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27 de novembro de 2024

Dezanove Anos

Hoje não é um dia de tristeza, embora tenha começado com um nó na garganta. São dezanove anos desde que o meu Pai partiu. De ausência que, pouco a pouco, se transformaram numa presença diferente. Não uma presença física, mas algo mais profundo. Ele representa um pouco, nos meus gestos, nos nossos risos, nas histórias que conto.

Coloquei flores no meu coração, como sempre faço. Ele dizia que os pequenos gestos tinham poder e agora entendo por quê. Era assim que ele era, uma força constante, até quando as coisas não iam bem.

Ainda encontro muitas pessoas que se lembram dele. “O teu pai… era um homem como poucos. Sempre dizia que a vida era para ser partilhada e fazia isso como ninguém. Principalmente com a família e com as pessoas que amava.”

Aquelas palavras aqueceram-me. Mesmo depois de tanto tempo, havia quem ainda o recordava com carinho. Senti reconhecimento, por ele e pelas memórias que não deixam que a sua essência se perca.

Mais tarde, reunimos em família para um jantar. Até a minha mana, com cara de sono, fez videoconferência connosco por cinco minutos. Não foi um evento triste, até rimos, relembramos as histórias engraçadas. Tenho pena que os mais novos, as netas, não o tenham conhecido. Mas ficam fascinadas com as narrativas, como se ele estivesse presente nelas.

Hoje, não chorei. Não esqueci do dia, nem as pessoas que fazem anos. As saudades continuam aqui, mas dói muito menos. É uma saudade boa, que me lembra o quanto ele foi amado e o quanto ainda é. Ele permanece tão presente entre nós. E muitas vezes, em silêncio e em pensamento, recorro-lhe para alguns receios da vida.

Antes de adormecer, escrevi no meu diário virtual:
Obrigado, Pai, por tudo o que foste e ainda és.
Obrigado a quem te lembra com carinho.
És eterno nas memórias e no amor que deixaste.

E assim terminei o dia, com menos dor e muito mais gratidão.

26 de novembro de 2024

Pais das Maravilhas

Vou escrevendo um conto e a medida que for dizendo Stop muda de letra do
alfabeto: ABCDE.

A-Atirei o pau ao gato, mas ele não se mexeu. Apenas fixava no queijo em cima da mesa, com os olhos a brilhar de desejo. Passava a língua pelos lábios, com vontade de atacar o dito cujo sem perder tempo. Mas, hesitou. Olhou de relance para o lado e viu o presunto. Queijo ou presunto? Parecia ponderar como um ladrão indeciso, planeando o próximo roubo. Os seus olhos arregalados brilhavam de gula, e um fio de baba já lhe escorria pelo canto da boca.

B-Borboleta cheia de cores voava inquieta, procurando onde fazer o seu casulo, preparando-se para, curiosamente, transformar-se... em lagarta. Talvez seja aquela lagarta do País das Maravilhas que fumava como um Lorde ou Lady. 

A menina loira de olhos azuis e vestido branco e azul surgiu correndo, perseguindo um coelho branco de relógio na mão. Ela caiu num poço profundo e aterrou num estranho labirinto com muitas portas e uma sala gigantesca. Lá, uma longa mesa aguardava, cercada de criaturas peculiares. 

C-Coelho branco de cartola e relógio liderava o banquete. Ao lado, uma zebra de chapéu de palhaço exibia o seu estilo extravagante. Um caracol gigante com casaco multicolorido pilotava um volante imaginário, enquanto o elefante Jumbo, com um laço impecável no pescoço, se ajeitava na cadeira. A abelha, com suas riscas amarelo-pretas, lambuzava-se de mel sem pudor. 

Por fim, um crocodilo com dentes afiados e um smoking brilhante completava a mesa. No centro da festa, um peru assado, com uma laranja na boca, que decorava a mesa. Estranho. Animais comendo outro animal? 

D-De repente, do meio das ervas altas, surgiu a lagarta a fumar um cigarro, seguida do gato, agora com um sorriso peculiar em forma de queijo redondo e bocados de presunto nos dentes brancos. O coelho  correu para casa em busca de mais cadeiras, garantindo que todos pudessem desfrutar daquele excêntrico jantar de gala. Com cadeiras extras, a mesa ficou ainda mais caótica. O gato, com o seu riso, acomodou-se ao lado do peru assado, observando tudo com aquele ar enigmático de quem sabe mais do que diz. A lagarta, sempre despreocupada, deu uma longa tragada no cigarro e declarou: 

— Que cena estranha... mas apetitosa. Vamos comer ou filosofar? 

