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17 de dezembro de 2024

Espírito de Natal

Com alicate, ajeito a decoração,
No pinheiro brilham luzes de emoção.
Esponja de banho? Presente encantado,
Entre risadas, todos bem animados.

Um clip segura cartões de carinho,
Desejos sinceros no nosso caminho.
A pá recolhe os brilhantes do chão,
E o alho-francês perfuma o caldeirão.

Contos e cantorias rompem o silêncio,
A noite é festiva, amor tão intenso.
O espírito natalício aquece e floresce,
E a união da família jamais esmorece.

16 de dezembro de 2024

Um sábado bem-passado

A manhã começou serena, com um passeio tranquilo ao lado da minha cadela Loira, junto ao riacho. Um café e uma conversa leve, cheia de palavras soltas que dançavam no ar, com o meu companheiro.

Perto do meio-dia, peguei no carro e segui devagar a caminho do sarau da minha sobrinha mais nova, acompanhada pela mais velha. O sábado em Miraflores estava movimentado, com muitos carros estacionados em cima do passeio. Fiz o mesmo.

Sentámo-nos nos bancos de cimento, que desta vez, estavam cobertos com resguardos, afastando o frio. O tempo passou num instante, entre as entradas de grupos, das crianças aos mais velhos, muitas palmas, vídeos e brincadeiras. Quando tudo terminou, as meninas foram almoçar e preparar para a tarde. E caminhei até ao carro. Ao ver os papéis presos nos vidros dos outros carros, percebi, que já tinha uma multa. Bah!

Fiz uma pausa numa bomba de gasolina, onde tinha uma área de serviço e aproveitei para comprar uma sandes, um sumo e um café. Depois, segui caminho para o Palácio Baldaya. Entrei por trás, por uma entrada que parecia meio-abandonada. Mas, ao aproximar-me do palácio, senti-me deslumbrada, que lugar lindo, um verdadeiro tesouro escondido em Benfica!

À entrada, uma parede estava adornada com uma pintura enorme e vibrante. No jardim, uma árvore iluminada por luzes de Natal, havia mesas e cadeiras dispostas ao ar livre em que, criavam uma atmosfera encantadora.

Lá dentro, uma exposição de ‘puzzles’ capturou-me imediatamente. Era ali que iria acontecer o lançamento do livro. Mas as imagens dos ‘puzzles’ eram fascinantes nos mapas, monumentos icónicos, Los Angeles à noite, Lisboa, Taj Mahal, África, Sagrada Família, Torre Eiffel. E, claro, as impressionantes torres de Pisa e o Coliseu, em 3D. Como fã de ‘puzzles’, fiquei completamente fascinada.

Encontrei as minhas colegas e a formadora da minha formação de escrita, algumas delas conhecia apenas pelos “quadradinhos” das videochamadas das dinâmicas.

Estava quase a começar o evento, o lançamento do livro 'Sublime Querer'. Duas das três autoras, a Paula e a Cláudia, são pessoas que admiro profundamente, pelas histórias que tem, pelo carácter e pelas dinâmicas que fazem. A apresentação foi breve, mas cativante, despertando a vontade de mergulhar nos contos. Vou seguir o conselho: ler um conto por dia e dedicar vinte e quatro horas para reflectir.

Os autógrafos, as trocas de palavras com as colegas e as fotos tiradas pelo fotógrafo tornaram tudo ainda mais especial.

Antes de anoitecer, segui rumo à casa da minha mãe. Troquei de roupa, maquilhei-me e vesti um lindo casaco azul com pêlos. Quando a minha mãe e os meus tios chegaram, ficaram boquiabertos: “Uau! Estás linda, pareces uma fada madrinha!”

À noite, parti para a festa de Natal da empresa. Entre as conversas animadas, um copo de sangria, música da nossa época e dançar até os pés doerem, a noite fluiu como um sopro, cheia de alegria, convívio e descontração.

Cheguei a casa às três da manhã. Exausta, mas com o coração cheio.

15 de dezembro de 2024

Divisões

No silêncio da casa vazia, Sofia observava as rachaduras nas paredes, as linhas que pareciam se multiplicar a cada dia. Antes, eram quase invisíveis, um detalhe menor na paisagem do lar, mas agora cortavam o reboco em trajetos sinuosos e profundos, como cicatrizes que a casa se recusava a esconder.
O técnico garantira: “é um assentamento normal.” Sofia tentara acreditar, mas algo naqueles traços irregulares a fazia sentir-se observada. À noite, os sons aumentavam. Pequenos estalos ecoavam pela madeira e pelas paredes, formando um compasso que a inquietava. Todas as madrugadas, às 3h13, o relógio da sala parava, como se o tempo obedecesse a um ritual sinistro. Os objetos surgiam deslocados. Os livros invertidos, os quadros tortos, um vaso quebrado que ela não se lembrava de ter tocado. E havia os sussurros. Baixos, indistintos, mas inegáveis, pareciam sair de dentro das paredes. Naquela noite, os estalos vieram mais fortes. Sofia, já acostumada, pensou em ignorá-los, mas o som tornou-se um estrondo avassalador que fez o chão tremer. Correu para a sala e parou, aterrorizada, ao ver as rachaduras se alargando diante dos seus olhos. Elas não só cortavam a parede como a rasgavam. Em segundos, um vazio negro pulsante tomou o lugar do reboco. Sofia tentou gritar, mas a sua voz falhou. Um frio gelado percorreu o ambiente e uma sombra emergiu do vazio, movendo-se como um líquido denso. Paralisada, ouviu a fantasma sussurrar, com uma voz que parecia vir de dentro da sua própria mente: “Estás dividida como esta casa. Escolhe.” Sofia sabia do que se tratava. A dor das decisões adiadas, das escolhas que jamais teve coragem de fazer, materializava-se ali. Mas quando tentou responder, percebeu que já era tarde. A sombra avançou, envolvendo-a num abraço opressivo. Enquanto o vazio a consumia, os estalos cessaram. As rachaduras começaram a desaparecer, fechando-se como feridas que finalmente cicatrizavam. A casa silenciou e o relógio voltou a marcar o tempo. Para quem passava por ali, era apenas mais uma casa antiga, mas Sofia nunca mais foi vista, exceto por um vulto no reflexo das janelas à noite.

