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8 de janeiro de 2025

Desassossego do alfaiate

Actividade do desassossego 
Até 300 palavras
Palavra no fim e no início: Não 
Frase no meio: "Tem gente que cose para fora eu coso para dentro". Clarice Inspector

Não era possível encontrar sossego naquela sala de costura. Ernesto, o alfaiate mais célebre da vila, vivia num turbilhão de ideias e de stresses. Entre as agulhas, botões e linhas, havia um emaranhado de pensamentos que ele não conseguia desembaraçar. 
Naquela tarde, quando dona Olga entrou com o seu vestido de cetim, Ernesto já estava à beira de um ataque de nervos. 
"Preciso disso para o casamento da minha sobrinha! Mas, por favor, nada extravagante. Só um pequeno ajuste aqui e ali." O que parecia simples para qualquer costureiro comum era para Ernesto um dilema filosófico. 
Ele olhou para o vestido como quem encarava um enigma. "Tem gente que cose para fora, eu coso para dentro", murmurou, enquanto a tesoura tremia na sua mão. Olga franziu a testa. 
"Como assim para dentro, Ernesto?!" 
"É o desassossego, dona Olga! Cada ponto que dou, é como costurar a minha própria ansiedade. Sabe o que é isso? Colocar cada pedacinho da alma numa bainha? É um trabalho perigoso!" 
Olga, sem paciência, revirou os olhos. 
"Só quero um vestido que me sirva!" 
Entre as linhas que se embaraçavam e um Ernesto cada vez mais perdido nas suas reflexões, o vestido começou a ganhar vida, mas não como esperado. A barra estava torta, os ombros assimétricos e um zíper improvisado apoiava como obra de arte moderna. 
"Pronto!", exclamou Ernesto, suado, porém orgulhoso. 
Olga, atónita, vestiu-se.
"Isso é uma piada, Ernesto?! Parece que vesti o desassossego em pessoa!" 
Ele, com ares de um artista incompreendido, rebateu: "Minha senhora, é uma obra de vanguarda!" 
Olga saiu bufando, com o vestido na mão e Ernesto, aliviado, finalmente encontrou um instante de paz. Mas ao olhar para a pilha de encomendas, suspirou: "Não."

5 de janeiro de 2025

Depois da Tempestade

 

Tudo parecia normal naquela manhã, até que o céu começou a escurecer de maneira antinatural. Era como se uma mão invisível apagasse a luz, deixando apenas sombras opressivas. O ar ficou pesado e então a tempestade veio, implacável. 
Uma chuva torrencial desabou com a violência de uma ira ancestral, acompanhada por trovões e relâmpagos tão intensos que faziam vibrar não só as janelas, mas as almas.
Em minutos, as ruas foram curvadas por rios furiosos. Os túneis tornaram-se armadilhas aquáticas, engolindo carros que flutuavam, impotentes. Os gritos misturavam-se ao som do vento, um coro de pânico e desespero. As pessoas lutavam contra a corrente, enquanto outras, encurraladas em telhados, erguiam as mãos num apelo desesperado. A força da água parecia viva, implacável.
Uma árvore centenária foi arrancada do solo como se fosse feita de papel. As telhas, as placas e os destroços eram arremessados pelo ar. 
Dentro de casa, Clara assistia ao caos pela janela, tinha os olhos cheios de medo. A água já começava a infiltrar-se pelo primeiro andar. Os seus filhos, encolhidos ao seu lado, choravam de pavor.
— Vai ficar tudo bem — mentiu Clara, enquanto apertava os pequenos contra si. O coração martelava no seu peito. Cada estalo da madeira, cada ruído do vento pareciam presságios de um fim iminente.
Decorreram-se horas até que a tempestade, finalmente, começou a ceder. A chuva tornou-se um sussurro e o vento perdeu a sua fúria. Um silêncio espectral envolveu a cidade, tão denso que parecia carregar o eco do sofrimento. Clara, com as pernas trémulas, abriu a porta. A lama cobria tudo e o ar cheirava a destruição.
A visão era desoladora, os carros empilhados como brinquedos, as árvores despedaçadas, as casas mutiladas. Mas algo brilhou entre as nuvens despedaçadas. O sol, tímido, surgiu, lançando uma luz cálida sobre um cenário de ruína. Clara fechou os olhos e respirou fundo, sentindo o calor no rosto.
— Vamos recomeçar — disse aos filhos, a voz firme apesar da dor. A tempestade deixara marcas profundas, mas dentro dela, a esperança permanecia inabalável. Entre os escombros, Clara sabia que o verdadeiro poder estava em resistir e reconstruir.

