Mais tarde, ninguém se lembrará de ter visto a senhora embarcar no voo no aeroporto de Hobart. E, no entanto, ela esteve lá ou talvez apenas a sombra da mulher que foi. Ficaram vestígios dispersos como folhas ao vento: um bilhete de embarque amarrotado, recolhido distraidamente por um funcionário de limpeza que não reparou no nome; uma chávena de café meio cheia, esquecida no peitoril de uma janela embaciada pela respiração do inverno, que uma mulher hesitou em tirar do caminho, como se perturbasse algo sagrado; o banco 17B, onde um adolescente prestes a sentar-se parou por um segundo, sem razão aparente, e escolheu outro lugar.
E o cheiro. Lavanda.
O aroma não era forte, era antigo. Um rasto delicado, como se o tempo tivesse aberto ali uma fresta. Um cheiro que se entranhava na memória dos outros passageiros sem que dessem por isso. Uma jovem mãe com uma criança ao colo sentiu um nó inexplicável na garganta ao passar por 17B. Um homem de negócios, cansado e cético, teve um instante de vertigem, lembrando-se da camisa da mãe no varal, num domingo de infância. Um rapaz que vendia revistas olhou duas vezes para o reflexo no vidro da porta automática, certo de ter visto alguém que já não estava lá.
Ninguém viu Adelaide embarcar, mas todos, de alguma forma, a pressentiram.
Ela tinha sessenta e três anos e, como muitas mulheres da sua idade, aprendera a tornar-se invisível, um talento que aperfeiçoara ao longo de décadas de silêncios, de renúncias pequenas e constantes, de dias iguais derramando-se uns nos outros. Tornara-se uma presença discreta, quase ornamental, no quotidiano dos outros. E, por mais cruel que pareça, isso era aceitação, mas nunca escolha.
Na mochila de couro gasta, a mesma que levara em tantas viagens curtas, sempre de regresso, havia apenas o essencial, um livro sublinhado de Milan Kundera, onde as palavras “a leveza insustentável do ser” estavam marcadas a lápis, como se ali tivesse encontrado a frase que a definia.
Uma
fotografia esbatida, de cor desbotada, onde um homem e duas crianças riam sob
um céu de verão, um momento suspenso no tempo, antes de tudo se tornar função.
E um pote de iogurte de pêssego, comprado por impulso naquela manhã, como quem
escolhe, pela primeira vez, algo só para si. Um gesto mínimo, mas radical.
A decisão não veio como um raio, mas como um sussurro, numa manhã comum de quarta-feira. Estava no supermercado, em frente à prateleira dos iogurtes, quando percebeu que não sabia qual sabor preferia. Por anos escolhera sempre os de morango, não por gosto, mas por hábito, por conveniência, porque era o que os outros comiam.
Ficou ali parada, entre o frio da arca e o zumbido distante dos altifalantes, com o iogurte de pêssego na mão, e compreendeu com uma clareza dolorosa: ninguém a via. E, mais profundamente ainda, ela própria deixara de se ver. Adelaide existia apenas nos reflexos, nos espelhos dos outros, nos papéis de mãe, esposa, funcionária.
Naquela noite, tirou os sapatos ao entrar em casa, como sempre fizera. Mas, desta vez, não os alinhou junto à porta. Olhou a casa como se fosse de outra pessoa. E entendeu que não era um lar, era um palco onde encenara durante anos uma vida que nunca escolheu.
Partir foi, paradoxalmente, o gesto mais autêntico da sua existência. Não por cobardia, mas por libertação. Não deixou carta, só o silêncio e um apartamento arrumado demais. Na mesa da cozinha, deixou o iogurte de pêssego. Intacto. Como uma oferenda.
O voo partiu às 19h46. O céu estava limpo, como se o mundo tivesse feito uma pausa para lhe dar passagem. Em Melbourne, o banco 17B estava vazio. Mas o cheiro de lavanda ficou. Persistente. Como a memória de um sonho antigo.
Mais tarde, ninguém se lembrará de ter visto a senhora embarcar. Mas algumas pessoas, ao sentarem-se naquele banco, continuarão a sentir algo estranho e doce. Um pressentimento. Uma ausência com forma. Como quando se entra numa sala onde alguém acabou de sair e o ar ainda conserva a sua temperatura.
Durante anos, sem saber porquê, lembrar-se-ão daquela sensação. Talvez contem uma história breve, sem saber que personagem faltava. Talvez, num dia qualquer, escolham um iogurte diferente, ou mudem de lugar num avião, e pensem, por um instante, que há mais formas de estar presente do que simplesmente ser visto.
E o cheiro de lavanda continuará a aparecer, em momentos inesperados: no corredor de um hospital, numa caixa antiga de recordações, num lenço herdado, no vento de uma tarde qualquer. E, sempre que o sentirem, virá com ele uma sensação de perda e de reencontro, como se algo estivesse a ser devolvido sem nome, mas com sentido.
Porque Adelaide, ao desaparecer, não se apagou. Revelou-se. Tornou-se visível, não nos olhos dos outros, mas no íntimo. Na memória sensorial. No lugar onde moram as verdades mais suaves e mais duras: aquelas que nunca se dizem, mas nunca se esquecem.
E talvez, nesse instante, Adelaide exista de novo, não como mulher, mas como lembrança sem nome, como poeira de estrela num corredor de aeroporto, como o eco de uma vida que, por fim, ousou ser sua.
E tu? Quantas vezes também deixaste vestígios, um cheiro, um gesto, um silêncio, sem perceber?
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