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Reencontro da criança

Estava em Sintra para um almoço de colegas de trabalho. Levei uma sobremesa de natas e uma entrada de atum feita por mim. Entrei numa vivenda com um belo jardim e uns enormes cães brincalhões e velhotes.

Entrei e havia crianças por todo o lado, a brincar, a saltar, a correr, entravam e saiam dos castelos insufláveis. Uns corriam para aqui e para ali. Eu deliciei-me a vê-las a correr de um lado para o outro.

Cumprimentei alguns dos meus colegas que estavam de pé, de olhos postos nas suas crianças, principalmente as mães. Reparei que falavam de uma criança em especial e eu ouvi sem querer:

— “Ela é sossegada demais. Quando fala, não se percebe o que diz ou não se ouve bem. E parece não ouvir, pois não responde quando a chamamos. Por vezes faz coisas com esperteza como se fosse uma miúda normal… Não me parece autista, mas deve ter uma deficiência qualquer.”

Critiquei estas pessoas por julgarem de coisas que não sabem… ou não terem conhecimento e tudo passa a ser uma deficiência. Olhei para o lado em que elas estavam direcionadas.

Vi a tal criança a brincar com as bonecas, sozinha e sossegadamente. Menina de 5/6 anos, cabelos escuros, olhos castanhos e meigos. Tinha um vestido azul e meias. Olhei-a durante alguns segundos, depois sorri. Como se descobrisse algo dentro de mim, algo muito parecido comigo. Senti como se alguém estivesse a empurrar para enfrentar a situação. Fui ter com a menina…

Brinquei com ela durante um pouco mais de uma hora. Ríamos, sorríamos e saltávamos. Algumas crianças juntaram-se a nós. Eu era a criança crescida no meio dos miúdos, depois as crianças foram comer e alguns foram descansar depois do almoço. Olhei para o lado das mães e parecia que estavam com inveja. 

Soube que ela era a sobrinha de um dos meus colegas do departamento.

Dei uma pequena volta pelo jardim e encontrei uma pequena varanda, aonde se via uma linda paisagem colorida até à ponte, num céu azul-claro. Estava um dia lindo, límpido e sereno, para um sítio como Sintra.

Não parava de pensar nas coisas que aconteceram. Como se neste momento, o que está a acontecer estava destinado a acontecer, para que eu pudesse ajudar de alguma maneira ou por transmissão de experiências de vida, dando informações essenciais.

Senti que tinha voltado um tempo atrás e recordei a minha infância, os meus amiguinhos da escola. Que saudades. Eu era mais dada, mais sorridente e desligada. Não ouvia, mas só o meu sorriso largo e o ser palhocinha cativava as pessoas a brincarem comigo até hoje. Também os meus pais, diziam para não ligar aos comentários ou reações. Apenas ser a criança que era, alegre e divertida. As crianças têm uma maneira especial de chamar atenção, ainda mais as crianças com problemas. Aproveitar a inocência da criança para não sofrer neste mundo de críticas e maldade.

Às vezes, pergunto-me, o porquê de julgar? Para julgar, tal como nos tribunais, é preciso ter conhecimentos dos factos, de ambos os lados, da parte de quem vê e da outra parte. Assim, podemos julgar, o certo e o errado. Para mim, não foi fácil, mas ignorava. Mas muito tempo depois, soube que para as pessoas que estavam ao meu lado, também não foi fácil. Os pais eram adultos e aguentavam, lutavam pelos filhos. Os irmãos, em que a diferença de idade era pequena, também eram vistos como uma pessoa diferente, a serem criticados por outras crianças, mesmo por adultos. Acabam por não compreender ou entender o que se passa. E começam a querer afastar, mas não podem fazer por sermos irmãos, pertencerem à mesma família, acabam-se por ignorar os outros ou aguentarem-se.

Voltei para junto dos outros, aproveitei para comer qualquer coisa e beber algo. Fui ao encontro do Carlos. —  “Posso falar contigo, Carlos? – Abanou a cabeça, afirmando – Se pudesse ser só nós os dois.” Fomos lá para fora, ficamos perto dos cães que pediam festinhas e queriam sentir o toque das nossas mãos nos pêlos do dorso deles. Sentamos na calçada como dois miúdos.