30 de dezembro de 2024

A viagem mórbida

O relógio da estação marcava exactamente vinte e três horas quando o último comboio partiu, rasgando a quietude da noite. A locomotiva deslizava pelos trilhos como um predador silencioso e o som compassado do motor era a única companhia da escuridão. Lara, envolta num casaco que pouco fazia contra o frio, ajustou-se no assento. O veludo, outrora rico e convidativo, estava agora desgastado e áspero ao toque, refletindo anos de abandono.
O vagão permanecia vazio. A ausência de outros passageiros criava um silêncio quase palpável, apenas interrompido pelo ritmo hipnótico dos trilhos. Lá fora, o mundo parecia ter sido engolido por uma noite eterna. A paisagem era um abismo escuro, sem qualquer sinal de vida ou luz. Nenhuma aldeia distante, nem estrelas ou lua para quebrar o vazio. Ela observou o cenário, sentindo um desconforto que crescia à medida que os quilómetros passavam.
“É como viajar por um sonho quebrado”, pensou, tentando afastar a sensação de estranheza.
O comboio avançava e o embalo dos movimentos começava a agir sobre ela. As pálpebras tornaram-se pesadas e o cansaço acumulado finalmente venceu. Por breves momentos, entregou-se a um sono inquieto, embalado pelo som monótono do metal contra o metal.
Foi então que um solavanco forte a arrancou abruptamente da inconsciência. O coração disparou e os olhos abriram-se, confusos. Algo estava errado, acontecia alguma coisa. A locomotiva desacelerava, um pouco fora do normal, considerando que nenhuma estação deveria surgir até ao destino. Espreitando pela janela, os seus olhos fixaram-se numa placa enferrujada que emergia do escuro como um fantasma. As letras desbotadas formavam uma mensagem simples, mas carregada de um presságio terrível: “FIM DA LINHA”.
Um arrepio percorreu-lhe o corpo e apertou o casaco contra si, tentando afastar os calafrios. Aquele nome, aquela paragem, não fazia parte da rota. O comboio parou por completo. Um silêncio mais profundo do que qualquer outro instalou-se. As luzes do vagão começaram a piscar sem cessar, lançando sombras em movimento contra as paredes e o chão, criando formas escuras que pareciam dançar na periferia da visão.
— Está tudo bem? — perguntou a si mesma, mas as palavras soaram ocas, como se não pertencessem àquele lugar.
A luz extinguiu-se de vez, mergulhando-a numa escuridão densa. Lara respirou fundo, tentando conter o pânico. Os seus sentidos pareciam amplificados pelo vazio ao seu redor e foi então que ouviu o primeiro som, os passos.
O eco suave e arrastado vinha do longo corredor, aproximando-se lentamente. O som ressoava no vagão como se estivesse dentro da sua própria cabeça. Ela engoliu em seco e tentou falar, mas a voz saiu trémula.
— Condutor? — chamou.
Os passos cessaram abruptamente. Por um momento, a tensão era insuportável. E então, veio a risada. Baixa, rouca, quase animalesca, parecia um murmúrio feito para ser ouvido unicamente por ela. Sentiu o pânico crescer, e num movimento instintivo, virou-se, mas encontrou apenas o corredor vazio.
Tentou ligar a lanterna do telemóvel. O ecrã permaneceu negro, indiferente aos seus esforços. O som voltou, desta vez algo mais pesado a ser arrastado. Veio de trás. Ela congelou, incapaz de se virar imediatamente. Quando finalmente reuniu coragem, avistou uma sombra no extremo do vagão.
A figura moveu-se. Alta, esguia, com uma postura antinatural, deslocava-se como uma marioneta desajeitada. O rosto, agora visível graças a um breve lampejo das luzes, era desumano. Pálido e macabro, com olhos que eram apenas dois enormes buracos negros, onde não existia qualquer traço de vida. Um sorriso sombrio distorcido alargava-se por uma boca que parecia maior do que deveria ser.
— Não deverias ter vindo — sussurrou a criatura, com a voz fria como gelo a cortar a atmosfera.
Recuou, os músculos recusando obedecer ao instinto de correr. Tropeçou nos assentos e caiu, sentindo o impacto nas costas. Tentou arrastar-se para longe, mas antes que pudesse escapar, as mãos geladas agarraram-na pelos ombros com uma força brutal. Não houve tempo para gritar. O rosto da entidade estava agora a centímetros do seu, e os olhos, ou a ausência deles, sugavam-na para uma escuridão que parecia infinita.
Quando abriu os olhos, já não continuava no comboio. A neblina envolvia tudo, impossibilitando distinguir onde estava. Ecos de risadas e murmúrios cruzavam o ar, e à medida que os seus olhos se ajustavam, começaram a surgir os rostos. Desfigurados, contorcidos pela dor e pelo medo, olhavam para ela com uma intensidade esmagadora.
— Não há saída — murmurou uma voz, baixa e inexorável.
Lara gritou, mas o som perdeu-se naquele vazio que parecia sem fim. Estava presa. Um limbo onde o tempo não existia e os horrores eram intermináveis.
O comboio, no entanto, reiniciava a sua marcha. De fora, qualquer transeunte poderia jurar que era apenas uma viagem comum. No interior, porém, o horror aguardava pacientemente pela próxima vítima.

28 de dezembro de 2024

Reflexões de um Ano Bissexto

Este ano pareceu passar mais rápido que os outros, como se os dias extras de um ano bissexto tivessem sido roubados pelo tempo. Foi um período especialmente desafiador. Completar os cinquenta anos trouxe não apenas a marca inevitável do tempo, mas também uma clareza inquietante sobre tudo o que está errado à minha volta, as dores inexplicáveis que carregamos e os conflitos que surgem do nada, pesando sobre nós como tempestades inesperadas.

Vejo as famílias desfeitas pela soberba e por julgamentos implacáveis, onde a cobardia se sobrepõe ao perdão, mesmo entre aqueles que deveriam saber mais pela experiência de vida. Percebi que muitos conflitos desnecessários persistem, alimentados pelo silêncio e pela ausência das palavras certas nos momentos cruciais. Ainda assim, acredito no poder transformador do perdão. Como diz o provérbio: "O perdão não muda o passado, mas enriquece o futuro."

Outro pensamento que me acompanhou foi: "A cobardia veste-se de desculpas e arrependimentos tardios." Quantas vezes nos deixamos dominar pelo medo, que nos paralisa e impede de estendermos a mão ou pedirmos desculpa? E a soberba, que transforma pequenos em gigantes ilusórios, apenas para ser desmascarada pela verdade, é bem capturada pelo provérbio: "A soberba faz do pequeno um gigante, até que a realidade o derruba."

Ao refletir, percebo que errar é inevitável, um traço inquestionável da condição humana. Falhar como cônjuge, pai/mãe ou filho(a) faz parte da vida. Não temos manual para enfrentar certas situações e cada um carrega a sua quota de falhas, desde as palavras ditas no calor do momento até aos silêncios que deveriam ter sido preenchidos por gestos ou abraços. 

Cada erro deixa marcas, algumas visíveis, outras enterradas no fundo da alma. Contudo, ao olhar para trás, vejo que essas falhas foram valiosas. Elas moldaram não apenas quem sou, mas também como me relaciono com aqueles que amo. O que realmente importa não é a perfeição, mas o valor que damos ao presente. É no agora que reside a possibilidade de reparar, de cultivar as conexões profundas e genuínas. O passado ensina-nos com a sua dureza, mas o presente oferece-nos a oportunidade de aplicar essas lições, amar com mais intenção e estar verdadeiramente presente, não apenas fisicamente, mas de coração aberto e atento.