Todos riram, exceto o peru, que permanecia em silêncio. A zebra ajustou o chapéu de palhaço, no alto da sua cabeça e orelhas e respondeu: 

— Aqui não se come. Aqui se imagina comer. 

A abelha, lambendo os dedos melados, levantou a mão: 

— Mas eu comi. 

O crocodilo, ajeitando o smoking, lançou um olhar severo: 

— Abelha, não estragues a lógica do jantar. 

E-Enquanto isso, a menina Alice, perdida e confusa, perguntou: 

— Mas o que faço aqui? Vocês são reais? A lagarta riu e soltou uma baforada de fumaça que tomou o ar. 

— Real é o que acreditas que é. Este jantar é tão real quanto o desejo do gato por queijo ou presunto. O gato ronronou, encantado com a referência. Pegou um pedaço imaginário de queijo e o devorou com satisfação teatral. No meio da confusão, o coelho branco consultou o seu relógio e exclamou: 

— Estamos atrasados! Precisamos brindar! 

Com as taças imaginárias erguidas, todos brindaram a algo que ninguém nomeou. A menina, ainda confusa, percebeu que o peru assado havia desaparecido, substituído por um prato vazio. O gato sorriu largamente, lambendo os bigodes. E assim, entre risadas, a filosofia e um jantar que não era bem um jantar, todos desapareceram um por um, deixando a mesa vazia. 

A menina esfregou os olhos e viu-se novamente no jardim, segurando uma folha colada à testa. Ao longe, o gato desaparecia entre as árvores, com um sorriso de queijo no seu rosto, como se tudo não tivesse passado de um sonho.

24 de novembro de 2024

Um Vendaval de Problemas

Ontem foi uma tarde perfeita à beira do rio no Montijo, com boa companhia e um céu limpo. Hoje? Um completo desastre. Era uma daquelas manhãs em que parecia que o universo tinha acordado de mau-humor e decidido que eu seria o alvo. Nada me corria bem.

Tentava limpar as folhas da entrada, mas o vento parecia ter outros planos. Cada varrida minha transformava-se numa piada para a tempestade, que insistia em devolver as folhas à porta com uma precisão quase provocadora.

— Estou a varrer ou a dançar salsa? — resmunguei, enquanto o monte de folhas ignorava-me triunfantemente.

Foi nesse momento que Dona Domingas apareceu. A vizinha, envolta num chapéu de chuva extravagante, parecia ter saído diretamente de um filme de época.

— Não sabia que tinha talento para aeróbica na chuva! — gritou ela, entre gargalhadas.

Nem tive tempo de responder. Uma folha rebelde decidiu colar-se à minha testa, como se quisesse marcar território. Para completar o ‘show’, Ginger, o meu gato alaranjado e com a pose de um verdadeiro lorde, decidiu pisar em todas as poças possíveis. Encharcado e indignado, correu para dentro de casa, deixando pegadas pela cozinha.

No auge do caos, entre vento descontrolado e chuva teimosa, senti um estalo. Ai! Caetano! Era como se tivesse um torcicolo na anca. Soltei um grito de dor, larguei a vassoura, que foi parar aos pés do meu companheiro.

— Boa tarde… ou seria bom espetáculo? — disse ele, segurando-me enquanto se esforçava para não rir.

Dei-lhe um sorriso forçado e arrastei-me para dentro, mancando como uma velha. Ginger olhou-me do sofá com o desprezo altivo de quem claramente nunca teve de varrer folhas.

Suspirei, olhei para o céu cinzento e jurei, nunca mais fazer isto durante uma tempestade.

E ali fiquei, no sofá, com dores, a Loira encostada a mim e Ginger satisfeito, ronronando como se fosse o rei do caos. Afinal, ele parecia ser o único a desfrutar do dia.

