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O Engraxador da Alma Perdida

Na Praça da Figueira, a madeira gasta da caixa de engraxador ressoava como um tambor antigo sob os meus pés. O homem, curvado pelo tempo e pelo ofício, ergueu os olhos cor de ferrugem e disse, enquanto polia com vigor a pele do meu sapato:

— Sabes, rapaz... eu uma vez vendi a alma por um seguro.

Sorri, julga com troça. Mas continuou, com a solenidade de um padre em confissão.

— Não era de vida, nem de saúde. Era um seguro contra o esquecimento. Apareceu-me um tipo de fato de linho claro, com olhos lisos como ecrãs e um sorriso sem calor, como se falasse em ‘slogans’. Disse-me que nunca iria cair no abismo do anonimato, que o meu nome ecoaria mesmo após eu desaparecer.

A escova deslizava como uma dança silenciosa sobre o couro.

— Assinei com a pressa de quem foge da sombra. Ao início, fui sol. Cada olhar lançava-me luz. O engraxador da Praça, o que contava histórias, o que sabia segredos de ministros e mendigos. Mas a cada palavra repetida, a cada riso ensaiado, eu encolhia. Um dia, percebi, que já não falava, era falado. Já não vivia, era eco.

Os sapatos brilhavam como espelhos. Ele olhou-os brilhantes, mas não sorriu.

— Agora só engraxo os que já não escutam. Os que correm. Talvez esses saibam o segredo, que há descanso no esquecimento. E eu, preso neste contrato com o ruído, continuo a existir… mas já não estou cá.

Levantei-me. A praça parecia mais fria. Por um momento, enquanto passava o pano pela biqueira, senti um arrepio.

E se um dia alguém me oferecer um contrato desses?

Atrás de mim, o homem voltou a olhar para o vazio, onde um dia estivera a sua alma.

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