Aprender nunca termina. As lições estão em tudo, no sorriso de um filho, no olhar silencioso de um cônjuge ou até mesmo na dor de um desentendimento. Cada emoção que sentimos, seja na alegria, na tristeza, na raiva ou na tranquilidade, carregamos algo a ensinar. É através dessas experiências que nos moldamos e aprendemos a enxergar o mundo com todas as suas imperfeições e belezas.

E assim, percebo que o caminho para ser melhor não é isento de falhas. Pelo contrário, é trilhado ao aceitarmos as nossas imperfeições, ao pedir desculpas quando necessário e ao recomeçar sempre que possível. No final, é o esforço contínuo de aprender, crescer e amar que define quem somos.

Este ano foi marcado por batalhas internas e tensões que testaram a minha capacidade de compreensão. Foram conflitos invisíveis, travados dentro de mim, onde as dúvidas, os medos e as incertezas assumiram formas inesperadas. No entanto, no meio desse turbilhão, encontrei algo surpreendente, as pequenas mudanças positivas que, embora discretas, trouxeram um alívio. Cada dificuldade parecia carregar consigo uma semente de crescimento, uma lição oculta que, aos poucos, começou a florescer.

Com a chegada do Natal, um misto de emoções tomou conta de mim. As saudades intensas e a tristeza ecoaram como uma melodia persistente, acompanhadas por um toque de negativismo, como se as sombras das batalhas passadas ainda pairassem. Mas, entre essas emoções, emergiu algo mais forte, a vontade de mudar e de viver com paz.

O Natal trouxe consigo um desejo quase urgente de criar memórias. Não apenas para preencher os álbuns ou as gavetas, mas os momentos vividos de forma tão plena que o seu impacto perdurasse no tempo. Talvez seja isso que o Natal simboliza, a capacidade de recomeçar, renovar a esperança e acreditar que, mesmo após um ano difícil, há sempre espaço para o amor, a partilha e novos começos.

Dizer que o ano de 2025 é o ano da família pode simbolizar renovação e reconciliação. A família é sempre essencial, e essa importância torna-se ainda mais evidente durante o Natal.

Apesar de sentir que amadureci, a minha criança interior permanece viva. É essa essência que mantém a esperança acesa, a certeza de que haverá um momento para dizer tudo o que ainda precisa ser dito.

Tal com a Analita diz, “A vida é um presente a desembrulhar, um dia de cada vez”.

Boas Entradas para 2025, que seja sempre melhor que o anterior.

26 de dezembro de 2024

Natal em Família

Quatorze à mesa, um laço de união,
Entre risos, memórias e recordação.
Crianças brincando, canções a soar,
No frio lá fora, calor a vibrar.

Pratos servidos com gosto e cuidado,
Sabores que unem, carinho ao lado.
Troca-se afeto, dá-se a essência,
Recebe-se paz, cultiva-se a presença.

No olhar de um filho, no abraço apertado,
A magia do Natal é amor partilhado.
Convívio sincero, sem pressa ou razão,
A alegria nos sorrisos é a maior emoção.

Enquanto a lareira o ambiente aquece,
O frio lá fora apenas esquece.
Aqui, a família é sempre o central,
E mais evidente se torna no Natal.

17 de dezembro de 2024

Espírito de Natal

Com alicate, ajeito a decoração,
No pinheiro brilham luzes de emoção.
Esponja de banho? Presente encantado,
Entre risadas, todos bem animados.

Um clip segura cartões de carinho,
Desejos sinceros no nosso caminho.
A pá recolhe os brilhantes do chão,
E o alho-francês perfuma o caldeirão.

Contos e cantorias rompem o silêncio,
A noite é festiva, amor tão intenso.
O espírito natalício aquece e floresce,
E a união da família jamais esmorece.

16 de dezembro de 2024

Um sábado bem-passado

A manhã começou serena, com um passeio tranquilo ao lado da minha cadela Loira, junto ao riacho. Um café e uma conversa leve, cheia de palavras soltas que dançavam no ar, com o meu companheiro.

Perto do meio-dia, peguei no carro e segui devagar a caminho do sarau da minha sobrinha mais nova, acompanhada pela mais velha. O sábado em Miraflores estava movimentado, com muitos carros estacionados em cima do passeio. Fiz o mesmo.

Sentámo-nos nos bancos de cimento, que desta vez, estavam cobertos com resguardos, afastando o frio. O tempo passou num instante, entre as entradas de grupos, das crianças aos mais velhos, muitas palmas, vídeos e brincadeiras. Quando tudo terminou, as meninas foram almoçar e preparar para a tarde. E caminhei até ao carro. Ao ver os papéis presos nos vidros dos outros carros, percebi, que já tinha uma multa. Bah!

Fiz uma pausa numa bomba de gasolina, onde tinha uma área de serviço e aproveitei para comprar uma sandes, um sumo e um café. Depois, segui caminho para o Palácio Baldaya. Entrei por trás, por uma entrada que parecia meio-abandonada. Mas, ao aproximar-me do palácio, senti-me deslumbrada, que lugar lindo, um verdadeiro tesouro escondido em Benfica!

À entrada, uma parede estava adornada com uma pintura enorme e vibrante. No jardim, uma árvore iluminada por luzes de Natal, havia mesas e cadeiras dispostas ao ar livre em que, criavam uma atmosfera encantadora.

Lá dentro, uma exposição de ‘puzzles’ capturou-me imediatamente. Era ali que iria acontecer o lançamento do livro. Mas as imagens dos ‘puzzles’ eram fascinantes nos mapas, monumentos icónicos, Los Angeles à noite, Lisboa, Taj Mahal, África, Sagrada Família, Torre Eiffel. E, claro, as impressionantes torres de Pisa e o Coliseu, em 3D. Como fã de ‘puzzles’, fiquei completamente fascinada.

Encontrei as minhas colegas e a formadora da minha formação de escrita, algumas delas conhecia apenas pelos “quadradinhos” das videochamadas das dinâmicas.

Estava quase a começar o evento, o lançamento do livro 'Sublime Querer'. Duas das três autoras, a Paula e a Cláudia, são pessoas que admiro profundamente, pelas histórias que tem, pelo carácter e pelas dinâmicas que fazem. A apresentação foi breve, mas cativante, despertando a vontade de mergulhar nos contos. Vou seguir o conselho: ler um conto por dia e dedicar vinte e quatro horas para reflectir.