19 de novembro de 2024

Amarrar o burro

Luz das letras

1.    A céu aberto: ao ar livre

2.    Abandonar o barco: desistir de uma situação difícil

3.    Abotoar o paletó: morrer

4.    Abrir mão de alguma coisa: renunciar alguma coisa

5.    Abrir o coração: desabafar, declarar-se sinceramente

6.    Abrir o jogo: denunciar ou revelar detalhes

7.    Abrir os olhos a alguém: alertar ou convencer alguém de alguma coisa

8.    Acabar em pizza: quando uma situação não resolvida acaba encerrada (especialmente em casos de corrupção, quando ninguém é punido)

9.    Acertar na lata: acertar com precisão, adivinhar de primeira

10. Acertar na mosca: acertar com precisão, adivinhar de primeira

11. Adoçar a boca: conseguir um favor de alguém com elogios

12. Agarrar com unhas e dentes: agir de forma extrema para não perder algo ou alguém

13. Agora é que são elas: momento em que começa a dificuldade

14. Água que passarinho não bebe: pinga ou bebida alcoólica

15. Amarrar o burro: descansar ou se comprometer romanticamente com alguém. 

Uma frase e um mini-conto de 300 palavras:

 

Na vila de Patacas Altas, a rotina de Zé Pancada e o seu burro era o principal entretenimento. Chicote era um verdadeiro Houdini de quatro patas, capaz de se desamarrar de qualquer corda. Sempre que Zé entrava no bar para “uma conversa rápida”, que nunca, o burro escapava, causando uma série de desastres hilariantes. 

Certa tarde, decidido a vencer o burro, Zé amarrou-o com uma corda “indestrutível” ao poste da praça e entrou no bar. “Hoje ele não me engana!”, declarou, confiante. Os amigos riram, pois sabiam como aquilo ia acabar. E acabou, bastou cinco minutos. Chicote já caminhava pela vila com a corda ao pescoço, como se desfilasse com uma gravata de gala, pronto para sua habitual ronda de travessuras. 

Primeiro, invadiu a banca de frutas de Dona Cotinha, devorou três maçãs e empurrou o tabuleiro, espalhando frutas pela rua. “Ó animal desavergonhado!”, gritou Cotinha, sacudindo um pepino na direção dele. Depois, Chicote foi à barbearia do Seu Rufino. Parou em frente ao espelho e balançou a cabeça como se pedisse um corte moderno. “Sai daqui, burro vaidoso! Não tenho tesouras para crinas!”, gritou Rufino, enquanto o burro relinchava, claramente divertido. 

Mas a apoteose foi na igreja. O padre Jeremias, no auge de um sermão sobre paciência, ficou boquiaberto quando Chicote subiu ao altar e começou a mastigar as flores decorativas. “Irmãos, as provações do Senhor vêm em muitas formas. Hoje… vieram com patas!”, suspirou Jeremias, enquanto os fiéis tentavam conter o riso. 

Quando Zé saiu do bar, a vila inteira estava à caça do burro. “Zé Pancada, amarra este demónio como deve ser!”, gritou Cotinha, lançando-lhe uma maçã murcha. Com um relinchar triunfante, voltou calmamente ao poste, como se nada tivesse acontecido. 
Nunca subestime um burro com talento. Em Patacas Altas, Chicote era a verdadeira estrela.

17 de novembro de 2024

Domingo Alegre


No mínimo, duas vezes por ano, celebramos o tradicional "Domingo Alegre," uma tradição de Moçambique. É um encontro entre várias famílias e amigos, misturando idades, as origens e as cores, numa convivência recheada de boas comidas, de conversas longas e de jogos: sueca, matraquilhos, Carrom e brincadeiras de crianças. Era sempre um dia muito especial, cheio de energia e de recordações.

Este ano, a Tia Rita marcou um almoço antecipado de Natal para um domingo. “Não podemos mudar de dia!”, decretou ela, prática e inflexível, nada normal. Com cerca de 26 pessoas confirmadas, escolhemos um restaurante espaçoso, ideal para as nossas festas prolongadas, cheias de risadas, histórias e boa disposição.

O grande dia chegou. “Está marcado para as 12h, não se atrasem!”, avisou a tia Rita. Como de costume, os primeiros a chegar acomodaram-se no recinto da entrada, abrigadas do vento frio. Entrei logo depois, cumprimentando as tias, as primas e as amigas, até que uma voz inesperada ecoou: “Finalmente num almoço de família!”

O coração deu um saltinho. Era a voz da minha mana. Mas... não podia ser. Ela está em Itália! E já tinha feito uma surpresa nos meus 50 anos. Convenci-me de que imaginava coisas. Até que me virei e ouvi um animado grito de: “Surpresa!”

