No mundo de Kaelar, os espelhos eram mais do que objetos banidos, eram portais para o inexplicável. As lendas sussurravam sobre os reflexos que não refletiam, mas simulavam, os habitantes de um reino invertido, à espera de uma fraqueza, de um momento para se cruzarem. Ninguém ousava desafiar a proibição, exceto Teryn, um aprendiz de alquimista, o qual a curiosidade era tão afiada quanto perigosa.
Num mercado clandestino, encontrou um pequeno espelho de moldura corroída pelo tempo. Entre as moedas trocadas e os olhares furtivos, sentiu o peso do objeto nas suas mãos, como se algo ali o observasse. Ignorou o arrepio. “Medo irracional,” pensou.
No seu quarto, à luz trémula de uma vela, Teryn ergueu o espelho. A princípio, viu-se como sempre, uns olhos verdes atentos e pele pálida. Mas, algo rompeu a normalidade. O reflexo piscou. Ele, não.
Teryn estremeceu. Largou o espelho, mas a imagem não desapareceu. Pelo contrário, sorriu. Um sorriso largo, desafinado e expondo os dentes afiados.
— Finalmente — disse a figura, numa voz rouca que ressoava dentro da mente de Teryn.
Ele tentou desviar o olhar, mas os seus olhos estavam presos. Os seus braços imóveis, não obedeciam. O reflexo, agora autónomo, moveu-se além do limite do vidro, como se a moldura fosse uma janela aberta.
— Devias ter ouvido as histórias, Teryn — zombou a figura, aproximando-se.
Um frio avassalador tomou conta do aprendiz. Sentiu um puxão, como se algo o sugasse para dentro do espelho, para um vazio gelado e insuportável. Quando o pânico deu lugar à realidade, percebeu que não estava mais no quarto. Ele estava do outro lado.
Do vidro, viu o seu próprio corpo, agora habitado pela criatura.
— Agora é a minha vez no mundo real — disse ela, sorrindo, antes de apagar a vela.
Na escuridão opressiva do mundo invertido, Teryn ouviu sussurros infinitos, as vozes indistintas de outros também aprisionados. Algumas vozes choravam, outras suplicavam, mas as piores eram as que gargalhavam, distorcidas pelo desespero que se transformara em loucura.
E então, entendeu, que ninguém escapava do reflexo.
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