Os autógrafos, as trocas de palavras com as colegas e as fotos tiradas pelo fotógrafo tornaram tudo ainda mais especial.

Antes de anoitecer, segui rumo à casa da minha mãe. Troquei de roupa, maquilhei-me e vesti um lindo casaco azul com pêlos. Quando a minha mãe e os meus tios chegaram, ficaram boquiabertos: “Uau! Estás linda, pareces uma fada madrinha!”

À noite, parti para a festa de Natal da empresa. Entre as conversas animadas, um copo de sangria, música da nossa época e dançar até os pés doerem, a noite fluiu como um sopro, cheia de alegria, convívio e descontração.

Cheguei a casa às três da manhã. Exausta, mas com o coração cheio.

15 de dezembro de 2024

Divisões

No silêncio da casa vazia, Sofia observava as rachaduras nas paredes, as linhas que pareciam se multiplicar a cada dia. Antes, eram quase invisíveis, um detalhe menor na paisagem do lar, mas agora cortavam o reboco em trajetos sinuosos e profundos, como cicatrizes que a casa se recusava a esconder.
O técnico garantira: “é um assentamento normal.” Sofia tentara acreditar, mas algo naqueles traços irregulares a fazia sentir-se observada. À noite, os sons aumentavam. Pequenos estalos ecoavam pela madeira e pelas paredes, formando um compasso que a inquietava. Todas as madrugadas, às 3h13, o relógio da sala parava, como se o tempo obedecesse a um ritual sinistro. Os objetos surgiam deslocados. Os livros invertidos, os quadros tortos, um vaso quebrado que ela não se lembrava de ter tocado. E havia os sussurros. Baixos, indistintos, mas inegáveis, pareciam sair de dentro das paredes. Naquela noite, os estalos vieram mais fortes. Sofia, já acostumada, pensou em ignorá-los, mas o som tornou-se um estrondo avassalador que fez o chão tremer. Correu para a sala e parou, aterrorizada, ao ver as rachaduras se alargando diante dos seus olhos. Elas não só cortavam a parede como a rasgavam. Em segundos, um vazio negro pulsante tomou o lugar do reboco. Sofia tentou gritar, mas a sua voz falhou. Um frio gelado percorreu o ambiente e uma sombra emergiu do vazio, movendo-se como um líquido denso. Paralisada, ouviu a fantasma sussurrar, com uma voz que parecia vir de dentro da sua própria mente: “Estás dividida como esta casa. Escolhe.” Sofia sabia do que se tratava. A dor das decisões adiadas, das escolhas que jamais teve coragem de fazer, materializava-se ali. Mas quando tentou responder, percebeu que já era tarde. A sombra avançou, envolvendo-a num abraço opressivo. Enquanto o vazio a consumia, os estalos cessaram. As rachaduras começaram a desaparecer, fechando-se como feridas que finalmente cicatrizavam. A casa silenciou e o relógio voltou a marcar o tempo. Para quem passava por ali, era apenas mais uma casa antiga, mas Sofia nunca mais foi vista, exceto por um vulto no reflexo das janelas à noite.

11 de dezembro de 2024

Dinamica Dezembro

Auguste Rodin foi um escultor francês do século XIX que revolucionou a escultura moderna. Para além das reconhecidas modulações das superfícies, de inspiração impressionista, também desenvolveu a escultura parcelar, ou seja, que não era a figura humana na totalidade ou o tradicional busto. "A mão de Deus"é um desses fantásticos objetos pétreos.
Também na literatura o discurso pode ser modelado a partir de uma parcela corporal, como as mãos, a mão solitária, quase sem sujeito.
DESAFIO:
- TEMA: a mão;
- TAREFA: escrever uma breve ficção apenas narrando uma mão;
- O sujeito da mão não pode ser descrito física ou psiquicamente;
- Uma mão tem 5 dedos, 5x9=45, 45+9=56; 56+5+6= 67; Usar 67 palavras exatas;
- O narrador é na primeira pessoa (eu), pode ser a mão ou o sujeito da mão, e fala com um destinatário que trata na segunda pessoa (tu);
- DESAFIO: não pode usar nenhuma letra T;

Eu deslizo por superfícies enrugadas,
os dedos dobrados e linhas marcadas de jornadas.
Na minha presença, segues o compasso da minha dança silenciosa.
Inclino-me, recolho as migalhas ou sombras esquecidas.
Exploro as asperezas e as doçuras suaves.
Com energia, desenho as formas no ar.
A cada sinal guardo memórias, nas dobras, uma narração.
Apenas olhas, mas nunca alcanças.
Eu avanço, deixando pegadas que logo se desfazem.

8 de dezembro de 2024

Intimidade

Na penumbra do quarto, Clara sentiu as mãos de Marco deslizando sobre a sua pele. O calor do toque era real demais para um sonho, mas uma sensação de frio pesado instalava-se no seu peito. A cada carícia parecia trazer uma lembrança, mas também um peso que ela não sabia nomear. Lentamente, abriu os olhos. Marco não estava ali. O espelho em frente reflectia o quarto vazio, excepto uma sombra alongada atrás dela. Virou-se bruscamente, mas encontrou apenas o silêncio opressivo. Um cheiro de terra molhada invadiu o ar, denso e férreo, trazendo as memórias que Clara há muito tentava enterrar. Marco estava morto havia um ano. O acidente, tão repentino quanto brutal, ainda a atormentava. Mas agora, o toque persistia, quente, familiar e, ao mesmo tempo, aterrador. A porta rangeu, fechando-se devagar e uma brisa gelada fez os cabelos de Clara erguerem-se. Uma voz sussurrou o seu nome, grave e distorcida, como se ecoasse do fundo de um poço. Era o timbre de Marco, mas algo nele soava muito errado. Não era apenas o desejo, mas algo desesperado e faminto. Clara apertou o peito, tentando afastar a sensação de sufocamento. As lágrimas escorriam pelo seu rosto. "Estou aqui," sussurrou a voz quebrada, cheia de dor e esperança. De repente, as mãos voltaram, mais fortes, quase possessivas, envolvendo-a como uma prisão invisível. O espelho trincou, estalando em linhas que pareciam feridas e a sombra cresceu a sua volta. Clara tentou se mover, mas seus membros estavam pesados, como se a escuridão ao redor a absorvesse. No reflexo estilhaçado, vislumbrou um pouco assustador, uns olhos brilhando com uma luz fria e um sorriso que não pertencia a Marco. A última coisa que Clara ouviu foi a voz dele murmurando perto do seu ouvido, num tom amargo, "Nunca te deixarei." O quarto mergulhou numa escuridão total e a casa permaneceu num total silêncio. Ela percebeu que jamais estaria sozinha. Na manhã seguinte, apenas o perfume de terra molhada permanecia no ar, enquanto o quarto parecia mais vazio do que nunca.

