O poço no fundo do quintal nunca secava, mesmo nos verões em que os rios sumiam sob a poeira. A avó dizia que era abençoado. O pai murmurava o contrário, mas só quando achava que ninguém ouvia.
Numa noite de Agosto, quando o calor roía os ossos e a electricidade faltava, ela acordou com um som húmido, arrastado, vindo lá de baixo. Foi até à janela. O balde subia devagar, como se soubesse o caminho de cor, puxado por uma força que não vinha da terra. No topo, repousava algo que não devia ter nome — um amontoado de carne escura, pulsante, como um coração lembrado só pelos mortos.
De dentro, escapava um sussurro baixo, molhado, como se o objecto respirasse.
De manhã, tudo parecia intacto. A mãe varria o alpendre com indiferença. O cão, encolhido sob a mesa, rosnava para o poço.
Durante dias, observou em silêncio. Sempre à mesma hora, três e onze da madrugada, o balde descia e subia. E cada vez trazia mais: dentes soltos, cabelos embaraçados, uma mão de criança a mexer os dedos como algas na corrente.
Na sétima noite, desceu descalça, guiada pela lua cheia e pelo cheiro metálico do medo. Amarrou a corda à cintura, murmurou um adeus às estrelas e deixou-se engolir.
Ao romper da corda, ouviu-se um estalido surdo como o osso de um pescoço a ceder.
Lá dentro, não havia água. Só pedra húmida e carne — carne por toda a parte, a respirar. Vultos espreitavam nas paredes vivas, olhos que brilhavam com fome antiga. E vozes. Milhares delas. Sussurravam segredos em línguas que não pertenciam ao tempo dos homens.
— Mariana, Mariana... o que ninguém sabe é que nunca saíste de cá.
Acordou no alpendre. Suja de lodo. Os dedos formigavam como se pertencessem a outro. Ao levantar-se, o pé esquerdo demorou um segundo a obedecer. O espelho recusava o reflexo.
O poço estava selado. A mãe sorria. O pai acenava da varanda.
Às três e onze, o coração voltava a bater — impaciente — fora do peito.
Alguns regressam. Mas ninguém sabe o que trouxeram.
E o que subiu… já não era ela.
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