O velho solar dos Monteiro, encravado entre nevoeiros e silêncios no vale de Vilar Frio, permaneceu vazio durante décadas. Quando a Clara o herdou, mal conhecia o apelido que agora carregava. Aceitou as chaves sem cerimónia, sem suspeitar que não se herdavam apenas paredes e telhados, mas também o que nelas vive ou morre.
Na primeira noite, o ar adensou-se. As tábuas gemiam com o tempo e os espelhos antigos, pareciam respirar. Clara explorava os corredores como se os pés não lhe pertencessem, atraída por uma força que não compreendia. Encontrou, enfim, o sótão. Uma escada íngreme, uma porta que se abriu com um estalido seco e um frio que não vinha de fora.
Lá dentro, entre móveis cobertos e retratos de olhos fundos, achou um espelho oval com a moldura entalhada em espinhos. O seu reflexo devolveu-lhe o rosto, mas não os olhos. Neles dançava outra coisa, uma presença faminta. A imagem sorriu-lhe antes de ela fazê-lo.
Desde essa noite, Clara já não dormia. Acordava com as unhas cobertas de terra, os pés molhados de orvalho, os cães da aldeia a uivarem sem motivo. À medida que os dias se arrastavam, a casa parecia mais viva. Escutava-se um riso infantil nos corredores e portas abriam-se sozinhas para quartos que nunca visitara.
No sétimo dia, voltou ao sótão. O espelho aguardava e desta vez, a imagem não a imitava. Gritou, mas a voz perdeu-se num eco que não era dela. O reflexo estendeu a mão e Clara sentiu os dedos gelados tocarem-lhe a alma. Tentou recuar, mas os pés já estavam dentro do vidro. Foi sugada, como se o mundo real fosse apenas uma película fina.
Agora, quando alguém visita o solar, diz-se que uma mulher vagueia pelas janelas, a olhar para fora com olhos que não piscam. A herança não era a casa. Era o espelho. E ele ainda espera... por mais sangue do nome Monteiro.