3 de dezembro de 2024

Ronrons e mimos!

Vou escrevendo um conto e a medida que for dizendo Stop muda de letra do
alfabeto: FHGI.

 F- Foram momentos pensativos. Tiro meio-dia de férias, há que pensar na saúde dos que nos querem bem. Fui para casa da minha mãe, abri a janela, para entrar o sol, fraquinho, mas que ainda tinha força para aquecer. E o cheiro das flores...
H- Há momentos em que tudo o que desejamos é aliviar o peso das dores alheias. Quando vemos alguém a sofrer, uma vontade urgente nos invade, arrancar-lhes os sorrisos, oferecer conforto e distrair das aflições, mesmo que por breves instantes. Tentamos contar anedotas, improvisar uma atmosfera leve e carregar o ambiente com um bom humor quase forçado, mas genuíno no afeto.
Hoje, o consolo veio pela cozinha. Preparei uma canja simples, mas feita com cuidado, uma galinha desfiada sem ossos, nadando em caldo quente com massa de cotovelos, aquele tipo que parece abraçar o paladar. Para o prato principal, um bife grelhado, não perfeito, mas honesto, tão firme quanto uma sola de sapato, acompanhado por umas batatas a murro, que liberaram o seu perfume terroso ao toque do azeite.
E, para adoçar o momento, veio o ápice: uma maçã reineta generosamente polvilhada com açúcar e canela, assada até a doçura derreter na boca.
Cada gesto, cada prato, foi pensado para ser a cereja no topo do bolo. Um pequeno ato de amor para a doentinha, uma tentativa de lembrar que, às vezes, o afeto pode ser servido em colheres, com os bocados e aromas.
G- Golo! Acertei precisamente nas receitas perfeitas para momentos como este. Esperei mais um pouco, observando com satisfação as cores a voltarem lentamente às bochechas da doente. Um pequeno sinal de recuperação que me aqueceu o meu coração. Com a sensação de dever cumprido, arranquei de volta para casa.
Mal cruzei a porta, nem tempo tive para respirar. Assim que me sentei, fui cercada por dois caramelos peludos, os guardiões do meu sossego. Um aconchegou-se ao meu colo, ronronando como se fosse um motorzinho de pura felicidade. O outro encostou-se à minha perna, abanando o rabo como quem diz: "Estivemos à tua espera todo o dia".
Sorri, mas a pergunta veio à mente, será que consigo trabalhar? Talvez escrever algo para as minhas adoradas dinâmicas de aventuras? Mas como posso eu, ignorar aqueles olhos? Eles não pediam, exigiam a minha atenção e mimos, cheios de saudades.
Entre ronrons e os olhares cúmplices, percebi que, naquele momento, escrever podia esperar. Afinal, cada gesto deles era como um capítulo de um conto silencioso, feito de carinho, de lealdade e uma cumplicidade que só o amor genuíno sabe escrever.
I- Iria adiar o trabalho, iria escrever os contos com algumas letras, iria ouvir as outras meninas a contar as suas histórias, as suas aventuras. E dar risadas até cair para o lado, o melhor destes encontros online.

1 de dezembro de 2024

O Espelho Proibido

 

No mundo de Kaelar, os espelhos eram mais do que objetos banidos, eram portais para o inexplicável. As lendas sussurravam sobre os reflexos que não refletiam, mas simulavam, os habitantes de um reino invertido, à espera de uma fraqueza, de um momento para se cruzarem. Ninguém ousava desafiar a proibição, exceto Teryn, um aprendiz de alquimista, o qual a curiosidade era tão afiada quanto perigosa.
Num mercado clandestino, encontrou um pequeno espelho de moldura corroída pelo tempo. Entre as moedas trocadas e os olhares furtivos, sentiu o peso do objeto nas suas mãos, como se algo ali o observasse. Ignorou o arrepio. “Medo irracional,” pensou.
No seu quarto, à luz trémula de uma vela, Teryn ergueu o espelho. A princípio, viu-se como sempre, uns olhos verdes atentos e pele pálida. Mas, algo rompeu a normalidade. O reflexo piscou. Ele, não.
Teryn estremeceu. Largou o espelho, mas a imagem não desapareceu. Pelo contrário, sorriu. Um sorriso largo, desafinado e expondo os dentes afiados.
— Finalmente — disse a figura, numa voz rouca que ressoava dentro da mente de Teryn.
Ele tentou desviar o olhar, mas os seus olhos estavam presos. Os seus braços imóveis, não obedeciam. O reflexo, agora autónomo, moveu-se além do limite do vidro, como se a moldura fosse uma janela aberta.
— Devias ter ouvido as histórias, Teryn — zombou a figura, aproximando-se.
Um frio avassalador tomou conta do aprendiz. Sentiu um puxão, como se algo o sugasse para dentro do espelho, para um vazio gelado e insuportável. Quando o pânico deu lugar à realidade, percebeu que não estava mais no quarto. Ele estava do outro lado.
Do vidro, viu o seu próprio corpo, agora habitado pela criatura.
— Agora é a minha vez no mundo real — disse ela, sorrindo, antes de apagar a vela.
Na escuridão opressiva do mundo invertido, Teryn ouviu sussurros infinitos, as vozes indistintas de outros também aprisionados. Algumas vozes choravam, outras suplicavam, mas as piores eram as que gargalhavam, distorcidas pelo desespero que se transformara em loucura.
E então, entendeu, que ninguém escapava do reflexo.

