No bairro antigo, de ruas estreitas e fachadas descascadas, Sérgio era apenas o Pintor da Rua das Pombas. Não para vender, mas para manter-se inteiro, sem as telas, sentia-se apenas um vulto à deriva, alguém que caminhava sem deixar pegadas.
Todas as manhãs, antes que o sol atravessasse as cortinas de renda do estúdio, ele acordava com um som que parecia vir de outro século, não o canto dos galos nem o motor dos barcos, mas o uivo distante de uma velha sirene. Não era só um ruído, era grave e lento, que marcava a pulsação de um tempo paralelo, como se chamasse não para o trabalho, mas para o que restava da vida. Ouvia-a como quem recebe um recado discreto: “Ainda há algo a criar, antes que o dia te roube.”
O bairro parecia ouvir com ele. As janelas fechadas estremeciam ligeiramente, as calçadas prendiam o ar e até os gatos ficavam imóveis, como se também esperassem. Havia dias em que o som se perdia no vento e nesses dias as cores do mundo pareciam-lhe mais pálidas, como se alguém tivesse lavado o céu em excesso. Cada esquina tinha histórias suspensas, cada porta parecia guardar lembranças que ninguém mais podia decifrar.
A sala cheirava a terebintina, a poeira e ao silêncio antigo. Telas inacabadas encostavam-se às paredes, como guardiãs de histórias que ele não ousara terminar. No centro, uma mesa de madeira com manchas de tintas como cicatrizes coloridas. Sobre ela, um pequeno xilofone herdado do avô, a única herança de uma infância.
Tocava-o ocasionalmente, sem método, deixando que as notas breves ecoassem pelo quarto como lágrimas que não sabiam cair.
Numa manhã fria, ao abrir a janela, viu no muro em frente uma jovem de vestido branco, desenhando. O lápis corria como se obedecesse a um sopro invisível. Ela ergueu os olhos, olhou-o, sorriu e voltou ao papel, sem pressa. No fim da manhã, desapareceu. No muro, encontrou um retrato a carvão, o seu rosto, mas com um olhar que ele nunca tinha reconhecido em si. No canto, escrito: “Para quem vê.”
Chamava-se Lara. Trabalhava numa livraria, mas pintava aguarelas como quem escreve cartas à luz da madrugada. Disse-lhe que sonhava viver apenas disso. Ele contou-lhe sobre o toque do porto e o modo como ela lhe parecia um relógio sem ponteiros, marcando horas que só os que criavam sabiam ler. Lara riu, revelando que o seu chamado vinha das cores, especialmente do tom carmim, que usava como quem espalha sangue e sol sobre o papel. Para ela, essa cor respirava, sangrava e sarava.
Começaram a trabalhar juntos. Ele no óleo, a buscar densidade, ela na aguarela, caçando transparências. Entre eles, na mesa, havia sempre uma tela que nenhum ousava terminar: uma casa sem portas, um céu com fendas. Argumentam que era “o lugar para onde ainda não tínhamos ido”.
Certa tarde, Lara trouxe um embrulho: um xilofone novo, de madeira clara, para substituir o do avô. Disse que o velho soava como um coração cansado e a música precisava de descanso. Sérgio tocou e o som foi tão puro que sentiu a pele arrepiar.
As exposições improvisadas na rua atraíam turistas e curiosos. Falam que as pinturas de Sérgio ganhavam luz e as aguarelas de Lara haviam sombras novas. Um contaminava o outro e gostavam disso. O bairro parecia sorrir com eles, os degraus não rangiam tanto e até o vento entre as esquinas parecia mais morno.
Mas o inverno chegou, e com ele, a fragilidade. Lara tossia, os dedos tremiam, mas continuava a pintar. Sérgio notava como o vermelho nos trabalhos dela se tornava mais profundo, como se cada pincelada fosse um batimento cardíaco prestes a parar. Até que um dia, ela não veio. Sobre o muro, apenas uma folha pintada, sem contornos, como um grito que se recusa a tomar forma.
Sérgio foi procurá-la na livraria, disseram que regressara à casa dos pais. Mandou cartas que nunca tiveram resposta. Voltou à sala e tentou pintar o rosto dela.
Passou horas e o que surgia na tela era apenas uma sombra difusa, olhos que não se fixavam, lábios que não se formavam. O pincel parecia pesar toneladas. Tentou tocar, mas as notas soavam partidas, como vidro no chão. Cada golpe de martelo na madeira parecia ecoar dentro do seu peito, abrindo fissuras que nem a tinta podia cobrir.
A ausência não foi apenas um silêncio, foi um peso que dobrava os ombros. Os dias tornaram-se mais longos e o bairro mais severo. As janelas pareciam espiá-lo, os becos devolviam-lhe o som dos próprios passos. O velho sinal soava cada vez mais distante, e Sérgio temia que um dia o chamado se calasse para sempre. Cada manhã ele sentava-se à janela, tentando capturar algo que escapava, lembranças fragmentadas que não se deixavam pintar.
Numa manhã, encontrou encostada ao batente uma pequena caixa. Dentro, o instrumento que ela lhe dera, com um lasco na madeira e um bilhete: “A música continua o mesmo quando não estamos. Não pares.” Ele fechou a porta, segurou o instrumento como quem segura um pássaro ferido e sentiu que o estúdio já não o continha. Sentiu o cheiro do inverno, a madeira fria e o eco do chamado que agora vinha do seu próprio coração.
Foi até à tela inacabada. Começou a pintar não as formas, mas sons. Linhas que se entrelaçavam como fios de vento, cores que vibravam como cordas tensas. No canto, muito pequeno, um ponto carmim, como um coração batendo onde já não havia corpo. Trabalhou nela dias seguidos, até perceber que não precisava terminá-la. O inacabado também fala. Cada traço tornava-se palavra, cada cor um suspiro, cada sombra uma lembrança viva.
Os anos correram. O bairro pintou-se de novo, mas manteve as suas sombras. Sérgio envelheceu, mas não voltou a ser o vulto de antes. Agora pintava o som da sirene, que para ele já não vinha do porto, mas de dentro, o som que guardava de todas as notas que nunca tocou diante dela. Alguns visitantes perguntavam o que significava aquele ponto vermelho que surgia em todas as telas. Ele sorria, sem explicar. E quando a melodia cessava, o silêncio parecia pintar também, como quem responde sem palavras, ou talvez, como se esperasse que a vida aprendesse a falar por si.
Dinâmica
de escrita criativa com David Roque, Tema:
ARTE. Número exato de palavras: 1043.
Vocábulos: escolher 3 vocábulos obrigatórios que devem ser usados apenas duas vezes (assinalar no texto; nenhum dos outros vocábulos pode ser usado): sirene, tesoura, toalha, bandalho, espantalho, carmim, rosário, bigorna, trampolim, remendo, ingrato/a, divinal, tubérculo, fogão, lanternim, megafone, xilofone, cristaleira, cicatriz, setenta, tirania.
Palavras proibidas: toda a família de palavra arte (arte, artista, artístico, artesão...) e de segredo (segredo, segredar, secreto…)
Verbos proibidos: dizer, fazer e ter
“Esse texto é um lembrete de que a arte é memória, resistência e afeto. E que mesmo quando tudo parece desabar, há sempre algo a criar, antes que o dia nos roube.”
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