O Diario de Noticias entrevista EDGAR VALLES
Leonídio Paulo Ferreira
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Almoço com Edgar Valles
Entramos e ouve-se música. "É a Lura", diz-me uma empregada, cabo-verdiana como a cantora que surge no ecrã gigante e que lá permanecerá as quase duas horas que o almoço com Edgar Valles durou. O presidente da Casa de Goa só tinha vindo aqui uma vez, mas gostou do ambiente e também da comida diversificada, quase tanto como as antigas colónias portuguesas que inspiram quem está na cozinha. Confesso-lhe que estranhei o nome Café de La Musique. Edgar, é assim que o trato e assim escreverei, não sabe porquê, mas promete logo indagar. Carlos Vasconcelos, o dono, chega, cumprimenta-nos e oferece a explicação: "Porque sou músico e porque vivi na Bélgica." Ora toma.
O Café de La Musique fica perto da antiga Feira Popular de Lisboa. E, de facto, só depois de se passar a porta do restaurante se começa a perceber que estamos em território da lusofonia, apesar do nome francês. Há cartazes afixados com os músicos que hão de vir tocar nos próximos dias. "À noite a música é ao vivo", diz-me Edgar, já depois de sentados à mesa. O mote da conversa vai ser Goa, essa parcela da Índia tão especial na história de Portugal, mas também havemos de falar um pouco de Angola, que foi onde nasceu o meu convidado. Aliás, foi um prato angolano que ambos escolhemos, uma muamba de galinha que Edgar me propõe dividir "porque as doses são grandes". Para entrada, "um caldo-verde", pede ele, e eu alinho. A sopa é agradável, mesmo que, quando me a põem à frente, me pareça mais um creme de legumes.
Comecemos então pela apresentação do homem que desde 2014 preside à Casa de Goa, sucedendo a um outro goês famoso, o antigo deputado Narana Coissoró, um hindu democrata-cristão. Edgar Francisco Valles (e já perceberão porque ponho aqui o Francisco), por seu lado, é o típico português católico com raízes goesas, filho de um funcionário público que trabalhou em várias partes do império colonial porque queria abrir horizontes. "Nasci em 1953, no Bié, na então Silva Porto", conta o mais novo de três filhos do engenheiro agrónomo também chamado Edgar Valles, natural de Pangim, capital de Goa, e de Lúcia, senhora também goesa, mas de Vasco da Gama.
"O meu pai formou-se na Universidade de Pune, na Índia, e depois é que veio um ano para Lisboa para tirar a equivalência. O meu avô recusou-se a pagar-lhe os estudos em Portugal porque tinha receio de que ele voltasse casado com uma europeia. Queria que o casamento fosse com uma goesa", conta Edgar. "Era assim que costumava ser, por tradição, mas se ele tivesse casado com uma europeia, alguém de Lisboa, também acabaria por ser aceite na família", acrescenta. O próprio Edgar Francisco, o da conversa, acabou por casar com uma europeia, Ana Simões, mãe dos seus dois filhos, que conheceu quando veio para Lisboa.
Nascido e criado em Angola, passou a adolescência em Luanda, onde o pai acabaria colocado, depois de ter trabalhado em várias cidades ("por isso os meus irmãos nasceram em Cabinda"). Vivia-se a guerra, com o MPLA, a UNITA e a FNLA a combaterem o exército português, com vistas à independência da maior das colónias africanas. "Para mim, a guerra ficava longe. Não a sentíamos", diz. Em 1970 troca Luanda por Lisboa, para estudar na Faculdade de Direito.
Chega a muamba, servida num tachinho que deixam na mesa. Como acompanhamento, funje, que é feito de farinha de mandioca. Casa tudo muito bem, o prato de galinha com o funje, mas Edgar pede piripiri. Depois, tira uma colher pequenina e coloca-a na borda do prato. Pergunto porque não a mistura. "Não sei a força do picante. Assim, aos poucos, não me arrisco a estragar", responde com a sensatez de quem já passou dos 60 anos e viu muito.