12 de dezembro de 2024

HISTÓRIA DAS RABANADAS

Pão Velho, Povo Sábio 

O que é uma rabanada? Não, a sério, vamos lá desmontar isto como deve ser. 
A rabanada é um monumento gastronómico ao génio humano, ou, mais concretamente, ao génio português. 
Enquanto o restito do mundo olha para pão duro e pensa: "Lixo..." O português olha para o mesmo pedaço de pão e diz: "Huummm... que bela sobremesa."

Isto diz muito sobre o valente e imortal povo lusitano. 
Somos um povo que transforma dificuldades em iguarias, o que não é surpreendente se considerarmos que também transformamos bacalhau seco em mil e uma receitas, numa verdadeira religião dedicada à gastronomia, e chamamos “sopa” a uma mistura de água, couves e meia batata.
Ora, as rabanadas nasceram, como tudo o que é bom em Portugal, da necessidade acutilante em sobreviver e ser feliz com o que a vida nos dá. 

Antigamente, nas nossas maravilhosas aldeias, pão era coisa séria. Fazia-se em grandes quantidades, porque ir ao forno comunitário dava muito trabalho. 
E o que não se comia fresco ficava para o dia seguinte, ou para o outro, ou para quando tivesse idade para votar. Deitar fora!? Nunca!!!
Pão velho fora é quase um crime em terras lusitanas. Assim, um daqueles portugueses mais audazes, num daqueles rasgos de criatividade que só a fome aguça, pensou: “E se mergulhasse este pão seco em leite quente, levasse a fritar e ainda apanhasse com açúcar e canela?” 

E pronto, assim nasceram as rabanadas.
Uma receita que é simultaneamente uma declaração de amor ao pão e uma afronta à dieta. Por isso se comem só no Natal, habitualmente...
A receita tradicional, que ainda hoje se faz pelas nossas aldeias, não mudou muito. Porque, sejamos honestos, quem é que quer mexer numa obra-prima? 

Primeiro, pega-se no pão de forma ou, idealmente, no pão caseiro, daqueles que parecem ter sido feitos com o esforço de um lenhador e o carinho de uma avó. 
Depois, cortam-se fatias generosas. Nada de modernices nem fosquices, nada de fatias finas. Aqui, a generosidade é uma virtude. 
A seguir, ferve-se o leite com casca de limão e um pau de canela, porque até o leite em Portugal tem direito a um pouco de luxuosidade. 

O pão mergulha no leite, mas só o suficiente para ficar ensopado, não queremos rabanadas a dissolverem-se como sonhos desfeitos pelo exagero. 
Passa-se pelo ovo batido e, então, vai à frigideira, onde encontra o seu destino glorioso: óleo a ferver. 
Uma vez douradas, as rabanadas apanham com uma mistura de açúcar e canela que até sorriem, porque o português acredita que o açúcar melhora qualquer coisa, incluindo o colesterol.

E pronto. As rabanadas estão prontas e a cozinha agora cheira a Natal, a aldeia, a infância, às nossas avós. 
Sentamo-nos à mesa, de faca e garfo em punho, para fazer justiça a esta obra de arte culinária. 
E enquanto as saboreamos, lembramo-nos de que somos um povo que, com pão velho e umas migalhas de imaginação, conseguiu criar um símbolo que traduz a arte de ser feliz com o que a vida nos oferece. 
Um símbolo que diz: “Não importa o quão duro esteja o pão da vida. Com açúcar e canela, tudo se aguenta.”

Texto: Manuel Muralhas

11 de dezembro de 2024

Dinamica Dezembro

Auguste Rodin foi um escultor francês do século XIX que revolucionou a escultura moderna. Para além das reconhecidas modulações das superfícies, de inspiração impressionista, também desenvolveu a escultura parcelar, ou seja, que não era a figura humana na totalidade ou o tradicional busto. "A mão de Deus"é um desses fantásticos objetos pétreos.
Também na literatura o discurso pode ser modelado a partir de uma parcela corporal, como as mãos, a mão solitária, quase sem sujeito.
DESAFIO:
- TEMA: a mão;
- TAREFA: escrever uma breve ficção apenas narrando uma mão;
- O sujeito da mão não pode ser descrito física ou psiquicamente;
- Uma mão tem 5 dedos, 5x9=45, 45+9=56; 56+5+6= 67; Usar 67 palavras exatas;
- O narrador é na primeira pessoa (eu), pode ser a mão ou o sujeito da mão, e fala com um destinatário que trata na segunda pessoa (tu);
- DESAFIO: não pode usar nenhuma letra T;

Eu deslizo por superfícies enrugadas,
os dedos dobrados e linhas marcadas de jornadas.
Na minha presença, segues o compasso da minha dança silenciosa.
Inclino-me, recolho as migalhas ou sombras esquecidas.
Exploro as asperezas e as doçuras suaves.
Com energia, desenho as formas no ar.
A cada sinal guardo memórias, nas dobras, uma narração.
Apenas olhas, mas nunca alcanças.
Eu avanço, deixando pegadas que logo se desfazem.