Era ela, de verdade! Com o seu traje colorido, um sorriso radiante e a alegria de sempre. O salão explodiu em abraços e exclamações de surpresa, a medida que chegava mais pessoas. Não era comum ela estar cá fora de época, geralmente, só vinha no verão ou no Natal, que este ano irá estar presente.

O almoço ganhou um brilho especial. Entre os pratos deliciosos e as bebidas, as conversas fluíram, memórias foram compartilhadas e, por alguns momentos, parecia que o tempo parou, apenas para nos lembrar do quão essencial é estar junto de quem amamos.

16 de novembro de 2024

Rato e Rei!

 

O raio do rápido rato roeu, raivoso, a rolha redonda da garrafa de rum do Roberto, o rei rigoroso da Rússia. Roubou as rosas raras, rasgou as rendas reluzentes e raptou três roscas recheadas sem deixar rastos.

O rei, revoltado, resmungou: "Ratos rabugentos roubaram as riquezas do meu reino resplandecente! Reúnam rapidamente os reforços, recuperem o que restou e reduzam os ratos a meras recordações!"
Reis, rainhas e rústicos reagiram, rumores rodopiavam pelos recantos: "Ratos raros, reais rivais, reinavam no reino roubado!"
Enquanto isso, o rato regozijava, rindo em ruas recônditas, rolando sobre relíquias roubadas, rodeado de riquezas e rosquinhas recheadas.
No horizonte, a revolução rugia e o rei, rígido, retomava o reino: "Rendição ou rebelião?"
O rato, rápido e resoluto, respondeu com riso: "Reinar é uma arte e roubar é o meu ritual."
O rei Roberto, resoluto, reuniu os seus reforços com um rugido retumbante. Os soldados, com reluzentes armaduras revestidas, rasgavam trilhos por riachos e ravinas, rastreando o rato rebelde. Pelos recantos do reino, relatos ressurgiam: "O rato refugia-se em recifes remotos, rodeado de riquezas roubadas!"
Enquanto isso, o rato, regendo a sua resistência, rodeava-se de ratos renegados. "Recuperem os reforços! Rastejem, procurem, mas não retrocedam!" — Ordenava, rosnando. Ratos robustos revezavam-se, recarregando reservas de rosquinhas e rum.
O confronto culminou no Riacho Rubro, onde o rato enfrentou o rei. Roberto, com a realeza reunida, retumbou: "Rato, rastejaste rumo à ruína! Rende-te ou receba a justiça do reino!"
Mas o rato, risonho, respondeu: "Render-me? Ridículo! Resisti, roguei e resplandeço! O meu reinado reluz com riqueza e rosquinhas!"
Uma reviravolta surpreendente ocorreu: Roberto, reconhecendo a resiliência do rato, propôs reconciliação. "Reine comigo. Ratos e reis podem reescrever revoluções."
E assim, reinos reunidos, ratos e homens repartiram responsabilidades, criando uma era radiante de respeito e renascimento.

13 de novembro de 2024

Enumeração

Parto amanhã rumo ao Santiago de Compostela, onde as melhores aventuras acontecem.

LEVO: 

Uma bússola pequena para encontrar caminhos secretos (🧭para orientação);

Um mapa real para descobrir estradas escondidas (me diz onde estou e para onde vou);

Duas botas impermeáveis para alguns terrenos imprevisíveis (uma em cada pé);

Duas cordas resistentes para atravessar abismos inclinados (um para descer, outro para subir);

Três livros antigos para desvendar enigmas ocultos (um que conta, outro que nega e outro confirma);

Quatro lanternas luminosas para noites mais escuras (para cada ponto cardeal);

Cinco frascos mágicos para curar ferimentos estranhos (mazelas com olhos, nariz, ouvidos, coração e pés);

Seis amuletos protectores para espantar criaturas ferozes (para seis bichos);

Sete lápis encantados para enviar mensagens necessárias (as cores do arco-íris).

