Avançar para o conteúdo principal

Divisões

No silêncio da casa vazia, Sofia observava as rachaduras nas paredes, as linhas que pareciam se multiplicar a cada dia. Antes, eram quase invisíveis, um detalhe menor na paisagem do lar, mas agora cortavam o reboco em trajetos sinuosos e profundos, como cicatrizes que a casa se recusava a esconder.
O técnico garantira: “é um assentamento normal.” Sofia tentara acreditar, mas algo naqueles traços irregulares a fazia sentir-se observada. À noite, os sons aumentavam. Pequenos estalos ecoavam pela madeira e pelas paredes, formando um compasso que a inquietava. Todas as madrugadas, às 3h13, o relógio da sala parava, como se o tempo obedecesse a um ritual sinistro. Os objetos surgiam deslocados. Os livros invertidos, os quadros tortos, um vaso quebrado que ela não se lembrava de ter tocado. E havia os sussurros. Baixos, indistintos, mas inegáveis, pareciam sair de dentro das paredes. Naquela noite, os estalos vieram mais fortes. Sofia, já acostumada, pensou em ignorá-los, mas o som tornou-se um estrondo avassalador que fez o chão tremer. Correu para a sala e parou, aterrorizada, ao ver as rachaduras se alargando diante dos seus olhos. Elas não só cortavam a parede como a rasgavam. Em segundos, um vazio negro pulsante tomou o lugar do reboco. Sofia tentou gritar, mas a sua voz falhou. Um frio gelado percorreu o ambiente e uma sombra emergiu do vazio, movendo-se como um líquido denso. Paralisada, ouviu a fantasma sussurrar, com uma voz que parecia vir de dentro da sua própria mente: “Estás dividida como esta casa. Escolhe.” Sofia sabia do que se tratava. A dor das decisões adiadas, das escolhas que jamais teve coragem de fazer, materializava-se ali. Mas quando tentou responder, percebeu que já era tarde. A sombra avançou, envolvendo-a num abraço opressivo. Enquanto o vazio a consumia, os estalos cessaram. As rachaduras começaram a desaparecer, fechando-se como feridas que finalmente cicatrizavam. A casa silenciou e o relógio voltou a marcar o tempo. Para quem passava por ali, era apenas mais uma casa antiga, mas Sofia nunca mais foi vista, exceto por um vulto no reflexo das janelas à noite.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Mãe de 8 gémeos divide americanos...

Tinha tudo para ser uma história feliz, mas está a dividir a América. O parto de oito gémeos, todos vivos, gera ódios à medida que são conhecidos pormenores da vida da mãe dos bebés, já com seis filhos, divorciada e desempregada. Várias ameaças de morte obrigaram Nadya Suleman - a mulher que deu à luz os oito bebés, no final de Janeiro - a esconder-se em "parte incerta", segundo o seu porta-voz. Nadya terá levado consigo os seis filhos, com idades entre dois e sete anos, enquanto os recém-nascidos continuam internados no hospital, onde deverão permanecer nos próximos meses. A mulher e a empresa de comunicação por ela contratada terão sido alvo de uma série de ameaças, através de chamadas telefónicas e mensagens de e-mail, de acordo com o porta-voz, Michael Furtney, citado pela Reuters. São cada vez mais ferozes as críticas contra Nadya, de 33 anos, que apesar de desempregada e divorciada, decidiu fazer um tratamento para a infertilidade, numa altura em que já não tinha condiç...