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25 de junho de 2014

eu, ele, a Maria e o Miguel, nós temos tudo

Em abril ele foi despedido.
chegou a casa: abraçou-me. pediu desculpa. disse-me: fui despedido.
disse-lhe que ia correr tudo bem, que iamos arranjar trabalho: ele, eu. eu ia servir às mesas outra vez. a maria e o miguel dormiam a sesta na nossa cama. conseguiamos vê-los: um sono já leve. vi na cara dele o medo de não ter o que lhes dar: um brinquedo novo. gelados na esplanada. uma bolacha. um medicamento. uma sopa. encostado à parede ele chorou enquanto eu lhe limpava as lágrimas. 

ele começou a trabalhar este mês.
foram semanas difíceis: ele a adaptar-se a estar sempre em casa connosco. eu e eles a adaptarmo-nos a estar sempre em casa com ele. às vezes mais nervosos porque os dias passavam. às vezes mais deprimidos porque os dias passavam. às vezes com medo porque os dias não paravam de passar. é mais difícil do que se pensa: lidar com isto foi difícil.
mas passou: ele começou a trabalhar. correu tudo bem. tivemos sorte.
eles não sentiram falta de nada.

estava a pensar em todas estas coisas quando vi um apelo: uma família em dificuldades. o pai desempregado, a mãe, um filho, uma menina como a maria. pediam alimentos. pensei que podiamos ajudar. não acredito em deus: naquele momento apeteceu-me agradecer-lhe este novo trabalho. expliquei à maria o que íamos fazer: iamos comprar comida para uma menina como ela. e ela ajudou-me a colocar as coisas no cesto enquanto dizia: massa para a menina. arroz para a menina. leite para a menina. cereais para a menina. disse-lhe que se ela quisesse também podia dar um brinquedo dela à menina. quando chegámos a casa ela correu para o quarto para o escolher.
sozinha na cozinha passei os alimentos para um saco grande: a massa, o leite, o feijão, o arroz.  lembrei-me que não tinha arroz agulha na minha despensa: tinha carolino, arroz de risotto, basmati, integral. não tinha agulha. guardei um dos 4 pacotes na minha despensa.
a maria apareceu à minha frente com a carolina na mão: queria dá-la à menina. perguntei-lhe se tinha a certeza. se não ia sentir falta dela: era a única boneca que ela tinha com cabelo. ela pediu durante meses um bebé com cabelo. ela disse que tinha a certeza: queria dá-la à menina: meteu-a no saco.
fui espreitar o miguel: dormia aconchegado, enrolado nos meus lençóis que cheiravam a amaciador. estava a ficar melhor da gastroenterite: dei-lhe tudo o que ele precisava nesses dias: medicamentos para as cólicas, peito de frango cozido, papa de arroz, bananas e puré de maçã, torradas com compota. não lhe faltou nada. beijei-o na testa: deixei-o dormir.
fiz uma chávena de café, cortei uma fatia do bolo que fiz naquela semana e sentei-me no sofá de 4 lugares a ver um dos 74 canais que nunca vejo. quando olhei para o lado vi a maria: estava a brincar com a carolina. perguntei-lhe se já não a queria dar. ela respondeu-me que sim, que a queria dar. estava a brincar com ela porque "às vezes vou ter saudades dela e ela vai ter saudades minhas". eu não respondi: sorri: olhei para a televisão.
à minha frente sempre: a maria. para lá e para cá. parou: com as mãos nos meus joelhos disse-me "sabes mãe, a carolina é a única que tem cabelo, mas este bebé tem dentes, este tem chapéu, este tem uma banheira e este fala.": atrás dela alinhados no chão: 4 bonecos. ela tinha um sorriso no rosto enquanto apontava para eles. "vês?"-perguntou. vi. vi: carolino, risotto, basmati, integral.
levantei-me envergonhada. eu não sou uma pessoa egoísta, a sério que não. mas senti-me a maior, a pior das egoístas: senti-me mal. mais pequenina do que ela, que com 3 anos já é tão grande. disse-lhe que sim, que via. disse-lhe que ela tinha razão. chamei-me nomes enquanto tirei o arroz agulha da minha despensa e o coloquei no saco: a carolina já lá estava outra vez.
às vezes digo que os meus filhos me mudam todos os dias, me ensinam coisas: grandes lições.
uma vez uma amiga que ainda não é mãe perguntou-me: a sério? tipo o quê?
tipo isto, "vês?".

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