Voltamos ao tema Angola, ideal enquanto despachamos a muamba, e fico a saber que regressou uma primeira vez em 1973, para o casamento do irmão Edgar Ademar. Depois da independência, voltou em 1976 para dar aulas. Era cidadão português mas pediu para ser militante do MPLA. Não foi aceite porque havia uma nova regra, explica, que vetava a militância a quem pertencia a partidos estrangeiros e Edgar era do PCP, tendo integrado a UEC, a União dos Estudantes Comunistas. No Natal veio a Lisboa e a mulher não quis que regressasse. "Ela teve o pressentimento de que ia haver um banho de sangue em Angola", relembra Edgar. Foi no maio seguinte, num choque entre os partidários do presidente Agostinho Neto e uma ala liderada por Nito Alves. Os irmãos, ambos com protagonismo no MPLA, acabaram mortos. Ela chamava-se Sita Valles e o bebé que tinha (com o marido José, também morto) foi entregue aos cuidados de uma tia que vivia em Portugal, Francisca van Dunem, atual ministra da Justiça. "O meu sobrinho João Ernesto, a quem chamamos Che, dá hoje aulas de Economia em Angola."
Edgar fala com naturalidade desse episódio dramático na história da família. Só se sente mais sensível quando lhe pedem fotografias. "Aí é diferente", diz, "começamos a relembrar-nos das pessoas".
Nisto de restaurante lusófono, vinhos portugueses fazem todo o sentido. Pedimos tinto, um alentejano, Marquês de Borba. Mas a garrafa é das grandes e ambos concordamos em substituir antes o vinho por duas imperiais. E de Angola passamos para o tema Goa, terra dos antepassados, mas também uma terra que teve de redescobrir.
"Creio que aquilo que se passou em Angola me afetou tanto que fiz uma espécie de transferência de afeto para Goa", reflete, enquanto me reforça a dose de galinha que já tenho no prato, enche também o seu, e pega com delicadeza na colherzinha de piripiri e deita-a na muamba. "Está muito bom. Já da outra vez tinha ficado muito satisfeito com a comida", comenta.
Conversamos sobre Goa, que digo já ter visitado e ter ficado impressionado com tantas igrejas no meio da vegetação tropical e com os nomes portugueses por todo o lado, desde as tabuletas das lojas aos obituários nos jornais. "Hoje já pouca gente fala português. Só os mais velhos. E a indianização é muito forte. Vou lá muitas vezes, pois tenho propriedades que sou obrigado a administrar", diz. Tem ainda primos no território que foi o estado da Índia, peça-chave do império português no Oriente e bastião do catolicismo na Ásia.
"Goa foi um caso muito especial na história de Portugal. Os portugueses não trataram os goeses como colonizados mas como iguais. Logo no século XVI houve as conversões, com as famílias a ficarem com o nome do padre ou de algum nobre", conta, sobre um território conquistado em 1511 por Afonso de Albuquerque e que só em 1961 deixou de ser português, quando a Índia se cansou da resistência de Salazar e anexou pela força a colónia portuguesa, que na época talvez tivesse 50% de católicos, gente chamada Mascarenhas, Noronha, Fernandes ... ou Valles.
O direito de propriedade foi, porém, respeitado pela Índia e mesmo quem optou pela nacionalidade portuguesa manteve casas e terras. Por isso Edgar vai lá umas três vezes por ano para cuidar do que é seu e que um dia será dos dois filhos, Edgar Luís (outro Edgar!) e Francisco. O primeiro é vereador da Cultura em Odivelas, o segundo é capitão da Força Aérea. "Também já tenho três netos, dois rapazes e uma rapariga", acrescenta Edgar. E conta-me que foi a primeira vez a Goa com 3 anos, "para ser mostrado aos meus avós". Não terá grande memória dessa visita, que acabaria por ser a única à Goa ainda portuguesa.