8 de dezembro de 2024

Intimidade

Na penumbra do quarto, Clara sentiu as mãos de Marco deslizando sobre a sua pele. O calor do toque era real demais para um sonho, mas uma sensação de frio pesado instalava-se no seu peito. A cada carícia parecia trazer uma lembrança, mas também um peso que ela não sabia nomear. Lentamente, abriu os olhos. Marco não estava ali. O espelho em frente reflectia o quarto vazio, excepto uma sombra alongada atrás dela. Virou-se bruscamente, mas encontrou apenas o silêncio opressivo. Um cheiro de terra molhada invadiu o ar, denso e férreo, trazendo as memórias que Clara há muito tentava enterrar. Marco estava morto havia um ano. O acidente, tão repentino quanto brutal, ainda a atormentava. Mas agora, o toque persistia, quente, familiar e, ao mesmo tempo, aterrador. A porta rangeu, fechando-se devagar e uma brisa gelada fez os cabelos de Clara erguerem-se. Uma voz sussurrou o seu nome, grave e distorcida, como se ecoasse do fundo de um poço. Era o timbre de Marco, mas algo nele soava muito errado. Não era apenas o desejo, mas algo desesperado e faminto. Clara apertou o peito, tentando afastar a sensação de sufocamento. As lágrimas escorriam pelo seu rosto. "Estou aqui," sussurrou a voz quebrada, cheia de dor e esperança. De repente, as mãos voltaram, mais fortes, quase possessivas, envolvendo-a como uma prisão invisível. O espelho trincou, estalando em linhas que pareciam feridas e a sombra cresceu a sua volta. Clara tentou se mover, mas seus membros estavam pesados, como se a escuridão ao redor a absorvesse. No reflexo estilhaçado, vislumbrou um pouco assustador, uns olhos brilhando com uma luz fria e um sorriso que não pertencia a Marco. A última coisa que Clara ouviu foi a voz dele murmurando perto do seu ouvido, num tom amargo, "Nunca te deixarei." O quarto mergulhou numa escuridão total e a casa permaneceu num total silêncio. Ela percebeu que jamais estaria sozinha. Na manhã seguinte, apenas o perfume de terra molhada permanecia no ar, enquanto o quarto parecia mais vazio do que nunca.

7 de dezembro de 2024

Postais Mortíferos

A trama de Postais Mortíferos acompanha o Detetive Jacob Kanon em sua incansável busca pelos assassinos de sua filha. No início, a narrativa leva o público a acreditar que há apenas um assassino em série à solta.

No entanto, à medida que a investigação avança, descobrimos que não se trata de um único assassino, mas de um par de serial killers. Sylvia e Mac Randolph, que inicialmente se apresentam como um casal, são na verdade irmãos, com um passado sombrio e uma obsessão doentia por arte.

Sylvia e Mac, sob identidades falsas, viajam pela Europa, assassinando casais que conhecem ao longo do caminho. Inspirados por sua formação em história da arte, eles recriam obras de arte famosas utilizando os corpos de suas vítimas.

Essas recriações macabras são enviadas em forma de postais, deixando um rastro de horror por onde passam.

A trama se intensifica quando Jacob finalmente desvenda a verdadeira identidade dos assassinos: Simon Jr. e Marina Haysmith. eles são irmãos adotivos que cresceram em um ambiente abusivo e que, ao se reencontrarem, transformaram seu trauma em violência.

O pai adotivo, Simon Haysmith Sr., os criou em meio à manipulação e abuso, o que plantou as sementes de sua loucura.

No clímax do filme, Jacob consegue atrair Sylvia e Mac para uma armadilha, utilizando a jornalista Dessie Lombard como isca. Após uma perseguição intensa, Sylvia e Mac capturam Dessie, planejando fazer dela sua última “obra de arte”.

No entanto, Jacob intervém a tempo, e durante o confronto, Simon Jr. é baleado ao tentar proteger sua irmã. Sylvia, desesperada, arrasta o irmão ferido para a neve, enquanto Jacob decide não persegui-los, acreditando que o ambiente inóspito se encarregará de seus destinos.

Embora Simon Jr. pareça ter sucumbido ao ferimento e ao frio, o filme deixa uma ponta solta ao mostrar que Marina sobreviveu. Em uma cena final perturbadora, ela faz uma ligação para seu pai, Simon Sr., revelando o que fez e mostrando que sua busca por vingança ainda não terminou.

Esse desfecho deixa a porta aberta para possíveis continuações ou simplesmente para que a audiência reflita sobre as consequências da violência e do abuso.

Postais Mortíferos é um thriller que prende a atenção do início ao fim, oferecendo um final que, apesar de trágico, traz um certo senso de justiça para o protagonista, Jacob Kanon.

No entanto, o fato de Marina ter sobrevivido sugere que os fantasmas do passado nunca desaparecem completamente e que a dor e o trauma podem gerar cicatrizes profundas e duradouras.

3 de dezembro de 2024

Ronrons e mimos!

Vou escrevendo um conto e a medida que for dizendo Stop muda de letra do
alfabeto: FHGI.

