Vivemos um tempo em que as pessoas deixaram de conversar. Gritam. Gritam porque acreditam que ouvir é fraqueza, que silenciar é submissão, que a pressa de se impor é mais importante do que compreender. E quando gritam, a minha raiva cresce. Cresce até se tornar quase física, um peso que empurra o peito, enriquece os músculos, prende a respiração. Cresce tanto que deixo de conseguir argumentar, deixo de conseguir explicar.
O grito não é diálogo, é parede. O grito não abre caminho, fecha. O grito sufoca, abafa, apaga. E eu, diante dele, calo. Não porque me faltem palavras, mas porque o ruído rouba a força das palavras, como se cada sílaba se dissolvesse antes de alcançar o outro.
Cada palavra atravessa o outro como flecha certeira, mas ninguém percebe que a violência não está apenas no som, está na ausência de atenção. Já não perguntam. Já não esperam. Já não acolhem a palavra do outro. Olham, mas não veem. Ouvem, mas não compreendem.
Cada opinião é lançada como projétil, convicta de que eu estou errada, convicta de que só ela sabe, de que a sua visão é lei, de que a sua verdade é mais verdadeira do que qualquer outra. E nesse campo de batalha, ninguém acolhe. Todos disparam.
O “eu sei” tornou-se mantra, a armadura do ego, a proteção do narcisismo que transforma a vida em palco. O “eu sei” é o que define a relação com o outro. O “eu sei” é o que destrói qualquer possibilidade de encontro. Achismo que se confunde com verdade. Certezas que se apresentam como leis eternas. Enquanto a paciência, a empatia, a atenção, foram arrastadas para um poço profundo, de onde já ninguém consegue resgatar a sua voz.
Sinto raiva. Uma raiva que arde silenciosa, mas constante, que me sobe no peito como fumo espesso de incêndio. A raiva que não explode em grito, porque gritar é continuar o ciclo, é ser cúmplice da estupidez que se orgulha de existir. Raiva que fica presa na garganta, que queima em silêncio, mas não se cala. E penso muitas vezes, se essa raiva pudesse, queimava tudo o que está errado, tudo o que se sustenta na arrogância, na inveja, na competição velada, na necessidade de se sentir superior mesmo quando se é vazio.
Mas sei que não se apaga assim, que não há fogo suficientemente grande para limpar a estupidez, a pressa, a arrogância, a inveja que corre nas veias das famílias, das empresas, das redes sociais, da política. Sinto raiva de quem se impõe sem acolher, de quem julga sem conhecer, de quem fala sem tempo de esperar, de quem sorri por fora enquanto deseja o fracasso do outro, de quem celebra conquistas alheias com um misto de desdém e ciúme silencioso.
Por vezes, essa raiva vira tristeza. Outras vezes, ansiedade. Ansiedade de querer mudar tantas coisas: na minha vida, na vida do país, na vida de todos nós. Ansiedade de querer cuidar melhor da minha saúde, de respirar um pouco mais fundo, de viver um pouco melhor, de não me deixar consumir pelo veneno que o narcisismo e a inveja espalham. Mas só os ricos podem ser ricos. Só os ricos têm direito à saúde plena, ao descanso, ao conforto, à liberdade de tempo.
Os outros… os outros aguentam. Aguentam com o que têm, com o pouco que sobra, com a vida que se arrasta entre compromissos, dívidas, falsas alegrias, expectativas impostas. E a ansiedade pesa, porque sei que não é só comigo, é com todos os que não nasceram no lugar certo, não herdaram o suficiente, não têm o privilégio de respirar sem medo do fim do mês, sem sentir o olhar enviesado de quem se julga superior, de quem alimenta ressentimentos e inveja até do que não possui.
Tudo à volta no país: serras em cinza, vales ardidos, animais em fuga, casas destruídas. Não é só a floresta que arde, é a própria forma como vivemos. Porque cada incêndio não é apenas tragédia natural, é também injustiça, negligência, ganância. Muitas vezes são mãos humanas que acendem o fósforo, mãos que transformam o solo fértil em deserto, mãos que cultivam o ódio disfarçado de opinião, mãos que apontam e sorriem enquanto o outro cai. E ninguém responde. Ninguém é responsabilizado. Ninguém paga.
