O ramo de alecrim pendia da janela do quarto, preso com fio de sisal. O cheiro morno e áspero impregnava nos lençóis, no cabelo de Madalena e nas dobras do silêncio.
Ela descansava na cama sem almofada, a cabeça virada para o tecto rachado. Uma das fissuras alargava-se todos os dias, como se a casa estivesse a chorar por dentro. O verão castigava as paredes com o seu bafo estagnado. Desde o terramoto, Madalena vivia num tempo gasto. As manhãs vinham sem urgência. Já não fazia o café como antes, com a colher de madeira que ele esculpira no último Natal. E não punha o rádio a tocar fado baixo enquanto aquecia o pão. Agora, era só o silêncio.
Manuel tinha mãos grandes. Limpava os vidros aos domingos. Dizia que a luz devia entrar sem obstáculos. Ria pouco, mas os olhos franzidos diziam mais do que mil palavras. Tinha esse jeito de estar calado com sentido.
O alecrim era uma ternura secreta entre os dois. Ele dizia que o cheiro, o fazia lembrar a infância, o quintal da avó, o forno a lenha, a toalha com migalhas e mãos sujas de azeite. No primeiro ano juntos, plantaram um pé de alecrim no vaso mais pequeno da varanda. “Para durar”, disse ele. Era o que punha no arroz de polvo nos aniversários, o que deixava secar atrás do fogão para perfumar a cozinha. E, nos dias em que ela não conseguia dormir, era ele que escondia um raminho debaixo da almofada dela, sem dizer nada. Mas havia discursos repetidos, mudanças desejadas e nunca feitas. Na véspera, discutiram. Ela queria mudar a mesa de sítio. Ele disse: “Nunca sabes o que queres.” Sempre o tom.
Ele saíra. “Preciso de ar.” A porta fechou-se como um ponto final. Depois, a terra tremeu. O chão gemeu e os móveis deslocaram-se. A parede do quarto estalou de alto a baixo. Madalena protegeu-se no vão da porta. Mas o verdadeiro abalo foi ele não ter regressado. Nem uma chamada, nem um bilhete. Restava-lhe o alecrim.
Naquela manhã, o ar mudou. Trazia um cheiro novo, mas antigo. Não era imaginação, era memória a despertar os sentidos. O corpo hesitava a levantar-se, mas algo chamava. O cheiro era fresco, vivo. Parou à porta da cozinha. Sentiu o calor do lume antes de o ver. Escutou o leve estalar do óleo. E então, o mundo suspendeu-se. A frigideira borbulhava. Dois ovos estrelados, a gema como sol maduro. Sobre a mesa, um ramo fresco de alecrim, ainda húmido da terra.
Ficou imóvel. O gesto era dele, contido, íntimo, cheio de significado. Sentou-se. Levou o ramo ao nariz. O cheiro devolveu-lhe tudo, o toque, o timbre, o hábito. Chorou sem pressa, em silêncio. Como quem aceita que a dor também é necessário. Comeu, não por fome, por fidelidade.
Lá fora, o sol escorria pelos telhados, espesso como tempo parado. As cigarras gritavam a persistência da vida. Cá dentro, Madalena compreendia, ele não era ausência, era raiz.
DESAFIO DA SEMANA DE ESCRITA (5 Palavras)
1 comentário:
Olá Laura. Muito bom o conto! Também o enviaste para o concurso de acesso ao escrita em ação?
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