 F- Foram momentos pensativos. Tiro meio-dia de férias, há que pensar na saúde dos que nos querem bem. Fui para casa da minha mãe, abri a janela, para entrar o sol, fraquinho, mas que ainda tinha força para aquecer. E o cheiro das flores...
H- Há momentos em que tudo o que desejamos é aliviar o peso das dores alheias. Quando vemos alguém a sofrer, uma vontade urgente nos invade, arrancar-lhes os sorrisos, oferecer conforto e distrair das aflições, mesmo que por breves instantes. Tentamos contar anedotas, improvisar uma atmosfera leve e carregar o ambiente com um bom humor quase forçado, mas genuíno no afeto.
Hoje, o consolo veio pela cozinha. Preparei uma canja simples, mas feita com cuidado, uma galinha desfiada sem ossos, nadando em caldo quente com massa de cotovelos, aquele tipo que parece abraçar o paladar. Para o prato principal, um bife grelhado, não perfeito, mas honesto, tão firme quanto uma sola de sapato, acompanhado por umas batatas a murro, que liberaram o seu perfume terroso ao toque do azeite.
E, para adoçar o momento, veio o ápice: uma maçã reineta generosamente polvilhada com açúcar e canela, assada até a doçura derreter na boca.
Cada gesto, cada prato, foi pensado para ser a cereja no topo do bolo. Um pequeno ato de amor para a doentinha, uma tentativa de lembrar que, às vezes, o afeto pode ser servido em colheres, com os bocados e aromas.
G- Golo! Acertei precisamente nas receitas perfeitas para momentos como este. Esperei mais um pouco, observando com satisfação as cores a voltarem lentamente às bochechas da doente. Um pequeno sinal de recuperação que me aqueceu o meu coração. Com a sensação de dever cumprido, arranquei de volta para casa.
Mal cruzei a porta, nem tempo tive para respirar. Assim que me sentei, fui cercada por dois caramelos peludos, os guardiões do meu sossego. Um aconchegou-se ao meu colo, ronronando como se fosse um motorzinho de pura felicidade. O outro encostou-se à minha perna, abanando o rabo como quem diz: "Estivemos à tua espera todo o dia".
Sorri, mas a pergunta veio à mente, será que consigo trabalhar? Talvez escrever algo para as minhas adoradas dinâmicas de aventuras? Mas como posso eu, ignorar aqueles olhos? Eles não pediam, exigiam a minha atenção e mimos, cheios de saudades.
Entre ronrons e os olhares cúmplices, percebi que, naquele momento, escrever podia esperar. Afinal, cada gesto deles era como um capítulo de um conto silencioso, feito de carinho, de lealdade e uma cumplicidade que só o amor genuíno sabe escrever.
I- Iria adiar o trabalho, iria escrever os contos com algumas letras, iria ouvir as outras meninas a contar as suas histórias, as suas aventuras. E dar risadas até cair para o lado, o melhor destes encontros online.

1 de dezembro de 2024

O Espelho Proibido

 

No mundo de Kaelar, os espelhos eram mais do que objetos banidos, eram portais para o inexplicável. As lendas sussurravam sobre os reflexos que não refletiam, mas simulavam, os habitantes de um reino invertido, à espera de uma fraqueza, de um momento para se cruzarem. Ninguém ousava desafiar a proibição, exceto Teryn, um aprendiz de alquimista, o qual a curiosidade era tão afiada quanto perigosa.
Num mercado clandestino, encontrou um pequeno espelho de moldura corroída pelo tempo. Entre as moedas trocadas e os olhares furtivos, sentiu o peso do objeto nas suas mãos, como se algo ali o observasse. Ignorou o arrepio. “Medo irracional,” pensou.
No seu quarto, à luz trémula de uma vela, Teryn ergueu o espelho. A princípio, viu-se como sempre, uns olhos verdes atentos e pele pálida. Mas, algo rompeu a normalidade. O reflexo piscou. Ele, não.
Teryn estremeceu. Largou o espelho, mas a imagem não desapareceu. Pelo contrário, sorriu. Um sorriso largo, desafinado e expondo os dentes afiados.
— Finalmente — disse a figura, numa voz rouca que ressoava dentro da mente de Teryn.
Ele tentou desviar o olhar, mas os seus olhos estavam presos. Os seus braços imóveis, não obedeciam. O reflexo, agora autónomo, moveu-se além do limite do vidro, como se a moldura fosse uma janela aberta.
— Devias ter ouvido as histórias, Teryn — zombou a figura, aproximando-se.
Um frio avassalador tomou conta do aprendiz. Sentiu um puxão, como se algo o sugasse para dentro do espelho, para um vazio gelado e insuportável. Quando o pânico deu lugar à realidade, percebeu que não estava mais no quarto. Ele estava do outro lado.
Do vidro, viu o seu próprio corpo, agora habitado pela criatura.
— Agora é a minha vez no mundo real — disse ela, sorrindo, antes de apagar a vela.
Na escuridão opressiva do mundo invertido, Teryn ouviu sussurros infinitos, as vozes indistintas de outros também aprisionados. Algumas vozes choravam, outras suplicavam, mas as piores eram as que gargalhavam, distorcidas pelo desespero que se transformara em loucura.
E então, entendeu, que ninguém escapava do reflexo.

27 de novembro de 2024

Dezanove Anos

Hoje não é um dia de tristeza, embora tenha começado com um nó na garganta. São dezanove anos desde que o meu Pai partiu. De ausência que, pouco a pouco, se transformaram numa presença diferente. Não uma presença física, mas algo mais profundo. Ele representa um pouco, nos meus gestos, nos nossos risos, nas histórias que conto.

Coloquei flores no meu coração, como sempre faço. Ele dizia que os pequenos gestos tinham poder e agora entendo por quê. Era assim que ele era, uma força constante, até quando as coisas não iam bem.

Ainda encontro muitas pessoas que se lembram dele. “O teu pai… era um homem como poucos. Sempre dizia que a vida era para ser partilhada e fazia isso como ninguém. Principalmente com a família e com as pessoas que amava.”

Aquelas palavras aqueceram-me. Mesmo depois de tanto tempo, havia quem ainda o recordava com carinho. Senti reconhecimento, por ele e pelas memórias que não deixam que a sua essência se perca.