— “Adorei a tua sobrinha, a Sofia. Assustadiça, mas muito brincalhona e risonha. Brincamos juntas, voltei a sentir a criança novamente… Também relembrei muitas coisas da minha vida...”

— “Eu reparei. Fiquei admirado pela maneira como te deste com ela, como brincavam e também pelo facto de estarem a rir. Ela distrai-se muito, perde-se muito… fecha-se muito como se soubesse que nós fazemos a diferença.” - Sorri.

— “Carlos, antes de mais, queria pedir-te um favor. Gostava que a nossa conversa ficasse entre nós. Não é que queira esquecer, mas é a minha história e eu conto a quem acho que deveria saber. E queria saber a tua opinião sincera sobre mim, não como colega, mas como amiga. Por exemplo, olhando-me, o que vês em mim.”

— “Bem, Larita é complicada. Acho-te uma miúda simpática, mas frágil ao mesmo tempo. Uma miúda rija… e acredito que és uma lutadora, uma sobrevivente deste mundo, por isso, que te admiro.” – Sorri-lhe.

— “Não, não é isso. Olhando-me, supostamente deves notar as cicatrizes e outras coisas. Donde achas que vieram?” - Perguntei-lhe numa maneira direta ao assunto.

— “De um triste e desafortunado acidente. Talvez quando eras pequena, talvez… não sei.” - Fiquei pensativa, não era a primeira pessoa a dizer-me isto.

— “O médico da Sofia disse-vos que ela tem um Síndrome, certo? Uma má formação na periferia de mandíbula, maxilo–facial, que afeta a caixa craniana, dentes, nariz...” - Ele olhou-me desconfiado.

— “Como sabes o nome da síndrome da Sofia? Lara, quero de alguma maneira ajudar a minha sobrinha, nem que seja saber brincar e comunicar com ela. Talvez pela linguagem gestual? Conheces alguém com a mesma síndrome?”.

Entretanto, aparece a Sofia a correr para os nossos lados por termos os cães. Deu um beijo ao tio e aproximou-se de mim.

— “Tia Lara” – Devagar e soletradamente – “Brinca comigo?” – Carlos olhava para ela de boca aberta muito admirado. E olhou-me como se eu tivesse feito algum milagre.

— “Sim, brinco, Sofia.” – Distraiu-se com alguma coisa com os cães. Toquei-lhe no ombro. “Vou acabar a conversa com o teu tio e já vou ter contigo, está bem?” – e sorri-lhe. Foi direto aos brinquedos, onde estavam as outras crianças a brincarem.

— “Ah… como... Lara...” - viu que tinha ido fazer o que lhe tinha dito. - “Ela falou tão bem contigo, percebi tudo o que ela disse. E ainda mais, ela ouviu-te o que tu falaste e foi fazer. Como é possível?"

— “Carlos, ela ainda é uma criança, ainda tem muito para aprender, mas com muita paciência, amor e um pouco de dedicação, fica…” – respirei um pouco mais devagar – “como eu, independente, lutadora e orgulhosa por ouvir. Falar de tudo e outras línguas também e quando isso não for possível, poder desenrascar da melhor maneira. Ser quem quiser, sem julgamentos e críticas de outros, com uma mente aberta, por saber das coisas com sinceridade.”.

— “Como tu? Como é possível? Tu falas bem, percebe-se quase tudo, às vezes, temos dificuldade em algumas palavras e em alguns dias é difícil de te perceber. Tu ouves-me, tu comunicas, és esperta, não te distrais… Não percebo, Lara. Explica-me.” – Disse-me.

— “Eu tenho o mesmo síndrome que a Sofia. Ninguém tem culpa, nem nós que nascemos assim, nem os pais. Dizem ser um acidente genético e dizem ser também um problema hereditário, nada está provado. Este Síndrome pode ter muitas variações, tanto eu como a Sofia, temos uma percentagem baixa.” – Mostrei a minha foto de pequena. – “Meus pais, sabendo que ninguém tem culpa, fizeram de tudo para que eu fosse tratada como uma criança normal, há trinta anos.