27 de novembro de 2024

Dezanove Anos

Hoje não é um dia de tristeza, embora tenha começado com um nó na garganta. São dezanove anos desde que o meu Pai partiu. De ausência que, pouco a pouco, se transformaram numa presença diferente. Não uma presença física, mas algo mais profundo. Ele representa um pouco, nos meus gestos, nos nossos risos, nas histórias que conto.

Coloquei flores no meu coração, como sempre faço. Ele dizia que os pequenos gestos tinham poder e agora entendo por quê. Era assim que ele era, uma força constante, até quando as coisas não iam bem.

Ainda encontro muitas pessoas que se lembram dele. “O teu pai… era um homem como poucos. Sempre dizia que a vida era para ser partilhada e fazia isso como ninguém. Principalmente com a família e com as pessoas que amava.”

Aquelas palavras aqueceram-me. Mesmo depois de tanto tempo, havia quem ainda o recordava com carinho. Senti reconhecimento, por ele e pelas memórias que não deixam que a sua essência se perca.

Mais tarde, reunimos em família para um jantar. Até a minha mana, com cara de sono, fez videoconferência connosco por cinco minutos. Não foi um evento triste, até rimos, relembramos as histórias engraçadas. Tenho pena que os mais novos, as netas, não o tenham conhecido. Mas ficam fascinadas com as narrativas, como se ele estivesse presente nelas.

Hoje, não chorei. Não esqueci do dia, nem as pessoas que fazem anos. As saudades continuam aqui, mas dói muito menos. É uma saudade boa, que me lembra o quanto ele foi amado e o quanto ainda é. Ele permanece tão presente entre nós. E muitas vezes, em silêncio e em pensamento, recorro-lhe para alguns receios da vida.

Antes de adormecer, escrevi no meu diário virtual:
Obrigado, Pai, por tudo o que foste e ainda és.
Obrigado a quem te lembra com carinho.
És eterno nas memórias e no amor que deixaste.

E assim terminei o dia, com menos dor e muito mais gratidão.

26 de novembro de 2024

Pais das Maravilhas

Vou escrevendo um conto e a medida que for dizendo Stop muda de letra do
alfabeto: ABCDE.

A-Atirei o pau ao gato, mas ele não se mexeu. Apenas fixava no queijo em cima da mesa, com os olhos a brilhar de desejo. Passava a língua pelos lábios, com vontade de atacar o dito cujo sem perder tempo. Mas, hesitou. Olhou de relance para o lado e viu o presunto. Queijo ou presunto? Parecia ponderar como um ladrão indeciso, planeando o próximo roubo. Os seus olhos arregalados brilhavam de gula, e um fio de baba já lhe escorria pelo canto da boca.

B-Borboleta cheia de cores voava inquieta, procurando onde fazer o seu casulo, preparando-se para, curiosamente, transformar-se... em lagarta. Talvez seja aquela lagarta do País das Maravilhas que fumava como um Lorde ou Lady. 

A menina loira de olhos azuis e vestido branco e azul surgiu correndo, perseguindo um coelho branco de relógio na mão. Ela caiu num poço profundo e aterrou num estranho labirinto com muitas portas e uma sala gigantesca. Lá, uma longa mesa aguardava, cercada de criaturas peculiares. 

C-Coelho branco de cartola e relógio liderava o banquete. Ao lado, uma zebra de chapéu de palhaço exibia o seu estilo extravagante. Um caracol gigante com casaco multicolorido pilotava um volante imaginário, enquanto o elefante Jumbo, com um laço impecável no pescoço, se ajeitava na cadeira. A abelha, com suas riscas amarelo-pretas, lambuzava-se de mel sem pudor. 

Por fim, um crocodilo com dentes afiados e um smoking brilhante completava a mesa. No centro da festa, um peru assado, com uma laranja na boca, que decorava a mesa. Estranho. Animais comendo outro animal? 

D-De repente, do meio das ervas altas, surgiu a lagarta a fumar um cigarro, seguida do gato, agora com um sorriso peculiar em forma de queijo redondo e bocados de presunto nos dentes brancos. O coelho  correu para casa em busca de mais cadeiras, garantindo que todos pudessem desfrutar daquele excêntrico jantar de gala. Com cadeiras extras, a mesa ficou ainda mais caótica. O gato, com o seu riso, acomodou-se ao lado do peru assado, observando tudo com aquele ar enigmático de quem sabe mais do que diz. A lagarta, sempre despreocupada, deu uma longa tragada no cigarro e declarou: 

— Que cena estranha... mas apetitosa. Vamos comer ou filosofar? 

Todos riram, exceto o peru, que permanecia em silêncio. A zebra ajustou o chapéu de palhaço, no alto da sua cabeça e orelhas e respondeu: 

— Aqui não se come. Aqui se imagina comer. 

A abelha, lambendo os dedos melados, levantou a mão: 

— Mas eu comi. 

O crocodilo, ajeitando o smoking, lançou um olhar severo: 

— Abelha, não estragues a lógica do jantar. 

E-Enquanto isso, a menina Alice, perdida e confusa, perguntou: 

— Mas o que faço aqui? Vocês são reais? A lagarta riu e soltou uma baforada de fumaça que tomou o ar. 

— Real é o que acreditas que é. Este jantar é tão real quanto o desejo do gato por queijo ou presunto. O gato ronronou, encantado com a referência. Pegou um pedaço imaginário de queijo e o devorou com satisfação teatral. No meio da confusão, o coelho branco consultou o seu relógio e exclamou: 

— Estamos atrasados! Precisamos brindar! 

Com as taças imaginárias erguidas, todos brindaram a algo que ninguém nomeou. A menina, ainda confusa, percebeu que o peru assado havia desaparecido, substituído por um prato vazio. O gato sorriu largamente, lambendo os bigodes. E assim, entre risadas, a filosofia e um jantar que não era bem um jantar, todos desapareceram um por um, deixando a mesa vazia. 

A menina esfregou os olhos e viu-se novamente no jardim, segurando uma folha colada à testa. Ao longe, o gato desaparecia entre as árvores, com um sorriso de queijo no seu rosto, como se tudo não tivesse passado de um sonho.

24 de novembro de 2024

Um Vendaval de Problemas

Ontem foi uma tarde perfeita à beira do rio no Montijo, com boa companhia e um céu limpo. Hoje? Um completo desastre. Era uma daquelas manhãs em que parecia que o universo tinha acordado de mau-humor e decidido que eu seria o alvo. Nada me corria bem.

