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1 de julho de 2025

O mal das coisas boas


No coração da cidade antiga, onde as pedras sussurram histórias esquecidas, morava um homem chamado Elias. Conhecido pela sua bondade desmedida, oferecia tudo o que tinha — comida, abrigo, até o próprio tempo — aos que batiam à sua porta. A casa, uma relíquia coberta de heras, era um farol para os perdidos, um oásis de luz num mundo cansado.

Mas a bondade, pensava Elias, tinha um preço. Cada acto de generosidade drenava algo invisível, uma ausência que crescia em silêncio dentro dele. As tábuas antigas rangeram, num suspiro que parecia conter uma paciência sombria. As heras mexiam-se, deslizando pelas paredes como dedos ávidos, à espera que Elias cedesse ao que se abrira na sua alma.

Numa noite enluarada, um estranho apareceu, com olhos de abismo e voz que parecia vir de outro tempo. Entregou-lhe um presente — uma caixa pequena, ornada com símbolos que dançavam nas sombras. Na caixa, a inscrição borrada lia-se com esforço: “Só abre, quando já não fores inteiro.” “O Espelho do Vazio”, murmurou o estranho antes de desaparecer no nevoeiro.

Dias passaram, e o silêncio sem fim apertava as costelas de Elias, consumindo-lhe o sorriso. A casa, antes cheia de risos e aromas de pão fresco, tornou-se um mausoléu de memórias apagadas. Por fim, numa mistura de medo e desespero, afastou a caixa com mãos trémulas, como se repelisse um veneno. Uma voz distante, uma lembrança tênue da infância, sussurrou-lhe: “Não faças isto.” Mas a ausência dentro dele era uma maré que não cedia. Tremendo, Elias cedeu e abriu a caixa.

Dentro, um espelho negro não se limitava a mostrar rostos; ao fixar os olhos na sua superfície, sentiu uma brisa fria roubar-lhe a última centelha de calor, como se o próprio reflexo sugasse a sua alma. Não viu o seu rosto, mas as almas daqueles a quem dera algo, todos a olhar, vazios e famintos. Cada gesto bom não tinha curado, apenas roubado pedaços do seu próprio ser para alimentar espectros invisíveis.

O terror não vinha de monstros externos, mas daquilo que ele próprio criara: um cemitério de boas intenções. A sua bondade, como uma erva venenosa, crescera até sufocá-lo, deixando-o prisioneiro daquilo que mais amava.

Naquela noite, Elias desapareceu. A casa, agora calada, aguardava a próxima alma que acreditasse no mal das coisas boas, onde a luz era só a sombra do sacrifício eterno. E do espelho, a sombra de Elias sorria. Como sempre. Para servir.

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