Mais tarde, reunimos em família para um jantar. Até a minha mana, com cara de sono, fez videoconferência connosco por cinco minutos. Não foi um evento triste, até rimos, relembramos as histórias engraçadas. Tenho pena que os mais novos, as netas, não o tenham conhecido. Mas ficam fascinadas com as narrativas, como se ele estivesse presente nelas.

Hoje, não chorei. Não esqueci do dia, nem as pessoas que fazem anos. As saudades continuam aqui, mas dói muito menos. É uma saudade boa, que me lembra o quanto ele foi amado e o quanto ainda é. Ele permanece tão presente entre nós. E muitas vezes, em silêncio e em pensamento, recorro-lhe para alguns receios da vida.

Antes de adormecer, escrevi no meu diário virtual:
Obrigado, Pai, por tudo o que foste e ainda és.
Obrigado a quem te lembra com carinho.
És eterno nas memórias e no amor que deixaste.

E assim terminei o dia, com menos dor e muito mais gratidão.

26 de novembro de 2024

Pais das Maravilhas

Vou escrevendo um conto e a medida que for dizendo Stop muda de letra do
alfabeto: ABCDE.

A-Atirei o pau ao gato, mas ele não se mexeu. Apenas fixava no queijo em cima da mesa, com os olhos a brilhar de desejo. Passava a língua pelos lábios, com vontade de atacar o dito cujo sem perder tempo. Mas, hesitou. Olhou de relance para o lado e viu o presunto. Queijo ou presunto? Parecia ponderar como um ladrão indeciso, planeando o próximo roubo. Os seus olhos arregalados brilhavam de gula, e um fio de baba já lhe escorria pelo canto da boca.

B-Borboleta cheia de cores voava inquieta, procurando onde fazer o seu casulo, preparando-se para, curiosamente, transformar-se... em lagarta. Talvez seja aquela lagarta do País das Maravilhas que fumava como um Lorde ou Lady. 

A menina loira de olhos azuis e vestido branco e azul surgiu correndo, perseguindo um coelho branco de relógio na mão. Ela caiu num poço profundo e aterrou num estranho labirinto com muitas portas e uma sala gigantesca. Lá, uma longa mesa aguardava, cercada de criaturas peculiares. 

C-Coelho branco de cartola e relógio liderava o banquete. Ao lado, uma zebra de chapéu de palhaço exibia o seu estilo extravagante. Um caracol gigante com casaco multicolorido pilotava um volante imaginário, enquanto o elefante Jumbo, com um laço impecável no pescoço, se ajeitava na cadeira. A abelha, com suas riscas amarelo-pretas, lambuzava-se de mel sem pudor. 

Por fim, um crocodilo com dentes afiados e um smoking brilhante completava a mesa. No centro da festa, um peru assado, com uma laranja na boca, que decorava a mesa. Estranho. Animais comendo outro animal? 

D-De repente, do meio das ervas altas, surgiu a lagarta a fumar um cigarro, seguida do gato, agora com um sorriso peculiar em forma de queijo redondo e bocados de presunto nos dentes brancos. O coelho  correu para casa em busca de mais cadeiras, garantindo que todos pudessem desfrutar daquele excêntrico jantar de gala. Com cadeiras extras, a mesa ficou ainda mais caótica. O gato, com o seu riso, acomodou-se ao lado do peru assado, observando tudo com aquele ar enigmático de quem sabe mais do que diz. A lagarta, sempre despreocupada, deu uma longa tragada no cigarro e declarou: 

— Que cena estranha... mas apetitosa. Vamos comer ou filosofar? 

Todos riram, exceto o peru, que permanecia em silêncio. A zebra ajustou o chapéu de palhaço, no alto da sua cabeça e orelhas e respondeu: 

— Aqui não se come. Aqui se imagina comer. 

A abelha, lambendo os dedos melados, levantou a mão: 

— Mas eu comi. 

O crocodilo, ajeitando o smoking, lançou um olhar severo: 

— Abelha, não estragues a lógica do jantar. 

E-Enquanto isso, a menina Alice, perdida e confusa, perguntou: 

— Mas o que faço aqui? Vocês são reais? A lagarta riu e soltou uma baforada de fumaça que tomou o ar. 

— Real é o que acreditas que é. Este jantar é tão real quanto o desejo do gato por queijo ou presunto. O gato ronronou, encantado com a referência. Pegou um pedaço imaginário de queijo e o devorou com satisfação teatral. No meio da confusão, o coelho branco consultou o seu relógio e exclamou: 

— Estamos atrasados! Precisamos brindar! 

Com as taças imaginárias erguidas, todos brindaram a algo que ninguém nomeou. A menina, ainda confusa, percebeu que o peru assado havia desaparecido, substituído por um prato vazio. O gato sorriu largamente, lambendo os bigodes. E assim, entre risadas, a filosofia e um jantar que não era bem um jantar, todos desapareceram um por um, deixando a mesa vazia. 

A menina esfregou os olhos e viu-se novamente no jardim, segurando uma folha colada à testa. Ao longe, o gato desaparecia entre as árvores, com um sorriso de queijo no seu rosto, como se tudo não tivesse passado de um sonho.

24 de novembro de 2024

Um Vendaval de Problemas

Ontem foi uma tarde perfeita à beira do rio no Montijo, com boa companhia e um céu limpo. Hoje? Um completo desastre. Era uma daquelas manhãs em que parecia que o universo tinha acordado de mau-humor e decidido que eu seria o alvo. Nada me corria bem.

Tentava limpar as folhas da entrada, mas o vento parecia ter outros planos. Cada varrida minha transformava-se numa piada para a tempestade, que insistia em devolver as folhas à porta com uma precisão quase provocadora.

— Estou a varrer ou a dançar salsa? — resmunguei, enquanto o monte de folhas ignorava-me triunfantemente.