Tentava limpar as folhas da entrada, mas o vento parecia ter outros planos. Cada varrida minha transformava-se numa piada para a tempestade, que insistia em devolver as folhas à porta com uma precisão quase provocadora.

— Estou a varrer ou a dançar salsa? — resmunguei, enquanto o monte de folhas ignorava-me triunfantemente.

Foi nesse momento que Dona Domingas apareceu. A vizinha, envolta num chapéu de chuva extravagante, parecia ter saído diretamente de um filme de época.

— Não sabia que tinha talento para aeróbica na chuva! — gritou ela, entre gargalhadas.

Nem tive tempo de responder. Uma folha rebelde decidiu colar-se à minha testa, como se quisesse marcar território. Para completar o ‘show’, Ginger, o meu gato alaranjado e com a pose de um verdadeiro lorde, decidiu pisar em todas as poças possíveis. Encharcado e indignado, correu para dentro de casa, deixando pegadas pela cozinha.

No auge do caos, entre vento descontrolado e chuva teimosa, senti um estalo. Ai! Caetano! Era como se tivesse um torcicolo na anca. Soltei um grito de dor, larguei a vassoura, que foi parar aos pés do meu companheiro.

— Boa tarde… ou seria bom espetáculo? — disse ele, segurando-me enquanto se esforçava para não rir.

Dei-lhe um sorriso forçado e arrastei-me para dentro, mancando como uma velha. Ginger olhou-me do sofá com o desprezo altivo de quem claramente nunca teve de varrer folhas.

Suspirei, olhei para o céu cinzento e jurei, nunca mais fazer isto durante uma tempestade.

E ali fiquei, no sofá, com dores, a Loira encostada a mim e Ginger satisfeito, ronronando como se fosse o rei do caos. Afinal, ele parecia ser o único a desfrutar do dia.

19 de novembro de 2024

Amarrar o burro

Luz das letras

1.    A céu aberto: ao ar livre

2.    Abandonar o barco: desistir de uma situação difícil

3.    Abotoar o paletó: morrer

4.    Abrir mão de alguma coisa: renunciar alguma coisa

5.    Abrir o coração: desabafar, declarar-se sinceramente

6.    Abrir o jogo: denunciar ou revelar detalhes

7.    Abrir os olhos a alguém: alertar ou convencer alguém de alguma coisa

8.    Acabar em pizza: quando uma situação não resolvida acaba encerrada (especialmente em casos de corrupção, quando ninguém é punido)

9.    Acertar na lata: acertar com precisão, adivinhar de primeira

10. Acertar na mosca: acertar com precisão, adivinhar de primeira

11. Adoçar a boca: conseguir um favor de alguém com elogios

12. Agarrar com unhas e dentes: agir de forma extrema para não perder algo ou alguém

13. Agora é que são elas: momento em que começa a dificuldade

14. Água que passarinho não bebe: pinga ou bebida alcoólica

15. Amarrar o burro: descansar ou se comprometer romanticamente com alguém. 

Uma frase e um mini-conto de 300 palavras:

 

Na vila de Patacas Altas, a rotina de Zé Pancada e o seu burro era o principal entretenimento. Chicote era um verdadeiro Houdini de quatro patas, capaz de se desamarrar de qualquer corda. Sempre que Zé entrava no bar para “uma conversa rápida”, que nunca, o burro escapava, causando uma série de desastres hilariantes. 

Certa tarde, decidido a vencer o burro, Zé amarrou-o com uma corda “indestrutível” ao poste da praça e entrou no bar. “Hoje ele não me engana!”, declarou, confiante. Os amigos riram, pois sabiam como aquilo ia acabar. E acabou, bastou cinco minutos. Chicote já caminhava pela vila com a corda ao pescoço, como se desfilasse com uma gravata de gala, pronto para sua habitual ronda de travessuras. 

Primeiro, invadiu a banca de frutas de Dona Cotinha, devorou três maçãs e empurrou o tabuleiro, espalhando frutas pela rua. “Ó animal desavergonhado!”, gritou Cotinha, sacudindo um pepino na direção dele. Depois, Chicote foi à barbearia do Seu Rufino. Parou em frente ao espelho e balançou a cabeça como se pedisse um corte moderno. “Sai daqui, burro vaidoso! Não tenho tesouras para crinas!”, gritou Rufino, enquanto o burro relinchava, claramente divertido. 

Mas a apoteose foi na igreja. O padre Jeremias, no auge de um sermão sobre paciência, ficou boquiaberto quando Chicote subiu ao altar e começou a mastigar as flores decorativas. “Irmãos, as provações do Senhor vêm em muitas formas. Hoje… vieram com patas!”, suspirou Jeremias, enquanto os fiéis tentavam conter o riso. 

Quando Zé saiu do bar, a vila inteira estava à caça do burro. “Zé Pancada, amarra este demónio como deve ser!”, gritou Cotinha, lançando-lhe uma maçã murcha. Com um relinchar triunfante, voltou calmamente ao poste, como se nada tivesse acontecido. 
Nunca subestime um burro com talento. Em Patacas Altas, Chicote era a verdadeira estrela.

17 de novembro de 2024

Domingo Alegre


No mínimo, duas vezes por ano, celebramos o tradicional "Domingo Alegre," uma tradição de Moçambique. É um encontro entre várias famílias e amigos, misturando idades, as origens e as cores, numa convivência recheada de boas comidas, de conversas longas e de jogos: sueca, matraquilhos, Carrom e brincadeiras de crianças. Era sempre um dia muito especial, cheio de energia e de recordações.

Este ano, a Tia Rita marcou um almoço antecipado de Natal para um domingo. “Não podemos mudar de dia!”, decretou ela, prática e inflexível, nada normal. Com cerca de 26 pessoas confirmadas, escolhemos um restaurante espaçoso, ideal para as nossas festas prolongadas, cheias de risadas, histórias e boa disposição.

O grande dia chegou. “Está marcado para as 12h, não se atrasem!”, avisou a tia Rita. Como de costume, os primeiros a chegar acomodaram-se no recinto da entrada, abrigadas do vento frio. Entrei logo depois, cumprimentando as tias, as primas e as amigas, até que uma voz inesperada ecoou: “Finalmente num almoço de família!”