Edgar pede à empregada se é possível baixar um pouco o volume da música, para ser mais fácil a conversa. Ao resto da clientela a voz quente de Lura não parece incomodar. Bem, a nós também não, até porque, ao segundo pedido sem resposta, desistimos e falamos como dá. Chega, isso sim, a ementa com as sobremesas. Edgar queixa-se da diabetes e pede papaia, eu escolho uma especialidade cabo--verdiana - doce de papaia com queijo de cabra.
Edgar convida-me para assim que acabarem as obras no restaurante da Casa de Goa, perto do Palácio das Necessidades, lá ir experimentar a comida. Sei que é uma mistura de influências portuguesas e indianas, como o próprio estado, hoje o mais rico da Índia e também, de certa forma, o mais liberal. "Nas praias do resto da Índia as mulheres entram na água vestidas com os saris, mas em Goa usam fato de banho. Dos tradicionais, mas fato de banho", sublinha o presidente da Casa de Goa. A instituição conta com 600 sócios e está aberta mesmo a quem não tem raízes na Índia mas que se interesse pela cultura goesa, explica-me este advogado, com vária obra jurídica publicada (e também alguns livros antigos mais políticos), que chegou a ser jornalista no semanário Extra, em que estiveram nomes que mais tarde eu próprio vim a conhecer no DN, como José David Lopes e Mário Ventura. Também José Saramago, que tinha sido diretor adjunto do DN, fazia parte da equipa, composta sobretudo por gente saneada do jornal nos tempos complicados do pós-25 de Abril. Foi nessa altura, que coincidiu com a morte dos irmãos, que Edgar romperia com o PCP, porque não gostou da forma "como o Avante! tratou do que se passou em Angola".
Acrescenta que em 1993, convidado por João Soares, seu amigo, aderiu ao PS, mas nunca quis cargos. Até hoje é militante de base. Conheceu mais ou menos na mesma época António Costa, pois Ana Simões foi a número dois da candidatura falhada do atual primeiro--ministro à Câmara de Loures. Edgar morava e mora em Odivelas, agora também um concelho.
Por falar em Costa, e enquanto não chegam os cafés, o que pensa Edgar da recente visita do político português filho de um goês à Índia? "Para os indianos, António Costa é um exemplo da sua superioridade intelectual, pois se até um deles consegue ser primeiro-ministro na Europa", comenta. Mas entenda-se como se entender a admiração da Índia pelo nosso primeiro-ministro, "a verdade é que Costa e o primeiro-ministro Narendra Modi se entenderam muito bem e isso é bom para os dois países e, claro, para Goa", acrescenta. "A Índia vai ser uma grande potência económica, está a desenvolver-se rapidamente, e isto sem deixar de ser uma democracia", sublinha Edgar, relembrando que o país tem 1250 milhões de habitantes e uma grande diversidade, mas que mesmo assim "o exército nunca teve de se envolver em política como acontece no Paquistão". E quando pensa em Goa, pensa em como esta, embora pequena, pode ajudar a Índia. "Goa pode dar à Índia o exemplo da tolerância, que no fundo é a matriz do próprio hinduísmo."
Chega a conta. Antes de nos despedirmos, fico a saber que o advogado não deixou totalmente de ser jornalista. "Escrevo sobre Portugal para dois jornais indianos, o The Goan, em inglês, e o Lokmat, que traduz os artigos para a língua marati." Edgar também confessa estar "encantado com a atual embaixadora indiana em Lisboa, Nandini Singla, uma mulher inteligente que está a ajudar muito as relações entre Portugal e a Índia e que compreende o valor da comunidade goesa". Afinal, António Costa pode ser o português com raízes goesas com maior protagonismo, mas a comunidade com origens indianas, não só de Goa mas também do Gujarate, está bem integrada num país que há séculos se habituou a conviver com outras culturas.
No ecrã, ao fundo da sala do Café de La Musique, Lura continua a cantar. Agora é Só Um Cartinha.
Café de La Musique
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