12 de novembro de 2024

Sozinho sem saida

De noite, o silêncio no hospital era quase absoluto, interrompido pelo som fraco das máquinas que pulsavam ritmadamente, como as batidas de um coração distante.
João, de pele pálida, estava sozinho, no fim de um corredor vazio e mal iluminado. Os médicos e enfermeiros tinham desaparecido, e cada tentativa de gritar era abafada pela dor crescente na sua garganta.
Do quarto vizinho, ouviam-se sons. Levou um instante até perceber que se moviam em círculos, num ritmo irregular. Um aperto tomou o peito de João ao entender que não eram passos humanos. Ouvia-se um arrastar lento e denso, como algo viscoso a mover-se.
Ele fechou os olhos, mas a porta rangeu-se e um cheiro forte a mofo e decomposição invadiu o ar. Algo estava ali, à espreita, invisível e intensamente presente, e enquanto o horror se aproximava, sentiu que o seu próprio fim estava perto.
#desafiofdt2024 #terroremportugal
#laritacaramela

A pedido pela continuação: 

A figura que se imergiu na penumbra era alta, esquelética, envolta numa aura de trevas que parecia devorar a luz fraca do corredor. O cheiro de decomposição tornou-se insuportável, queimando os sentidos de João. Ele tentou mover-se, mas o corpo parecia preso, como se a própria cama o segurasse.

O arrastar viscoso cessou e um silêncio aterrador tomou conta do quarto. De repente, uma mão fria como gelo pousou no peito de João. Não havia força, mas um peso imenso o dominava, como se estivesse sendo puxado para fora de si. O pulsar das máquinas ficou mais alto, distorcido, misturando-se com um sussurro incompreensível.

João tentou lutar, mas o olhar da criatura, vazio e interminável, encontrou o seu. Tudo congelou. Quando o som cessou, restava apenas a cama vazia. O corredor permaneceu deserto, excepto pelo eco de algo se arrastando, à procura da próxima vítima.

11 de novembro de 2024

O Mosaico do Jardim da Estrela

No Jardim da Estrela, o tempo parecia andar muito devagar. As crianças de vários, tamanhos, cores e defeitos corriam atrás de bolas coloridas enquanto os idosos, sob a sombra das árvores, disputavam partidas de dominó com a paciência de quem sabe aproveitar a vida. Mas o que tornava aquele espaço verdadeiramente especial não era a tranquilidade nem os risos infantis, mas como a diversidade se entrelaçava em cada canto, como os ramos de uma árvore que crescem por todos os lados, mas pertencem ao mesmo tronco.

A Clara, uma menina cega de olhos curiosos, tornara-se a guia sensorial de Sofia, que usava uma cadeira de rodas e adorava explorar o mundo com os sentidos que podia usar. Naquele dia, Clara segurava uma flor entre os dedos delicados e dizia com convicção: “Esta é lavanda. Cheira como se o mundo parasse por um segundo, não achas?” Sofia aspirava profundamente e respondia com um sorriso: “Sim, mas não é só o cheiro. Ouve como o vento parece dançar entre os ramos. É como uma música!” Ambas de 12 anos e sentiam a luz das flores a irradiarem nas mãos. E na falta dum sentido sensorial, apuravam-se os outros.

O Miguel, um rapaz que comunicava por linguagem gestual, estava num debate acalorado com o Lucas, um menino com síndrome de Down que adorava as histórias fantásticas. As mãos de Miguel moviam-se rapidamente e Lucas, mesmo sem entender todos os sinais, replicava com entusiasmo: “E depois o dragão voou tão alto que desapareceu nas nuvens!” Ana, uma jovem que aprendera linguagem gestual, estava ali, para unir os dois mundos, traduzia com uma alegria que contagiava.

Nos sábados, o bairro reuniu-se para criar algo monumental. Um mosaico que representasse a praça e as suas pessoas. As peças de cerâmica quebradas espalhavam-se pelo chão, cada uma com uma cor ou textura distinta. Sara, uma jovem com dificuldades motoras, mas com um talento único para a pintura, orientava quem não sabia por onde começar. “A arte é sobre o que sentimos. Não há erros, só emoção.”, dizia. Hugo, que usava os aparelhos auditivos, liderava com um carisma que fazia com que, os mais tímidos participassem.

Quando o mosaico ficou pronto, era mais do que uma obra de arte. Era um reflexo de vidas interligadas, de histórias compartilhadas. Clara passou os dedos pelas peças ásperas e murmurou: “Sinto cada um de nós aqui. Como se estivéssemos juntos, mesmo quando não estamos.”

Naquele dia, ninguém falou em diferenças. Elas não eram barreiras, eram pontes. O Jardim da Estrela tornou-se um símbolo de união, onde todos aprenderam que a verdadeira força de uma comunidade está na capacidade de ouvir, acolher e criar juntos.