— “Tiveram muita paciência, quando era pequena, deram-me a mesma educação que o meu irmão, claro davam-me mais mimos e atenção. Arranjaram dinheiro, a muito custo, para as muitas operações que fiz, para a terapia da fala, para os aparelhos que me endireitaram os dentes e a possibilidade de ouvir. Tudo sem comparticipação de ninguém, nem do Estado e quase sempre fora de Portugal.” – Olhei para o Carlos para ver como reagia. – “Não deixes que falem da tua sobrinha como se ela fosse uma criança com deficiência, coisa que ela não é. Como podes ver, ela é bem esperta, aprende com facilidade e é um mimo de menina, perfeitamente normal. Somos perfeitamente normais com uma pequena diferença, distraímos com a falta de alguns dos sentidos, como o ouvido que provoca a falta do som, senão for corrigida. E hoje, com as novas tecnologias, tudo é possível. Posso ajudar-vos nisso”.

— “Sim, eu sei que é uma menina mimosa…” – As lágrimas vieram-lhe aos olhos. A Sofia, que se aproximava de novo de nós, reparou na face do tio e abraçou-lhe.

— “Tio, não chores. Também podes brincar connosco”.  - Sorri com a situação, fiquei feliz. O meu coração pulava de alegria, como se descobrisse que esta era a minha parte da missão. Também me vieram lágrimas aos olhos.

Brincamos, comemos e no fim do dia, estávamos todos estoirados, principalmente as crianças. Carlos chegou perto de mim e disse-me:

— “Lara, gostava de poder comunicar mais com a Sofia, como tu o fizeste em tão pouco tempo. E gostava que conhecesses a minha irmã e o meu cunhado.”.

— “Claro que sim, quando quiseres. E podes comunicar com ela, sempre que quiseres. É uma aprendizagem para ela e para quem a rodeia…, mas claro, a terapia da fala ajuda muito. Mas uma comunicação direta entre as pessoas da família que lhe querem bem é o ideal. Sofia!” – ela não me ligou. Toquei-lhe no ombro e ela olhou. “Sofia. Vou para casa, ver as minhas sobrinhas. Gostei muito de te conhecer. Dás-me um beijo e um abraço grande?” - Abraçou-me e deu-me um beijo.

— “Chim, como fizeste isso? É sempre complicado, ela dar beijos, seja a quem for”.

— “Ela não te ouve a chamares ou falares com ela assim sem mais nem menos. E a gritar também não resolve, só piora. Mas se ela sentir os teus toques de chamada, se falares com ela, de maneira a ela consiga ler-te os lábios, a chamada linguagem labial, ela responde-te. Experimenta.” – Ele experimentou. Fez o mesmo e perguntou-lhe, se podia dar-lhe um beijo e abraço. E ela respondeu-lhe. Ficou tão contente, que parecia mais criança que a Sofia.

Da porta, os pais da Sofia assistiam à situação e ficaram admirados com a proximidade tanto a minha como a do tio com a Sofia.

— “Lara, já te admirava muito pela pessoa que és, pelo trabalho que fazes, pela força que tens. Agora admiro-te ainda mais. Nem sei como te agradecer por teres caído nos meus braços para nos ajudares com a Sofia. Obrigado.” - E abraçou-me.

— “Já passamos por muito, em época de poucos recursos, mesmo nós que viemos da África. Mas fui criada e educada da mesma maneira, mas com um gesto aqui e ali. Custou, mas como podes ver, sou uma mulher perfeitamente normal. Trabalho sem problemas, tenho a minha própria casa, a minha independência e os meus amigos. Claro que tenho limitações, claro que tenho olhares e aprendi aceitá-las. Temos de saber falar e a sorrir, mudo a opinião de muitos. E se eu posso com as minhas informações, minhas experiências, ajudar mais pessoas, principalmente crianças com estes problemas, fico feliz. Neste momento, tenho o coração cheio de alegria.”

A caminho do carro e a dizer adeus, olhei para a Sofia e pensei: “Isto foi a realização de um sonho.”

De Lara Fernandes

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