Foi nesse momento que Dona Domingas apareceu. A vizinha, envolta num chapéu de chuva extravagante, parecia ter saído diretamente de um filme de época.

— Não sabia que tinha talento para aeróbica na chuva! — gritou ela, entre gargalhadas.

Nem tive tempo de responder. Uma folha rebelde decidiu colar-se à minha testa, como se quisesse marcar território. Para completar o ‘show’, Ginger, o meu gato alaranjado e com a pose de um verdadeiro lorde, decidiu pisar em todas as poças possíveis. Encharcado e indignado, correu para dentro de casa, deixando pegadas pela cozinha.

No auge do caos, entre vento descontrolado e chuva teimosa, senti um estalo. Ai! Caetano! Era como se tivesse um torcicolo na anca. Soltei um grito de dor, larguei a vassoura, que foi parar aos pés do meu companheiro.

— Boa tarde… ou seria bom espetáculo? — disse ele, segurando-me enquanto se esforçava para não rir.

Dei-lhe um sorriso forçado e arrastei-me para dentro, mancando como uma velha. Ginger olhou-me do sofá com o desprezo altivo de quem claramente nunca teve de varrer folhas.

Suspirei, olhei para o céu cinzento e jurei, nunca mais fazer isto durante uma tempestade.

E ali fiquei, no sofá, com dores, a Loira encostada a mim e Ginger satisfeito, ronronando como se fosse o rei do caos. Afinal, ele parecia ser o único a desfrutar do dia.

19 de novembro de 2024

Amarrar o burro

Luz das letras

1.    A céu aberto: ao ar livre

2.    Abandonar o barco: desistir de uma situação difícil

3.    Abotoar o paletó: morrer

4.    Abrir mão de alguma coisa: renunciar alguma coisa

5.    Abrir o coração: desabafar, declarar-se sinceramente

6.    Abrir o jogo: denunciar ou revelar detalhes

7.    Abrir os olhos a alguém: alertar ou convencer alguém de alguma coisa

8.    Acabar em pizza: quando uma situação não resolvida acaba encerrada (especialmente em casos de corrupção, quando ninguém é punido)

9.    Acertar na lata: acertar com precisão, adivinhar de primeira

10. Acertar na mosca: acertar com precisão, adivinhar de primeira

11. Adoçar a boca: conseguir um favor de alguém com elogios

12. Agarrar com unhas e dentes: agir de forma extrema para não perder algo ou alguém

13. Agora é que são elas: momento em que começa a dificuldade

14. Água que passarinho não bebe: pinga ou bebida alcoólica

15. Amarrar o burro: descansar ou se comprometer romanticamente com alguém. 

Uma frase e um mini-conto de 300 palavras:

 

Na vila de Patacas Altas, a rotina de Zé Pancada e o seu burro era o principal entretenimento. Chicote era um verdadeiro Houdini de quatro patas, capaz de se desamarrar de qualquer corda. Sempre que Zé entrava no bar para “uma conversa rápida”, que nunca, o burro escapava, causando uma série de desastres hilariantes. 

Certa tarde, decidido a vencer o burro, Zé amarrou-o com uma corda “indestrutível” ao poste da praça e entrou no bar. “Hoje ele não me engana!”, declarou, confiante. Os amigos riram, pois sabiam como aquilo ia acabar. E acabou, bastou cinco minutos. Chicote já caminhava pela vila com a corda ao pescoço, como se desfilasse com uma gravata de gala, pronto para sua habitual ronda de travessuras. 

Primeiro, invadiu a banca de frutas de Dona Cotinha, devorou três maçãs e empurrou o tabuleiro, espalhando frutas pela rua. “Ó animal desavergonhado!”, gritou Cotinha, sacudindo um pepino na direção dele. Depois, Chicote foi à barbearia do Seu Rufino. Parou em frente ao espelho e balançou a cabeça como se pedisse um corte moderno. “Sai daqui, burro vaidoso! Não tenho tesouras para crinas!”, gritou Rufino, enquanto o burro relinchava, claramente divertido. 

Mas a apoteose foi na igreja. O padre Jeremias, no auge de um sermão sobre paciência, ficou boquiaberto quando Chicote subiu ao altar e começou a mastigar as flores decorativas. “Irmãos, as provações do Senhor vêm em muitas formas. Hoje… vieram com patas!”, suspirou Jeremias, enquanto os fiéis tentavam conter o riso. 

Quando Zé saiu do bar, a vila inteira estava à caça do burro. “Zé Pancada, amarra este demónio como deve ser!”, gritou Cotinha, lançando-lhe uma maçã murcha. Com um relinchar triunfante, voltou calmamente ao poste, como se nada tivesse acontecido. 
Nunca subestime um burro com talento. Em Patacas Altas, Chicote era a verdadeira estrela.

17 de novembro de 2024

Domingo Alegre


No mínimo, duas vezes por ano, celebramos o tradicional "Domingo Alegre," uma tradição de Moçambique. É um encontro entre várias famílias e amigos, misturando idades, as origens e as cores, numa convivência recheada de boas comidas, de conversas longas e de jogos: sueca, matraquilhos, Carrom e brincadeiras de crianças. Era sempre um dia muito especial, cheio de energia e de recordações.

Este ano, a Tia Rita marcou um almoço antecipado de Natal para um domingo. “Não podemos mudar de dia!”, decretou ela, prática e inflexível, nada normal. Com cerca de 26 pessoas confirmadas, escolhemos um restaurante espaçoso, ideal para as nossas festas prolongadas, cheias de risadas, histórias e boa disposição.

