memórias que Clara há muito tentava enterrar. Marco estava morto havia um ano. O acidente, tão repentino quanto brutal, ainda a atormentava. Mas agora, o toque persistia, quente, familiar e, ao mesmo tempo, aterrador. A porta rangeu, fechando-se devagar e uma brisa gelada fez os cabelos de Clara erguerem-se. Uma voz sussurrou o seu nome, grave e distorcida, como se ecoasse do fundo de um poço. Era o timbre de Marco, mas algo nele soava muito errad...

Postais Mortíferos

A trama de Postais Mortíferos acompanha o Detetive Jacob Kanon em sua incansável busca pelos assassinos de sua filha. No início, a narrativa leva o público a acreditar que há apenas um assassino em série à solta. No entanto, à medida que a investigação avança, descobrimos que não se trata de um único assassino, mas de um par de serial killers. Sylvia e Mac Randolph, que inicialmente se apresentam como um casal, são na verdade irmãos, com um passado sombrio e uma obsessão doentia por arte. Sylvia e Mac, sob identidades falsas, viajam pela Europa, assassinando casais que conhecem ao longo do caminho. Inspirados por sua formação em história da arte, eles recriam obras de arte famosas utilizando os corpos de suas vítimas. Essas recriações macabras são enviadas em forma de postais, deixando um rastro de horror por onde passam. A trama se intensifica quando Jacob finalmente desvenda a verdadeira identidade dos assassinos: Simon Jr. e Marina Haysmith. eles são irmãos adotivos que ...

Ronrons e mimos!

Vou escrevendo um conto e a medida que for dizendo Stop muda de letra do alfabeto: FHGI.   F- Foram momentos pensativos. Tiro meio-dia de férias, há que pensar na saúde dos que nos querem bem. Fui para casa da minha mãe, abri a janela, para entrar o sol, fraquinho, mas que ainda tinha força para aquecer. E o cheiro das flores... H- Há momentos em que tudo o que desejamos é aliviar o peso das dores alheias. Quando vemos alguém a sofrer, uma vontade urgente nos invade, arrancar-lhes os sorrisos, oferecer conforto e distrair das aflições, mesmo que por breves instantes. Tentamos contar anedotas, improvisar uma atmosfera leve e carregar o ambiente com um bom humor quase forçado, mas genuíno no afeto. Hoje, o consolo veio pela cozinha. Preparei uma canja simples, mas feita com cuidado, uma galinha desfiada sem ossos, nadando em caldo quente com massa de cotovelos, aquele tipo que parece abraçar o paladar. Para o prato principal, um bife grelhado, não perfeito, mas honesto, tão firme qua...

O Espelho Proibido

  No mundo de Kaelar, os espelhos eram mais do que objetos banidos, eram portais para o inexplicável. As lendas sussurravam sobre os reflexos que não refletiam, mas simulavam, os habitantes de um reino invertido, à espera de uma fraqueza, de um momento para se cruzarem. Ninguém ousava desafiar a proibição, exceto Teryn, um aprendiz de alquimista, o qual a curiosidade era tão afiada quanto perigosa. Num mercado clandestino, encontrou um pequeno espelho de moldura corroída pelo tempo. Entre as moedas trocadas e os olhares furtivos, sentiu o peso do objeto nas suas mãos, como se algo ali o observasse. Ignorou o arrepio. “Medo irracional,” pensou. No seu quarto, à luz trémula de uma vela, Teryn ergueu o espelho. A princípio, viu-se como sempre, uns olhos verdes atentos e pele pálida. Mas, algo rompeu a normalidade. O reflexo piscou. Ele, não. Teryn estremeceu. Largou o espelho, mas a imagem não desapareceu. Pelo contrário, sorriu. Um sorriso largo, desafinado e expondo os dentes afiado...