Que país é este onde se permite que o fogo repita todos os verões o mesmo funeral? Onde se enterram árvores centenárias sem uma lágrima, onde se transformam memórias em cinza, onde se deixa o ar pesar de fumo e de morte? Que sociedade é esta em que cada gesto é calculado para aparecer, para ser invejado, para esmagar o outro, onde o narcisismo é moeda corrente e a inveja, sombra constante, se infiltra nos sorrisos, nas redes, nas reuniões, nos jantares familiares?
A raiva que sinto é a mesma, de quem fala sem ouvir, de quem destrói sem cuidar, de quem se afirma dono de verdades enquanto tudo arde. E eu pergunto: até quando? Até quando vamos deixar que o fogo consuma as serras e o ruído consuma as relações? Até quando vamos preferir o grito ao diálogo, o julgamento à escuta, a pressa ao cuidado, a competição à empatia, o narcisismo à humanidade?
Se a minha voz tivesse apenas uma oportunidade de ser ouvida, ela não pediria silêncio para falar. Ela pediria silêncio para acolher. Para ouvir com atenção, para acolher o outro antes de disparar certezas. Para abrir o ouvido e o coração sem pressa, sem julgamento, sem a obsessão de ter razão, sem inveja do que o outro possui, sem tentar reduzir o valor alheio para se sentir maior.
Porque escutar é resistência. Escutar é gesto político silencioso num mundo que se orgulha de gritar. Escutar é abdicar de protagonismo, abrir espaço, permitir que o outro exista em plenitude, com sua dor, com sua alegria, com suas verdades.
E é isso que falta: espaço e tempo para o outro. A velocidade da vida moderna destruiu a escuta, transformou o diálogo em competição, amplificou a inveja, espalhou o narcisismo, fez do olhar para o outro motivo de comparação, de ressentimento, de julgamento.
A tecnologia multiplicou o ruído, multiplicou o achismo, acelerou o julgamento, transformou cada rede social em arena de vaidade e disputa. Um clique e todos já sabem, todos já julgam, todos já disparam. Mas ninguém espera. Ninguém compreende. Ninguém acolhe.
Falar sem gritar é possível. Dizer sem esmagar é possível. Ter voz sem apagar a do outro é possível. O problema é que já ninguém acredita nisso. Confundem firmeza com agressão, confundem verdade com arrogância, confundem opinião com lei. E nesse engano, perdemo-nos todos.
Se a minha voz tivesse apenas esta hipótese, eu diria: escutem.
Não para vencer, não para provar que estão certos, não para sobrepor-se. Escutem para compreender, escutem para criar pontes, escutem para viver em humanidade. Cada palavra não acolhida é ponte que desaba, cada silêncio não respeitado é raiz arrancada do solo comum, cada gesto de rapidez é uma ferida aberta no que nos liga reciprocamente.
E tu que me ouves agora: quando foi a última vez que acolheste a palavra de alguém sem pressa? Quando foi a última vez que deste espaço a alguém para existir na tua atenção completa, sem invejar, sem competir, sem julgar? Quantas vezes deixámos o outro morrer de invisibilidade, porque o ruído é mais confortável que o silêncio, porque o narcisismo nos convence que só a nossa voz importa, só o nosso olhar vale, só o nosso tempo é urgente?
Se a minha voz tivesse apenas esta ocasião, diria: escutem.
Escutem como quem cuida de uma terra queimada, como quem rega um solo ressequido, como quem protege a raiz para voltar a florescer.
Escutem como quem se recusa a deixar o país arder na floresta, nas ruas, nas relações humanas.
Escutem como quem sabe que só do silêncio nasce o entendimento.
Escutem como quem acredita que da cinza ainda pode nascer vida.
Escutem, ainda há vida no silêncio que ninguém atende.
Escutem, porque enquanto ouvirmos de verdade, mesmo que devagar, mesmo que sem pressa, mesmo que sem inveja e sem vaidade, talvez possamos, finalmente, fazer o mundo parar de arder, dentro e fora de nós.
Escutar é o gesto que, ao ser regado, pode ainda florescer.
“Escutar é talvez o mais raro e mais puro dos gestos humanos.” — Simone Weil

Comentários