O grande dia chegou. “Está marcado para as 12h, não se atrasem!”, avisou a tia Rita. Como de costume, os primeiros a chegar acomodaram-se no recinto da entrada, abrigadas do vento frio. Entrei logo depois, cumprimentando as tias, as primas e as amigas, até que uma voz inesperada ecoou: “Finalmente num almoço de família!”

O coração deu um saltinho. Era a voz da minha mana. Mas... não podia ser. Ela está em Itália! E já tinha feito uma surpresa nos meus 50 anos. Convenci-me de que imaginava coisas. Até que me virei e ouvi um animado grito de: “Surpresa!”

Era ela, de verdade! Com o seu traje colorido, um sorriso radiante e a alegria de sempre. O salão explodiu em abraços e exclamações de surpresa, a medida que chegava mais pessoas. Não era comum ela estar cá fora de época, geralmente, só vinha no verão ou no Natal, que este ano irá estar presente.

O almoço ganhou um brilho especial. Entre os pratos deliciosos e as bebidas, as conversas fluíram, memórias foram compartilhadas e, por alguns momentos, parecia que o tempo parou, apenas para nos lembrar do quão essencial é estar junto de quem amamos.

16 de novembro de 2024

Rato e Rei!

 

O raio do rápido rato roeu, raivoso, a rolha redonda da garrafa de rum do Roberto, o rei rigoroso da Rússia. Roubou as rosas raras, rasgou as rendas reluzentes e raptou três roscas recheadas sem deixar rastos.

O rei, revoltado, resmungou: "Ratos rabugentos roubaram as riquezas do meu reino resplandecente! Reúnam rapidamente os reforços, recuperem o que restou e reduzam os ratos a meras recordações!"
Reis, rainhas e rústicos reagiram, rumores rodopiavam pelos recantos: "Ratos raros, reais rivais, reinavam no reino roubado!"
Enquanto isso, o rato regozijava, rindo em ruas recônditas, rolando sobre relíquias roubadas, rodeado de riquezas e rosquinhas recheadas.
No horizonte, a revolução rugia e o rei, rígido, retomava o reino: "Rendição ou rebelião?"
O rato, rápido e resoluto, respondeu com riso: "Reinar é uma arte e roubar é o meu ritual."
O rei Roberto, resoluto, reuniu os seus reforços com um rugido retumbante. Os soldados, com reluzentes armaduras revestidas, rasgavam trilhos por riachos e ravinas, rastreando o rato rebelde. Pelos recantos do reino, relatos ressurgiam: "O rato refugia-se em recifes remotos, rodeado de riquezas roubadas!"
Enquanto isso, o rato, regendo a sua resistência, rodeava-se de ratos renegados. "Recuperem os reforços! Rastejem, procurem, mas não retrocedam!" — Ordenava, rosnando. Ratos robustos revezavam-se, recarregando reservas de rosquinhas e rum.
O confronto culminou no Riacho Rubro, onde o rato enfrentou o rei. Roberto, com a realeza reunida, retumbou: "Rato, rastejaste rumo à ruína! Rende-te ou receba a justiça do reino!"
Mas o rato, risonho, respondeu: "Render-me? Ridículo! Resisti, roguei e resplandeço! O meu reinado reluz com riqueza e rosquinhas!"
Uma reviravolta surpreendente ocorreu: Roberto, reconhecendo a resiliência do rato, propôs reconciliação. "Reine comigo. Ratos e reis podem reescrever revoluções."
E assim, reinos reunidos, ratos e homens repartiram responsabilidades, criando uma era radiante de respeito e renascimento.

13 de novembro de 2024

Enumeração

Parto amanhã rumo ao Santiago de Compostela, onde as melhores aventuras acontecem.

LEVO: 

Uma bússola pequena para encontrar caminhos secretos (🧭para orientação);

Um mapa real para descobrir estradas escondidas (me diz onde estou e para onde vou);

Duas botas impermeáveis para alguns terrenos imprevisíveis (uma em cada pé);

Duas cordas resistentes para atravessar abismos inclinados (um para descer, outro para subir);

Três livros antigos para desvendar enigmas ocultos (um que conta, outro que nega e outro confirma);

Quatro lanternas luminosas para noites mais escuras (para cada ponto cardeal);

Cinco frascos mágicos para curar ferimentos estranhos (mazelas com olhos, nariz, ouvidos, coração e pés);

Seis amuletos protectores para espantar criaturas ferozes (para seis bichos);

Sete lápis encantados para enviar mensagens necessárias (as cores do arco-íris).

12 de novembro de 2024

Sozinho sem saida

De noite, o silêncio no hospital era quase absoluto, interrompido pelo som fraco das máquinas que pulsavam ritmadamente, como as batidas de um coração distante.
João, de pele pálida, estava sozinho, no fim de um corredor vazio e mal iluminado. Os médicos e enfermeiros tinham desaparecido, e cada tentativa de gritar era abafada pela dor crescente na sua garganta.
Do quarto vizinho, ouviam-se sons. Levou um instante até perceber que se moviam em círculos, num ritmo irregular. Um aperto tomou o peito de João ao entender que não eram passos humanos. Ouvia-se um arrastar lento e denso, como algo viscoso a mover-se.
Ele fechou os olhos, mas a porta rangeu-se e um cheiro forte a mofo e decomposição invadiu o ar. Algo estava ali, à espreita, invisível e intensamente presente, e enquanto o horror se aproximava, sentiu que o seu próprio fim estava perto.
#desafiofdt2024 #terroremportugal
#laritacaramela

A pedido pela continuação: 

A figura que se imergiu na penumbra era alta, esquelética, envolta numa aura de trevas que parecia devorar a luz fraca do corredor. O cheiro de decomposição tornou-se insuportável, queimando os sentidos de João. Ele tentou mover-se, mas o corpo parecia preso, como se a própria cama o segurasse.