O coração deu um saltinho. Era a voz da minha mana. Mas... não podia ser. Ela está em Itália! E já tinha feito uma surpresa nos meus 50 anos. Convenci-me de que imaginava coisas. Até que me virei e ouvi um animado grito de: “Surpresa!”

Era ela, de verdade! Com o seu traje colorido, um sorriso radiante e a alegria de sempre. O salão explodiu em abraços e exclamações de surpresa, a medida que chegava mais pessoas. Não era comum ela estar cá fora de época, geralmente, só vinha no verão ou no Natal, que este ano irá estar presente.

O almoço ganhou um brilho especial. Entre os pratos deliciosos e as bebidas, as conversas fluíram, memórias foram compartilhadas e, por alguns momentos, parecia que o tempo parou, apenas para nos lembrar do quão essencial é estar junto de quem amamos.

16 de novembro de 2024

Rato e Rei!

 

O raio do rápido rato roeu, raivoso, a rolha redonda da garrafa de rum do Roberto, o rei rigoroso da Rússia. Roubou as rosas raras, rasgou as rendas reluzentes e raptou três roscas recheadas sem deixar rastos.

O rei, revoltado, resmungou: "Ratos rabugentos roubaram as riquezas do meu reino resplandecente! Reúnam rapidamente os reforços, recuperem o que restou e reduzam os ratos a meras recordações!"
Reis, rainhas e rústicos reagiram, rumores rodopiavam pelos recantos: "Ratos raros, reais rivais, reinavam no reino roubado!"
Enquanto isso, o rato regozijava, rindo em ruas recônditas, rolando sobre relíquias roubadas, rodeado de riquezas e rosquinhas recheadas.
No horizonte, a revolução rugia e o rei, rígido, retomava o reino: "Rendição ou rebelião?"
O rato, rápido e resoluto, respondeu com riso: "Reinar é uma arte e roubar é o meu ritual."
O rei Roberto, resoluto, reuniu os seus reforços com um rugido retumbante. Os soldados, com reluzentes armaduras revestidas, rasgavam trilhos por riachos e ravinas, rastreando o rato rebelde. Pelos recantos do reino, relatos ressurgiam: "O rato refugia-se em recifes remotos, rodeado de riquezas roubadas!"
Enquanto isso, o rato, regendo a sua resistência, rodeava-se de ratos renegados. "Recuperem os reforços! Rastejem, procurem, mas não retrocedam!" — Ordenava, rosnando. Ratos robustos revezavam-se, recarregando reservas de rosquinhas e rum.
O confronto culminou no Riacho Rubro, onde o rato enfrentou o rei. Roberto, com a realeza reunida, retumbou: "Rato, rastejaste rumo à ruína! Rende-te ou receba a justiça do reino!"
Mas o rato, risonho, respondeu: "Render-me? Ridículo! Resisti, roguei e resplandeço! O meu reinado reluz com riqueza e rosquinhas!"
Uma reviravolta surpreendente ocorreu: Roberto, reconhecendo a resiliência do rato, propôs reconciliação. "Reine comigo. Ratos e reis podem reescrever revoluções."
E assim, reinos reunidos, ratos e homens repartiram responsabilidades, criando uma era radiante de respeito e renascimento.

13 de novembro de 2024

Enumeração

Parto amanhã rumo ao Santiago de Compostela, onde as melhores aventuras acontecem.

LEVO: 

Uma bússola pequena para encontrar caminhos secretos (🧭para orientação);

Um mapa real para descobrir estradas escondidas (me diz onde estou e para onde vou);

Duas botas impermeáveis para alguns terrenos imprevisíveis (uma em cada pé);

Duas cordas resistentes para atravessar abismos inclinados (um para descer, outro para subir);

Três livros antigos para desvendar enigmas ocultos (um que conta, outro que nega e outro confirma);

Quatro lanternas luminosas para noites mais escuras (para cada ponto cardeal);

Cinco frascos mágicos para curar ferimentos estranhos (mazelas com olhos, nariz, ouvidos, coração e pés);

Seis amuletos protectores para espantar criaturas ferozes (para seis bichos);

Sete lápis encantados para enviar mensagens necessárias (as cores do arco-íris).

12 de novembro de 2024

Sozinho sem saida

De noite, o silêncio no hospital era quase absoluto, interrompido pelo som fraco das máquinas que pulsavam ritmadamente, como as batidas de um coração distante.
João, de pele pálida, estava sozinho, no fim de um corredor vazio e mal iluminado. Os médicos e enfermeiros tinham desaparecido, e cada tentativa de gritar era abafada pela dor crescente na sua garganta.
Do quarto vizinho, ouviam-se sons. Levou um instante até perceber que se moviam em círculos, num ritmo irregular. Um aperto tomou o peito de João ao entender que não eram passos humanos. Ouvia-se um arrastar lento e denso, como algo viscoso a mover-se.
Ele fechou os olhos, mas a porta rangeu-se e um cheiro forte a mofo e decomposição invadiu o ar. Algo estava ali, à espreita, invisível e intensamente presente, e enquanto o horror se aproximava, sentiu que o seu próprio fim estava perto.
#desafiofdt2024 #terroremportugal
#laritacaramela

A pedido pela continuação: 

A figura que se imergiu na penumbra era alta, esquelética, envolta numa aura de trevas que parecia devorar a luz fraca do corredor. O cheiro de decomposição tornou-se insuportável, queimando os sentidos de João. Ele tentou mover-se, mas o corpo parecia preso, como se a própria cama o segurasse.

O arrastar viscoso cessou e um silêncio aterrador tomou conta do quarto. De repente, uma mão fria como gelo pousou no peito de João. Não havia força, mas um peso imenso o dominava, como se estivesse sendo puxado para fora de si. O pulsar das máquinas ficou mais alto, distorcido, misturando-se com um sussurro incompreensível.

João tentou lutar, mas o olhar da criatura, vazio e interminável, encontrou o seu. Tudo congelou. Quando o som cessou, restava apenas a cama vazia. O corredor permaneceu deserto, excepto pelo eco de algo se arrastando, à procura da próxima vítima.