Somos todos iguais e diferentes ao menos tempo. 

(Tema do mês de Novembro: Inclusão e Diversidade da Escrita)

7 de novembro de 2024

Radar Humano

Ninguém sabia muito bem por quê. Talvez fosse uma questão genética, ou porque a natureza decidiu ser criativa naquele dia.

Desde sempre, Rita viveu sem orelhas e curiosamente, nunca se importou. Na verdade, ela até achava engraçado e fazia piadas sobre isso com naturalidade. "A falta das orelhas é minha superpotência", costumava dizer. Sempre com um sorriso na cara, como se tivesse descoberto um segredo do universo.

Enquanto as crianças perguntavam onde haviam ido parar as orelhas, Rita se divertia, a observar as tentativas engraçadas dos seus amigos, de adivinhar o motivo. "Será que ela foi feita por alienígenas? Ou será que foi a um salão de beleza onde tiraram as orelhas para dar aquele acabamento especial?", brincavam. 

Ela ria tanto dessas suposições que chegava a ter um acesso de gargalhadas incontroláveis. “Quem sabe? Só sei que não tenho que me preocupar com a falta de protetor auricular num dia de ventania!”, dizia. Dando uma risada contagiante que fazia todos caírem na gargalhada.

Mas, havia momentos em que a ausência de orelhas não era tão vantajosa. Quando estava na escola, Rita jamais escapava dos castigos. "Isso é para escutares melhor!", diziam, sempre a puxar as orelhas das crianças que aprontavam alguma travessura.

Ficava com a expressão confusa, enquanto os seus amigos riam e davam-lhe palmadinhas. 

Cresceu com uma habilidade extraordinária de ouvir, apesar da ausência. Os seus amigos a chamavam de "radar humano", porque ela conseguia escutar absolutamente tudo. Não só ouvia as conversas a quilómetros de distância, mas também conseguia identificar o que as pessoas pensavam, baseando-se apenas nos gestos e expressões faciais.

E assim, sem orelhas, viveu uma vida cheia de risos, os segredos revelados e o incrível poder de escutar o mundo de uma maneira que ninguém mais podia. 

Afinal, quem precisa de orelhas ao ter o coração tão afinado?

4 de novembro de 2024

Carro, chuva, dia e médios!


 Em carros automáticos, com luz do dia, os médios, não se acedem. Pessoas, Mulheres, acedem os médios. 

Sejam vistos!

3 de novembro de 2024

Deseducando com as Mãos

 

 As mãos da mãe Júlia, marcadas pelo tempo e pelas responsabilidades, eram firmes, mas guardavam uma suavidade intrínseca, aquela que somente o amor incondicional consegue preservar. Elas seguravam um frágil barco de papel com uma precisão cuidadosa, consciente de que, apesar da sua leveza, carregava os sonhos preciosos. Cada movimento era impregnado de ternura, como se soubesse que aquele pequeno objeto era mais do que papel: era a chave para um mundo que ela mesma ajudava a criar.

As mãos do filho João, pequenas, inquietas e cheias de uma energia vibrante, tocavam no barco com uma ansiedade de quem está a desvendar os mistérios do universo pela primeira vez. O toque infantil, desajeitado, mas cheio de vida, dava forma a novas aventuras a cada instante. Os seus dedos percorriam as dobras do papel como se explorassem um mapa desconhecido, em cada linha era um caminho a seguir, um destino a conquistar.

Entre as mãos da mãe e do filho, o barco de papel transformava-se. Deixava de ser apenas uma dobradura simples e tornava-se um navio corajoso, comandado por um capitão audaz e muitos marinheiros fortes e enérgicos, sempre prontos para enfrentarem os oceanos da imaginação.

Juntos, a mãe e filho, através do toque, criavam um momento de profunda cumplicidade. As suas mãos não só moldavam o barco, mas também o futuro, ia a tecer uma narrativa conjunta onde ambos eram protagonistas de aventuras que ultrapassavam a realidade.

Aquele contacto, possua o seguro e o inocente, entre o conhecido e o inexplorado, era um compromisso. Uma promessa de proteção, de descoberta, de apoio mútuo. As mãos, naquela comunhão silenciosa, tinham o poder de transformar o banal em extraordinário, de educar e, ao mesmo tempo, deseducar, libertando-se das regras para criar um mundo, onde o impossível se tornava possível.