O arrastar viscoso cessou e um silêncio aterrador tomou conta do quarto. De repente, uma mão fria como gelo pousou no peito de João. Não havia força, mas um peso imenso o dominava, como se estivesse sendo puxado para fora de si. O pulsar das máquinas ficou mais alto, distorcido, misturando-se com um sussurro incompreensível.

João tentou lutar, mas o olhar da criatura, vazio e interminável, encontrou o seu. Tudo congelou. Quando o som cessou, restava apenas a cama vazia. O corredor permaneceu deserto, excepto pelo eco de algo se arrastando, à procura da próxima vítima.

11 de novembro de 2024

O Mosaico do Jardim da Estrela

No Jardim da Estrela, o tempo parecia andar muito devagar. As crianças de vários, tamanhos, cores e defeitos corriam atrás de bolas coloridas enquanto os idosos, sob a sombra das árvores, disputavam partidas de dominó com a paciência de quem sabe aproveitar a vida. Mas o que tornava aquele espaço verdadeiramente especial não era a tranquilidade nem os risos infantis, mas como a diversidade se entrelaçava em cada canto, como os ramos de uma árvore que crescem por todos os lados, mas pertencem ao mesmo tronco.

A Clara, uma menina cega de olhos curiosos, tornara-se a guia sensorial de Sofia, que usava uma cadeira de rodas e adorava explorar o mundo com os sentidos que podia usar. Naquele dia, Clara segurava uma flor entre os dedos delicados e dizia com convicção: “Esta é lavanda. Cheira como se o mundo parasse por um segundo, não achas?” Sofia aspirava profundamente e respondia com um sorriso: “Sim, mas não é só o cheiro. Ouve como o vento parece dançar entre os ramos. É como uma música!” Ambas de 12 anos e sentiam a luz das flores a irradiarem nas mãos. E na falta dum sentido sensorial, apuravam-se os outros.

O Miguel, um rapaz que comunicava por linguagem gestual, estava num debate acalorado com o Lucas, um menino com síndrome de Down que adorava as histórias fantásticas. As mãos de Miguel moviam-se rapidamente e Lucas, mesmo sem entender todos os sinais, replicava com entusiasmo: “E depois o dragão voou tão alto que desapareceu nas nuvens!” Ana, uma jovem que aprendera linguagem gestual, estava ali, para unir os dois mundos, traduzia com uma alegria que contagiava.

Nos sábados, o bairro reuniu-se para criar algo monumental. Um mosaico que representasse a praça e as suas pessoas. As peças de cerâmica quebradas espalhavam-se pelo chão, cada uma com uma cor ou textura distinta. Sara, uma jovem com dificuldades motoras, mas com um talento único para a pintura, orientava quem não sabia por onde começar. “A arte é sobre o que sentimos. Não há erros, só emoção.”, dizia. Hugo, que usava os aparelhos auditivos, liderava com um carisma que fazia com que, os mais tímidos participassem.

Quando o mosaico ficou pronto, era mais do que uma obra de arte. Era um reflexo de vidas interligadas, de histórias compartilhadas. Clara passou os dedos pelas peças ásperas e murmurou: “Sinto cada um de nós aqui. Como se estivéssemos juntos, mesmo quando não estamos.”

Naquele dia, ninguém falou em diferenças. Elas não eram barreiras, eram pontes. O Jardim da Estrela tornou-se um símbolo de união, onde todos aprenderam que a verdadeira força de uma comunidade está na capacidade de ouvir, acolher e criar juntos.

Somos todos iguais e diferentes ao menos tempo. 

(Tema do mês de Novembro: Inclusão e Diversidade da Escrita)

7 de novembro de 2024

Radar Humano

Ninguém sabia muito bem por quê. Talvez fosse uma questão genética, ou porque a natureza decidiu ser criativa naquele dia.

Desde sempre, Rita viveu sem orelhas e curiosamente, nunca se importou. Na verdade, ela até achava engraçado e fazia piadas sobre isso com naturalidade. "A falta das orelhas é minha superpotência", costumava dizer. Sempre com um sorriso na cara, como se tivesse descoberto um segredo do universo.

Enquanto as crianças perguntavam onde haviam ido parar as orelhas, Rita se divertia, a observar as tentativas engraçadas dos seus amigos, de adivinhar o motivo. "Será que ela foi feita por alienígenas? Ou será que foi a um salão de beleza onde tiraram as orelhas para dar aquele acabamento especial?", brincavam. 

Ela ria tanto dessas suposições que chegava a ter um acesso de gargalhadas incontroláveis. “Quem sabe? Só sei que não tenho que me preocupar com a falta de protetor auricular num dia de ventania!”, dizia. Dando uma risada contagiante que fazia todos caírem na gargalhada.

Mas, havia momentos em que a ausência de orelhas não era tão vantajosa. Quando estava na escola, Rita jamais escapava dos castigos. "Isso é para escutares melhor!", diziam, sempre a puxar as orelhas das crianças que aprontavam alguma travessura.

Ficava com a expressão confusa, enquanto os seus amigos riam e davam-lhe palmadinhas. 

Cresceu com uma habilidade extraordinária de ouvir, apesar da ausência. Os seus amigos a chamavam de "radar humano", porque ela conseguia escutar absolutamente tudo. Não só ouvia as conversas a quilómetros de distância, mas também conseguia identificar o que as pessoas pensavam, baseando-se apenas nos gestos e expressões faciais.

E assim, sem orelhas, viveu uma vida cheia de risos, os segredos revelados e o incrível poder de escutar o mundo de uma maneira que ninguém mais podia. 

Afinal, quem precisa de orelhas ao ter o coração tão afinado?